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A filosofia latino-americana como expoente de uma cultura autônoma

Cada etapa na evolução da consciência continental da América Latina esteve em relação com uma das diversas e sucessivas filosofias ou orientações doutrinárias dominantes no desenvolvimento do pensamento europeu. Tal nexo foi mais pronunciado na época da formação da auto-consciência nacional dos povos latino-americanos, dedicados à tarefa de cimentar suas instituições políticas e sociais.

Este esforço formador e auto-constitutivo do espírito nacional dos povos do continente se reflete na história das idéias filosóficas européias em solo americano. Ainda que esta história das idéias não configure uma filosofia, ela esclarece, sem embargo, o caráter do pensamento latino-americano e a aptidão deste para estruturar uma concepção filosófica conforme com o ser do homem americano e sua disposição temperamental. Uma história das idéias filosóficas européias e seu influxo na vida das nações sul-americanas é um ponto de partida para a reflexão filosófica acerca das necessidades vernáculas, tanto no espiritual, quanto no que diz respeito às formas da convivência social. O material – doutrinas e sugestões – que tal reflexão supõe mobiliza-se por uma idéia central: a realização da liberdade no político e no social.

O pensamento americano, inspirando-se na própria realidade histórica e na exigência de satisfazer às necessidades emergentes desta, acudiu, no passado, à filosofia européia, valorando-a não como uma atividade pura, mas sim como um meio para abordar e solucionar os problemas que se referem ao homem de nosso meio, a sua vida, as suas urgências políticas e pedagógicas. Em nossa época, o interesse da América Latina pela filosofia e seu aporte formativo é muito mais acentuado e definido no que se refere a tendências, doutrinas e sobretudo no que diz respeito a um processo de assimilação e adaptação de idéias e métodos estrangeiros, processo no qual desponta já a possibilidade de uma etapa de criação, de concepções originais, expressivas de sua idiossincrasia e espiritual e adequadas a um módulo autônomo de vida e de pensamento.


  É evidente que na reflexão filosófica e na cultura dos povos latino-americanos predomina o fator autóctone sobre o genérico, diferenciando-se por isso das culturas européias, nas quais predomina o último. Além disso, a América Latina, por uma tendência imanente ao seu espírito, resultante de sua situação histórica, aspira a prolongar na prática, no terreno das realizações sociais e econômicas, as postulações teóricas das filosofias européias que até agora influíram em seu desenvolvimento cultural. Daqui o caráter essencialmente instrumentalista de seu pensamento.  O que não impede que este, proprietário, na atualidade, de um critério técnico-filosófico mais maduro, se afinque nos problemas que inquietam a especulação européia, e  também nos pontos de vista suscitados nela como resposta aos próprios problemas.

O pensamento americano, desde o primeiro estágio de seu desenvolvimento, e movido por necessidades de seu ambiente histórico, mostrou, naturalmente, preferência pelas filosofias orientadas, em maior ou menor medida, rumo ao concreto, com acento nos problemas antropológicos e sociais. É assim que das orientações filosóficas européias (racionalismo iluminista, romantismo, historicismo, positivismo, vitalismo, existencialismo) com as quais se relacionou, desde a independência política dos povos do continente,  tratando de extrair delas um ensinamento, as que o influenciaram de modo mais eficiente foram, no passado, o historicismo (influência ainda hoje manifesta), o positivismo e o vitalismo. Na atualidade,  predomina sobre todas as demais direções filosóficas o influxo do existencialismo. Vale notar, como exemplo, que a reflexão filosófica vernácula atualiza e apura as hipóteses metodológicas e heurísticas das últimas filosofias européias, com vistas à derivação dos mesmos na direção de um enfoque integral dos fatos e, também, a uma práxis humanista. Isso acontece com o lema metódico da fenomenologia: “as coisas mesmas”, e com a “analítica doDasein” como hermenêutica, como via de acesso ao núcleo ontológico da existência americana e seus módulos expressivos.

As considerações precedentes nos aproximam do terreno no qual podemos delinear em sua verdadeira dimensão o problema da tarefa peculiar e do destino da filosofia na América Latina. Tal dimensão não se deixa entrever, desde logo, na tendência e no esforço assimilatório e adaptativo de doutrinas e métodos europeus. Em primeiro lugar, se há de afirmar a sua autonomia, o pensamento americano não poderá cumprir a tarefa que lhe concerne atendo-se literalmente às categorias próprias da filosofia européia, as que surgiram em função de conteúdos de uma realidade histórica distinta da nossa.

Cabe ilustrar essa asserção aportando algumas precisões mediante exemplificação. Não é por acaso, nem por uma reação epidérmica que o espírito americano evidencie mais interesse e inquietude pela última filosofia européia, a da existência; pelo contrário, isso se deve, precisamente, ao caráter emocional desta, e ao fato de que sua problemática se impregne nas estruturas concretas da historicidade. Entre essa filosofia e o temperamento americano há pontos de contato, uma afinidade graças à primazia que o fator emocional e intuitivo possui neste, que o orienta preferencialmente em direção ao concreto, ao vivente e histórico.

A “analítica do Dasein”, instaurada por Heidegger – o último grande filósofo europeu – é, sem dúvida, um valioso aporte instrumental para a elucidação do modo existencial peculiar do homem americano. De fato, se, para levá-lo a cabo, nos ativéssemos à categoria do “existencial” básico da ontologia da existência, frustraríamos nosso labor hermenêutico, pois tal “existencial” – a angústia – não é o fundamental para o homem americano. Uma breve consideração nos convencerá disto. A suposição da “analítica do Dasein” é haver obtido e definido, de modo exemplar, a estrutura antropológica fundamental tomando um único e determinado estado de ânimo, o da angústiaAté agora, a antropologia filosófica – para a qual o homem é um compositum de corpo, alma e espírito – pretendia obtê-la através da determinação do conjunto dos fenômenos vitais em sua pluralidade e diversidade, no que se refere a seu conteúdo. Porém, dos estados de ânimo (que são um encontrar-se animicamente disposto, Befindlichkeiten), a analítica doDasein elege um que considera apropriado, e mesmo privilegiado pela sua originalidade, que é o da angústia, e pensa ter encontrado nele a estrutura essencial dos estados de ânimo. 


É desse modo que ela chegaria a estabelecer a estrutura essencial e universal do homem. Porém, é tão universal esta estrutura – o estado de ânimo da angústia – que sua primazia também se acuse no homem americano? Duvidamos disso. A existência européia talvez se angustie pelo seu poder ser porque ela chegou ao limite de suas possibilidades históricas, além do qual se insinua sua decadência e desagregação. Nós não estamos incluídos em tal situação. O estado de ânimo essencial do homem americano não é o da angústia, estado de ânimo depressivo, mas sim um que, na atual etapa de nossa evolução social e cultural, podemos considerar levantado, eufórico – ainda que com súbitas transições à perplexidade e ao desassossego – diante das enormes possibilidades que se lhe oferecem para plasmar um peculiar estilo de existência. É natural, portanto, que se preocupe em encontrar a forma, o módulo nos quais a existência história alcançará a plenitude, em um novo Ecúmeno.

Os estados de ânimo que se centram na angústia e no desespero operam o isolamento do homem da comunidade dos coetâneos, sua singularização. O estado de ânimo depressivo faz com que o existente se feche em si mesmo, apartando-se dos contatos da convivência. Isto pode acontecer, e acontece, no homem de comunidades que, no que toca à forma de vida e ao sistema social que imperou nelas, estejam em declive e careçam já de metas e tarefas históricas. O homem americano, imantado por um desideratum formativo e expressivo que transcende sua existência individual, aspira, pelo contrário à convivência, a se integrar vitalmente em sua comunidade. Esta, por sua vez, encontrando-se em processo de gestação, reclama o aporte do indivíduo para a programação de suas tarefas históricas. Daí que se venha perfilando na América Latina, com caracteres bem nítidos, um humanismo que é instrumental no que diz respeito à modalidade social e troquel estatal da convivência. É, pois, um humanismo de cunho propriamente americano.

Talvez nosso homem chegue a se concentrar um dia na estrutura, que para ele será essencial, de um estado de ânimo levantado, de alegria empreendedora, que o levará a consubstanciar-se cada vez mais com sua terra e sua natureza para a obtenção de uma original expressão cultural. (Toda cultura, quando é autêntica, é o resultado de um módulo expressivo indivisível do telúrico, de sua paisagem originária). É tal estado de ânimo levantado, de alegria matinal, o que o levará a apropriar-se triunfalmente das realidades de seu âmbito circundante e dos conteúdos de seu mundo histórico, aos quais imprimirá a forma de um estilo de vida americano.

Nosso homem não apenas leva seu olhar inquisitivo à cultura européia, cuja técnica assimilou, adaptando-a as suas necessidades, para lançar as bases de seu desenvolvimento industriar e explorar as riquezas de seu solo. Também sua inquietude – suficientemente justificada nesse caso – se polariza (com o mesmo impulso com que as raízes da árvore buscam o húmus profundo para se nutrir) com as culturas milenárias que floresceram em seu solo. É que sente a necessidade de restabelecer a relação, instaurada desde as bases de seu paideuma, com o telúrico e o cósmico, reencontrando-se na unidade de uma cultura da qual foi violentamente arrancado pela empresa da transculturação. Aspira, assim, a refazer, em função de seu habitat, sua concepção de mundo, integrada, sem dúvida, com os elementos resultantes do contato com a cultura ocidental e da nova situação histórica universal. Essa atitude será cada vez mais um fator integrador de nossa cultura, ao qual a filosofia latino-americana há de levar em conta para aceder à verdadeira dimensão de seu problema.

A conquista (e nos referimos à espanhola, pois a portuguesa, pelo seu caráter, é uma exceção no quadro dado por aquela) destrói as estruturas e os valores das civilizações pré-colombianas. Considerou a sobrevivência das culturas ameríndias como um obstáculo para a empresa de exploração e aproveitamento das grandes riquezas minerais que a América entesourava. Estas culturas (a azteca e a incaica), que constituem o húmus, o embasamento vivo, sobre o qual se instala precariamente a transculturação, ao cabo de quatro séculos tendem a unificar seu estrato desintegrado para afirmar-se como um todo original e distinto das estruturas e formas da cultura européia. Quando estas etnias soterradas, e os grupos sociais delas provenientes, aflorarem à superfície histórica, a fisionomia cultural da América Latina experimentará, sem dúvida, um câmbio, cujo alcance e significado precisos não é possível prever, mas que já é denotado pela tendência à afirmação de seu paideuma originário, da autonomia de seu âmbito anímico.

Sob à superestrutura da transculturação européia se agitam correntes poderosas e temporalmente remotas. Como nota o antropólogo norte-americano Ruediger Bilden (citado por Gilberto Freyre – Casa grande y Senzala, I, p. 201, Biblioteca de Autores Brasileños, Buenos Aires, 1942), estas correntes acabarão absorvendo a “débil e anêmica superestrutura transmutando-lhe os valores de origem europeus”. É hoje um indício eloqüente que o pensamento latino-americano, em seus núcleos mais representativos, comece a voltar-se contra o colonialismo cultural. O domínio dos conquistadores e colonizadores foi um fenômeno transitório, estranho à índole e tendências da alma americana.


Não nos tocou profundamente, sem dúvida, a visão de Hegel quando, em seusVorlesungen über die Philosophie des Geschichte, nos disse que a conquista e a colonização espanholas acarretaram a extinção das raças aborígenes do continente americano e de sua cultura. Segundo Hegel, “esta (menciona a incaica e a azteca) tinha que sucumbir logo se aproximasse dela o Espírito”, o qual ele faz o personagem principal da história universal. Mas o Espírito – este avatar europeu ocidental do logos – livre de toda sujeição à terra às potências da vida histórica, não foi nem podia ser um princípio determinante na cultura que vem se gestando na América Latina, cujo paideuma está dominado pelo telúrico e pelo alento imponderável do milenário passado cultural ameríndio. Do encontro destes fatores condicionantes com os valores da cultura ocidental surgirá uma Weltanschauungprópria, como expressão de uma modalidade vital e existencial distinta da ocidental.

Um produto novo e, ao mesmo tempo, muito velho, o medular do cultural remoto, que sobrevive latente, será possivelmente a resultante da conjugação da ratiodiscursiva, da atividade da consciência intelectual européia com um pensar intuitivo, de inspiração arcaica, gravitando cada vez mais em direção a formas autóctones. Nem a ratio, nem o Espírito, em seu formato hegeliano, tiveram até agora verdadeira vigência na mente da América Latina. As manifestações espirituais de cunho exclusivamente europeu – rápidas e sugestiva florações parasitárias – estarão sempre condenadas a uma vida fugaz, privadas do suporte do telúrico e de todo entroncamento vital no paideuma originário. 


O homem americano não pode existir no casulo de expressões culturais para cuja criação ele não contribuiu, e cujas raízes lhes são estranhas. Se no mundo ocidental, em que as categorias da ratio estão perdendo a validez universal que lhe outorgaram, o Espírito não pôde descrever com necessidade inelutável a órbita que Hegel lhe assinalou e supôs que lhe fosse própria, na nossa América ele foi tão somente um cometa errático apenas avistável, um personagem de todo estrangeiro e mesmo antinômico com relação aos próprios embriões culturais.

Afirmada a independência nacional dos povos latino-americanos, estes advêm, no domínio da ciência e da filosofia, à cultura ocidental, mas sem renunciar a seu peculiar modo de ser, e sem se considerarem imitadores nem porta-vozes servis do europeu. Assimilam a técnica européia – a qual já é um bem universal – assinalando-lhe um valor instrumental para a própria liberação no econômico e no social. Não poderia ser de outro modo já que a tendência hegemônica do capitalismo internacional na sua atual etapa imperialista, ao encontrar campo propício para seus empreendimentos nas imensas riquezas do solo americano e mão de obra explorável, interferiu na vida de nossos povos reduzindo-lhes ao colonialismo econômico. 


A atitude reativa ante esta situação há tempo começou a se expressar, no campo doutrinário, no marxismo. As massas exploradas já vêem neste, graças à nucleação de suas minorias conscientes, não apenas o fundamento teórico, mas também o instrumento, o método adequado para a luta pela sua liberação econômica. É assim que aceleradamente se vá formando nas massas da América Latina a consciência de sua situação social e do destino histórico com os quais se deparam. Elas são acessíveis ao influxo do marxismo pela afinidade entre este, a forma de organização social que propugna sua doutrina, e o espírito coletivista que imperava nos povos ameríndios, o qual sobrevive nas comunidades indígenas do Peru e do Altiplano boliviano. A organização agrária – o ayllu – na qual se nucleavam antes da conquista os povos ameríndios, possuía bastante similaridade (e não apenas formal, mas também de conteúdo) com os sistemas organizatórios que o marxismo preconiza, e ensaiou na Rússia e em outros países europeus.

Em síntese, a América Latina – designação que ainda não denota uma unidade étnica nem cultural, e sim o desideratum dessa unidade – recorre à filosofia européia e sua problemática para esclarecer a essência do homem americano, cujo módulo ontológico é expressão de sua mensagem histórica, e está marcado desde sempre pela marca telúrica que carrega em seu sangue. Toma daquela filosofia seu aporte instrumental e hermenêutico. Com seu auxílio, aspirou a estruturar suas instituições políticas e ir criando as formas estatais e de organização econômica adequadas para assegurar a convivência social de acordo com as exigências de seu próprio destino.

A cultura latino-americana não tem uma fisionomia já plasmada, de todo definida, senão uma ainda em processo de configuração, que cada vez mais irá acentuando suas características diferenciais. No quadro que ela há de oferecer ao futuro, fator integrante fundamental será a filosofia, na qual nossa cultura adquirirá consciência de si mesma e de sua orientação vernácula. Se não é possível determinar, de modo preciso e definido, o caráter e as notas constitutivas de uma filosofia latino-americana autônoma, como corpo de doutrinas, cabe, não obstante, assinalar um rumo, que não pode ser outro que o mesmo da cultura que está convocada a integrar e da qual será índice.
A filosofia da América Latina, como expoente da autonomia de uma cultura própria, tenderá cada vez mais a penetrar e expressar as possibilidades histórico-existenciais do homem e da comunidade americanos e de seu modo de ser autóctones.
Como Engels, o proletariado conheceu a crítica da economia política antes de encontrar Marx. E o fez, contudo, não em esboços teóricos, mas práticos. Afinal, toda prática viva, sempre, não passa de esboços.


Barricada da Rue Soufflot
Revolução de junho de 1848

Carta às esquerdas

Livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação de algumas ideias. A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. 

Não ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte importante. 

Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As principais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação? 

As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de violentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros atores e linguagens que as esquerdas não puderam entender. 

Entretanto, livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias:

Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo. 

Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, ele a reduz à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. 

Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas). 

Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente. 

Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito. 

Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar). 

Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um patrimônio das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar. 

Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas. 

Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca. 

Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima. 

A filosofia entre-nós

Roberto Gomes é um dos poucos filósofos brasileiros que fizeram a abordagem do tema sobre a existência de filosofia brasileira (não confundir com filosofia escrita por filósofo brasileiro), questinando se a temos ou não, como discorre na sua obra CRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUIM, 8ª ed. editada pela Edições Criar, Curitiba, 1986, no seguinte trecho - pags. 55-57:


“Creio que possamos admitir pacificamente a existência de filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo. Há filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entre-nós, manifestando sua presença. Talvez um corpo estranho, mas presente. Não só contamos com documentos a respeito, documentos com data marcada, como encontramos revistas e livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se congressos, encontros, debates, e nos currículos universitários a filosofia consta obviamente – cada vez menos, mas consta. Tudo isso indica que a filosofia está entre nós. Como um parente distante, uma tia talvez, que chega e vai ficando – mas, seja como for, entre nós.

(...) Introjetou-se aqui – prossegue Gomes – a função do dependente: compreender as idéias alheias e, curiosamente, reduzir a história da filosofia no Brasil à narrativa de nossa “capacidade de assimilação”e de nosso “quociente de sensibilidade espiritual”, quando, numa adequada compreensão histórica, caberia, isto sim, extrair desta constatação o significado mais profundo: os modos de falsificação dos quais temos sido vítimas e co-autores. “O simples fato da questão (como ser original) – nota Antonio Candido – nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas da criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressivos) sempre reconhecemos como natural a nossa inevitável dependência”.

Com a naturalidade com que esquecemos de ser originais – enfatiza Gomes - , deixamos de de observar que um pensamento alheio se enraíza e tem em mira uma situação histórica diversa daquela na qual nos encontramos. O que se evidencia pela preocupação de Luís W. Vita com nosso “grau de compreensão” do pensamento alheio. Esquecemos igualmente que idéias vitais para um europeu ou norte-americano poderão ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibrados e mambembes.

Seja como for – ressalta Gomes -, há filosofia entre nós. Lembro, no entanto, que isso não esgota a problemática a respeito de uma filosofia brasileira, propondo, no mais das vezes, seu avesso: os sinais de seu esquecimento. Carentes de melhor distinção entre estas duas questões – "filosofia entre-nós" e "filosofia nossa" – encontramos em nossos historiadores de idéias uma marca constante: a quase totalidade do que se escreveu sobre o tema baseia-se num equívoco primário. Este: confundir o valor ou existência de livros de filosofia escritos por brasileiros, com o valor ou existência de uma filosofia brasileira”.

Nem tudo que é sólido desmancha no ar



COMO A MAIS ABSOLUTA dominação sobre os homens continua a ser exercida por meio de processos econômicos de exploração – mesmo sobre a crescente parcela da humanidade que está sendo rifada precisamente porque deixou de ser economicamente rentável –, o Manifesto Comunistaainda cruzará o milênio como uma mensagem na garrafa. Muito mais atual inclusive do que há 150 anos, quando a proletarização dos pobres e demais expropriados ainda não parecia irreversível, a ponto de considerável número deles procurar escapar à danação do assalariamento – só viver se encontrar trabalho, e só encontrar trabalho se este incrementar o valor do capital – reagrupando-se à margem da ordem burguesa nascente na forma de comunidades cooperativas, por meio das quais sonhavam recuperar a antiga independência econômica perdida. Porém a Modernidade anunciada pelo Manifesto viera também para abortar o não-lugar dessa utopia. Com a atual mundialização do capital enfim, ninguém mais está fora, sobretudo as grandes massas precarizadas e desconectadas na corrida ao corte de custos: em tempos de pressões competitivas globalizadas, literalmente não têm mais para onde ir. Nunca estiveram tão irremediavelmente incluídas.

Continuamos portanto na mesma, a mesma desgraça econômica de sempre, desde que a terra, o trabalho dos homens e a moeda de troca entre eles foram transformados em mercadoria, como qualquer outro artigo de comércio. Mas também continuamos na mesma numa outra acepção igualmente sombria da expressão, por assim dizer mítica. Era o que Marx e Engels queriam dizer, no momento mesmo em que chamavam a moderna exploração econômica pelo nome, ao declarar que a história de todas as sociedade tinha sido até então a história da luta de classes. Pois bem: se toda a história é história da luta de classes é porque a história sempre foi a mesma coisa, numa palavra, pré-história. Como de resto se pode ler num dos rascunhos preparatórios doManifesto: "assim como a forma mais recente da injustiça lança luz sobre todas as demais, a crítica da economia é urna crítica da história no seu todo, de cuja imobilidade a classe dos capitalistas, como outrora seus antepassados senhor de escravos, patrício romano, barão feudal –, deriva o seu privilégio (...) 


O silêncio arcaico das pirâmides repercute o barulho infernal do sistema de fábricas". Não por acaso – numa conhecida interpretação – para o poeta das Flores do mal (livro rigorosamente contemporâneo do Manifesto Comunista), essa mesma e famigerada Modernidade era a cifra de um mundo sempre-igual de ruínas recorrentes, as destruições criativas, no vocabulário da apologética mais recente, próprias de um sistema que não pode subsistir sem a morte precoce de seus instrumentos de reprodução. Assim, no suposto auge renascentista que estaríamos atravessando – a chamada globalização, na opinião apoteótica de um varão sabedor local –, no rumo sabe-se lá de que apogeu econômico futurista, não se achará muito mais do que outro espasmo pré-histórico do sistema tautológico a que se resume a absurda e interminável acumulação de capital comandada pelo único e exclusivo fim de se acumular mais capital.

* * *

Tudo isso, não obstante, é fato que Marx e Engels não resistiram à tentação progressista da época, deixando-se impressionar pela nova prosa modernista do mundo, pela irresistível escalada dos preços baratos da mercadoria burguesa tomando de assalto quantas muralhas da China lhe surgissem pela frente. E como poderiam, naqueles tempos de legitimação revolucionária dos acumuladores de dinheiro e poder? Mas ocorre que deslizando pelo plano inclinado da modernolatria deram com a plataforma de uma outra humanidade, a qual corresponderia enfim verdadeiramente ao seu conceito. É que entreviram naquela novidade avassaladora do capitalismo com relação às civilizações anteriores a chance providencial de quebrar o feitiço pré-histórico da alienação.


Nunca será demais evocar o essencial dessa reviravolta. E para realçar a nota dissonante do Manifesto neste final de século de harmonia extorquida, por que não evocá-lo nos termos mesmos das teorias sistêmicas em voga? Com efeito, não é muito difícil admitir que a evolução histórica da espécie humana sempre se deu por uma adaptação passiva do quadro institucional da sociedade à pressão das forças produtivas. A ser assim, a inovação da modernidade capitalista reside na circunstância, sem dúvida, inédita de que pela primeira vez essa pressão material não só é auto-impulsionada pelo imperativo da acumulação infindável mas solapa, também em permanência, as formas culturais de legitimação social herdadas, provocando por sua vez novas rodadas de adaptações passivas. 


Ora, ao contrário de uma solene declaração burguesa de reconhecimento e sanção de tendências históricas consumadas, o contradiscurso do Manifesto simplesmente demonstra que contra tais fatos há argumentos, além do mais fornecidos por eles mesmos, a saber: esse mecanismo de reprodução social em que a iniciativa cabe apenas à inovação econômica define justamente a pré-história da humanidade e, portanto, o capitalismo ele mesmo é pré-histórico, não espantando que nele ainda se apresente como um destino o cego movimento da economia; e tal engrenagem não saltará dos trilhos enquanto uma rotação ciclópica de eixo não passar o controle prático das transformações estruturais da sociedade para as mãos de indivíduos autônomos e cooperativos, encerrando assim a idade mítica de submissão absoluta do metabolismo social às suas condições materiais de reprodução. (E pensar que hoje quem se ajusta, e não por acaso mediante sucessivas e infinitesimais adaptações passivas, acredita que nesse último enunciado jurássico da causalidade sistêmica se concentra a quintessência do materialismo histórico, em nome do qual de alma leve pede a benção aos vencedores.)


Está claro, porém, o encanto não se romperia por simples decreto emancipatório; não basta apontar para a fantasmagoria para que ela se dissipe. Além de ser materialmente tangível, a peça subversiva que faria girar a porta de saída da pré-história precisaria pertencer, ela mesma, ao encadeamento arcaico que mandaria pelos ares. Estava assim designado o lugar a ser ocupado pela luta de classes: à mola perpetuadora da eterna recaída na barbárie seria delegada a tarefa de encaixar a alavanca numa muralha aparentemente sem brecha, se é fato que haveria mesmo um grão de transcendência na assimetria brutal de poder social entre as classes em luta. Nesse entorse da pré-história, Marx e Engels apostaram todas as fichas da emancipação. Ou quase todas: é bom não esquecer a ressalva acerca da ruína comum que também espreita o conflito de morte nessa guerra social por onde corre ainda a pré-história da humanidade. 


Como se essa reviravolta não bastasse, Marx e Engels repetiram uma segunda vez, naquele mesmo Manifesto, a prova do caráter pré-histórico do capitalismo: sacudida por crises periódicas em que o capital torna redundante sua própria fonte de valorização queimando força produtiva, a sociedade burguesa "vê-se subitamente reconduzida a um certo estado de barbárie" que se abate sobre os indivíduos como outrora a fome e as guerras de extermínio, só que agora na forma invisível de poderes subterrâneos autônomos e incontroláveis.


Nessa segunda prova dos nove – a experiência da impotência social máxima no confronto com as forças anônimas da exploração – ressaltava novamente a novidade histórica do capitalismo: sob o invólucro ultramoderno do progresso, a derradeira sociedade primitiva, mergulhada na inconsciência coletiva do desastre que se avizinha. Digamos então que o essencial do Manifesto reside na figuração contemporânea do nexo entre essas duas formas pré-históricas da opressão: a primeira, contrapondo campos sociais antagônicos e visivelmente personificados; a segunda, a dominação, sem sujeito designado, exercida sobre o conjunto da sociedade pela economia de mercado autonomizada, a ponto de transformar os seus beneficiários diretos em meras funções de seu próprio aparelho de produção. Uma dimensão não vai sem a outra, assim como o proletariado do Manifesto se exaure enfrentando ora a burguesia, ora o capital, do qual a primeira é "portadora involuntária e incapaz de reação", na fórmula do Manifesto, mas nem por isso desprovida de vontade e do poder de disposição sobre os homens que lhe confere um sistema que, por sua vez, a sujeita se não quiser perecer, como aliás se pode ler noutro rascunho famoso redigido dez anos depois, os Elementos fundamentais para uma crítica da economia política: "na redução dos homens a simples agentes do mercado se esconde a dominação de homens sobre homens. Porém a classe dominante não é apenas dominada pelo sistema, domina através do sistema. 


A tendência objetiva do sistema é redobrada e sancionada pela vontade constante daqueles que o servem. Como é cego, o sistema é a própria dominação, e por isso mesmo funciona sempre a favor dos dominantes, mesmo quando os ameaça de ruína; os trabalhos de parto a que eles se entregam nos momentos de crise atestam o pleno conhecimento desse fato".

* * *

Estando assim entrelaçadas as duas dimensões desse diagnóstico do capitalismo como derradeira sociedade pré-histórica – ele mesmo cifra de uma ruptura de época tanto mais paradoxal por implicar um momento de auto-reflexão da espécie humana sob o mais espesso invólucro de uma segunda natureza –, compreende-se que nenhuma das duas pode sobreviver à morte da outra. Os 30 anos de calmaria que sucederam à última grande guerra – efeito anestésico da Guerra Fria, do Welfare europeu e da industrialização consentida da periferia –, varreram da memória o abismo entreaberto pelo apocalipse nazista, na verdade cavado pela mítica espiral da normalidade burguesa, o envolvimento pré-histórico da luta de classes na engrenagem da exploração econômica. Há menos de duas décadas rompeu-se o dique novamente. Como um sinal de alarme entre duas catástrofes, o Manifesto Comunista ainda contínua soando, ontem como hoje, para despertar a humanidade do mesmo pesadelo ancestral da dominação.

O déficit da esquerda é organizacional


Para os revolucionários inscritos na tradição marxista colocam-se atualmente problemas inteiramente novos. 
Não é a primeira vez que, nos últimos cento e cinqüenta anos, uma conjuntura deste tipo se instaura (nem será, talvez, a última). Mas, certamente, nenhuma das conjunturas anteriores revestiu-se da dramaticidade com que se apresenta a situação atual. 

Com efeito, o exaurimento de todas as possibilidades civilizatórias do capital alcança hoje um nível tal que a manutenção, ainda que seja por uns poucos decênios, da ordem capitalista implica um grau de violência e barbarização que tornará inviável a sobrevivência da humanidade (o desastre ecológico é apenas um signo, embora crucial, das perspectivas horrorosas que se põem a médio, senão a curto, prazo). E isto se dá na quadra histórica, emergente na transição dos anos 1970 aos 1980, em que o projeto revolucionário fundado em Marx (e, de fato, o processo revolucionário real que tomou sua primeira forma na Revolução de Outubro) registrou derrotas históricas de larga incidência.

Em poucas palavras: nunca foram tão ameaçadoras as perspectivas imediatas da vida da humanidade e, simultaneamente, nunca o movimento revolucionário inspirado em Marx viu-se diante de tantas dificuldades. Precisamente por isto, vale a pena provocar a imaginação com um breve exercício de polêmica:   nosso – dos revolucionários – déficit não é teórico, é organizacional.

A potencialidade teórica do marxismo

É enorme a bibliografia sobre as crises do marxismo e, sem prejuízo de observações pertinentes que nela se encontram, quase toda possui um denominador comum: identifica a crise de uma ou outra vertente da tradição marxista (que, de fato, é um acervo ídeo-teórico e político muito diferenciado) com a crise do marxismo. Se houve, e de fato houve, uma paralisia no desenvolvimento da tradição marxista no segundo terço do século XX – aqui, as hipotecas derivadas do stalinismo foram decisivas -, paralisia que compeliu Lukács a reclamar, nos anos 1960, um "renascimento do marxismo", o que os anos posteriores a 1970 revelaram foi a crise terminal de uma vertente particular (certamente relevante) daquela tradição: o marxismo-leninismo oficial, prolongamento do "marxismo vulgar" dominante na Segunda Internacional. [1]

Mas, marginalmente ao marxismo-leninismo e após a denúncia do "culto à personalidade" (1956), outras vertentes marxistas se desenvolveram (ou continuaram se desenvolvendo) e constituíram um acúmulo ídeoteórico capaz de propiciar um conhecimento social adequado. Um exame cuidadoso da documentação produzida por marxistas de diferentes matizes, a partir dos anos 1950, revela a emersão de um estoque crítico que, depois dos anos 1970, só fez crescer. Ao contrário do que sustenta o senso comum das ciências sociais acadêmicas e do que é veiculado pelos meios de comunicação social, a elaboração teórica de extração marxista tem se revelado capaz de análises extremamente corretas (ou seja: validadas pela dinâmica social real) dos processos histórico-sociais dos últimos trinta anos. Não é este o lugar para oferecer provas bibliográficas desta afirmação, mas basta cotejar, por exemplo, a visão da dinâmica econômico-social do sistema capitalista nos últimos vinte e cinco anos oferecida por diferentes teóricos marxistas (Mandel, Mészáros, Chesnais, Husson et alii) com aquela traçada pelos apologistas do capital para aquilatar da atualidade e da atualização da capacidade heurística do referencial analítico elaborado originalmente por Marx.

É evidente que este efetivo desenvolvimento de vertentes da tradição marxista está longe de significar que inúmeros complexos problemáticos, que peculiarizam a atual quadra histórica, estejam minimamente equacionados [2] . Há toda uma série de níveis societários - no plano da cultura, no espaço da vida cotidiana, no campo das relações entre ciência e ética, nos domínios da demografia, da territorialidade etc. – em que se acumulam dilemas e impasses sobre os quais o estoque de conhecimentos é extremamente assimétrico em comparação à sua magnitude. As lacunas teóricas existentes são indiscutíveis e não há por que dissimulá-las.

Mas, ainda aqui, cumpre sublinhar que carências crítico-cognitivas de monta afetam o conjunto das teorias sociais contemporâneas e são imensamente mais expressivas no campo dos saberes funcionais à ordem do capital – que, no plano teórico-social, mostra-se cada vez menos apta a engendrar concepções que resistam às fortes tendências constitutivas do que Lukács, na esteira de Marx, designou como "decadência ideológica".
Com estas considerações – necessariamente breves e esquemáticas –, o que pretendo ressaltar, com ênfase, é que as dificuldades com que se defrontam hoje os revolucionários que se reclamam vinculados à tradição marxista não derivam essencialmente de uma "crise teórica". A potencialidade teórica da tradição marxista tem resistido à prova da história.

Teoria e política

Em alguma passagem de seus escritos, P. Togliatti anotou: "quem erra na análise, erra na ação". A observação é crucial para os revolucionários (como, aliás, já o sabia Marx): para aqueles que se propõem como tarefa a supressão da ordem do capital e a ultrapassagem da sociedade burguesa, o conhecimento verdadeiro da realidade social é, como Lukács esclareceu desde 1923, uma questão de vida ou de morte. Isto equivale a dizer que, para os revolucionários, a formulação de projetos e o estabelecimento de estratégias no marco das lutas de classes supõem o máximo conhecimento possível da dinâmica social concreta.
Esta determinação, que parece incontestável, requer três notações minimamente convalidadas pela experiência histórica. A primeira é que tal determinação diz respeito àqueles que se empenham na superação da ordem do capital – a manutenção e a gestão desta ordem reclamam, obviamente, conhecimentos e saberes; entretanto, a natureza destes pode ser meramente manipulatória e instrumental; já o empenho exitoso na desarticulação da sociedade burguesa no rumo das transformações socialistas exige o conhecimento teórico rigoroso da estrutura e da dinâmica da vida social. Em segundo lugar, ela se refere aos segmentos dirigentes dos movimentos revolucionários – a elevação do nível de consciência das massas, sempre potenciado nas lutas e em especial nas conjunturas revolucionárias, não elimina a efetiva fronteira distintiva (sempre móvel) entre elas e as suas vanguardas. Finalmente, é preciso lembrar que nenhum processo revolucionário se deflagra contando com um conhecimento teórico exaustivo e total das suas possibilidades e limites – se assim fosse, certamente a história moderna não registraria nenhuma revolução.

É necessário acrescentar, porém, que aquela determinação – quem erra na análise, erra na ação – está longe de significar que quem acerta na análise tem êxito na ação revolucionária. Para os revolucionários, o acerto na análise (vale dizer: um acúmulo crítico que garanta o máximo conhecimento possível da realidade social) é condição necessária para o êxito da intervenção política, mas não é condição suficiente. A política (revolucionária) não se reduz à teoria (revolucionária) ou, mais exatamente, a política não é teoria.

Na tradição marxista, foram freqüentes os equívocos derivados de uma interpretação simplista da decantada "relação entre teoria e prática", que não poucas vezes conduziram – confundindo unidade com identidade – a desastres simultaneamente teóricos e políticos. Por isto mesmo, é preciso afirmar com vigor que teoria e política configuram âmbitos distintos, mesmo que não divorciados, na totalidade das formas pelos quais os homens e as mulheres procuram compreender e transformar o mundo. No âmbito da teoria, o conhecimento verdadeiro é um fim; no âmbito da política, o conhecimento é um meio [3] . Na teoria, importa a verdade; a política é o campo das relações de força. As conexões entre teoria e intervenção política não são unívocas nem diretas, até porque suas dinâmicas são estruturalmente diversas - a temporalidade da ação política não é a da elaboração teórica (antes, é reiteradamente emergencial).

Nada disso aponta no sentido de subestimar o peso do conhecimento teórico na intervenção política revolucionária – ao contrário, decorre desta linha de argumentação a conseqüência da mais exigente qualificação das vanguardas e de seus representantes mais destacados, notadamente quando se verifica que, no decurso do tempo, esta qualificação veio registrando uma curva descendente [4] . Mas, sem qualquer concessão a um weberianismo ocasional, se se constata a existência de "duas vocações", a teórica (científica) e a política, que não se excluem, mas que, se não coincidem necessariamente nas mesmas figuras (como, para citar tipos diversos, em Lênin, Mariátegui, Togliatti, Cunhal), há que dizer que elas podem articular-se no "intelectual coletivo" que as vanguardas organizadas devem estruturar.

Esta argumentação, porém, aponta num sentido preciso (e obviamente polêmico): não são as lacunas teóricas que estão na raiz das dificuldades políticas com que se vêem a braços os revolucionários de inspiração marxista. A paralisia que enfermou a vertente teórica dominante da tradição marxista ao tempo do stalinismo (o marxismo-leninismo oficial), bem como outros esclerosamentos, certamente foi um componente ponderável a embaraçar o desenvolvimento do movimento revolucionário – que, por outro lado, nunca se reduziu aos processos de transformação social substantiva direcionados por vanguardas de corte marxista. O insuficiente conhecimento de que esta tradição dispõe sobre vários domínios da vida social contemporânea decerto incide negativamente na potenciação de vetores revolucionários. Nada disto, todavia, é o determinante essencial das dificuldades atuais - até porque, como se referiu, a massa crítica produzida nos últimos trinta anos, no marco da tradição marxista, está longe de ser negligenciável. O determinante essencial parece residir na problemática da organização política dos revolucionários.


O déficit da organização política

A passagem de Lenin é conhecida à exaustão: "sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário" – mas nem sempre se leva em conta que ela vem inscrita num texto (Que fazer?) em que o futuro líder da Revolução de Outubro está tematizando, centralmente, o problema da organização política . Não me parece adulterar sua tese interpretá-la como exigindo a referência teórica (que, para ele, estava dada: o marxismo) para que a organização política (o partido) pudesse direcionar o processo revolucionário na Rússia czarista - mas a centralidade, no processo revolucionário, cabe à organização e à direção política.
Recordemos que o texto lenineano (fundante de um partido novo ) inscreve-se nas polêmicas que se travaram num arco temporal que pode ser claramente delimitado: o período que vai do Bernstein-Debatte (a segunda metade dos anos 1890) até a elaboração trotskiana do Programa de transição (às vésperas da Segunda Guerra Mundial). Aí se compreendem a crise da Segunda Internacional, a Revolução de Outubro, o fracasso da revolução no Ocidente, os giros da Terceira Internacional, a emersão do fenômeno stalinista etc. As riquíssimas polêmicas dessas quase quatro décadas tiveram sempre, explícita ou tacitamente, a centralidade da organização política (as vanguardas e sua relação com as massas) como elemento constitutivo. Todos os confrontos, colisões, divergências etc. – expressando decerto diferenças nas concepções teóricas – relacionavam-se à problemática da organização política. Elas são nítidas nas formulações (e práticas) de Kautsky, de R. Luxemburgo, de Lênin e mesmo de Trótski e Bukharin, apenas para referir os seus protagonistas mais conhecidos[5] . Depois deste período de polêmicas, praticamente não se introduziu nada de novo nos elementos nelas contidos.

A recorrência a tais polêmicas e, igualmente, às soluções que nelas foram propostas é, obviamente, de capital importância para enfrentar as dificuldades atuais. E, sendo procedente a hipótese com que aqui se trabalha, segundo a qual o "núcleo duro" dessas dificuldades radica na problemática da organização política, de tanto maior relevo se reveste a análise daquelas polêmicas e das implicações práticas das soluções nelas aventadas.

Todavia, e este é o ponto que me interessa salientar, a análise crítica dessa herança do movimento revolucionário, realizada com o estudo da experiência histórica do período que lhe corresponde (que tanto condicionou aquela herança quanto foi por ela modificada), pouco pode contribuir para romper com os nós que embaraçam hoje a atividade revolucionária. Com certeza, a meu juízo, essa análise reafirmará seja a indispensabilidade do máximo conhecimento possível da realidade social, seja a centralidade da organização política – mas não nos dirá nada acerca das formas concretas dessa organização nem sobre a sua articulação com instâncias e sujeitos sociais. Para ser bem claro: a análise crítica daquele legado haverá somente de nos indicar, à exceção dos dois constitutivos acima mencionados (o conhecimento e a organização política), a que herança devemos renunciar. Extrairemos, por exemplo, lições de Rosa Luxemburgo (quando alertava que a ditadura do proletariado poderia se tornar uma pura e simples ditadura) e de Trótski (quando denunciava/analisava a burocratização) – mas não extrairemos elementos positivos para uma refundação político-organizacional.

De fato, os dois constitutivos que deverão estar presentes para que se possa promover uma ofensiva socialista expressam os elementos universais do processo revolucionário conducente à superação da ordem do capital. Mas a sua particularização conseqüente com a quadra histórica contemporânea supõe e implica uma concretização para a qual a experiência passada pouco pode contribuir. Os problemas inteiramente novos, a que me referi na abertura desta rápida comunicação, escapam ao âmbito próprio daquela experiência – que, entretanto, permanece ainda como a referência básica do movimento revolucionário.

Um mundo novo

A constatação pode ser acaciana, mas deve ser repetida: as transformações societárias que se explicitaram nos últimos trinta anos configuraram um mundo novo.
A análise deste mundo revela que a teoria social de Marx é completamente atual: o modo de produção capitalista, em todas as diversas formações sociais existentes, obedece à dinâmica que foi idealmente (teoricamente) reproduzida n' O capital: exploração do trabalho, crescimento destrutivo e autodestrutivo, concentração e centralização de riqueza e poder, contradições e antagonismos etc., com toda a sua coorte de conseqüências deletérias no plano sócio-cultural e humano. A análise marxista do capitalismo contemporâneo, registrando novos fenômenos e processos – e esta análise vem sendo feita –, não infirma nenhuma das descobertas estruturais de Marx; mas revela que elas não dão plena conta das determinações novas desse capitalismo. Esta análise demonstra que as determinações teóricas de Marx, estruturalmente válidas, não são, apenas elas, suficientes para apreender o capitalismo dos nossos dias.
O desenvolvimento recente deste capitalismo introduziu profundas mutações na sociabilidade própria à sociedade burguesa. E se não afetou as bases da pertinência de classe (a propriedade) e se, menos ainda, reduziu a gravitação das lutas de classes no processo social, alterou substancialmente as modalidades pelas quais a estrutura e o movimento daquela sociabilidade são tomados pela consciência de homens e mulheres.

As transformações na vida cotidiana (na constelação familiar, no espaço da reprodução imediata dos indivíduos etc.), na distribuição espacial dos indivíduos e grupos sociais, na organização e na repartição do tempo de trabalho, no controle do tempo fora do trabalho, os novos mecanismos de manipulação ideológica, seus impactos sobre os costumes – tudo isto, e muito mais, alterou qualitativamente as condições de constituição da consciência da massa dos homens e das mulheres.

É somente a partir da consideração desse mundo novo – e os traços dele aqui esboçados já se encontram minimamente estudados – que se pode intentar, de modo sério, encontrar soluções conducentes à criação de instrumentos de organização política eficazes para operar uma ofensiva socialista. Porque, e esta é uma determinação essencial, se as dificuldades que embaraçam a atividade revolucionária são notáveis, igualmente notáveis são as motivações reais que permitem a mobilização e a organização de largos contingentes de homens e mulheres contra a ordem do capital. Em todos os quadrantes, do Norte ao Sul, o capitalismo contemporâneo enfrenta uma insatisfação generalizada e uma resistência ora difusa, ora ganhando expressões corporativas e particularistas. Molecularmente, a ordem do capital tem exponenciado os seus coveiros – mas este movimento real permanece espartilhado nos limites da ordem porque carece de instâncias universalizadoras.

E estas não serão criadas somente a partir da análise crítica da experiência anterior do movimento revolucionário. O mundo novo requer, também, invenção.


A invenção de um novo padrão organizacional

Lênin não foi citado por acaso nas páginas anteriores. Também ele se situa, historicamente, num momento de inflexão do capitalismo (a emergência do imperialismo) e também para ele se punha um problema específico: encontrar um instrumento que tornasse interventiva a referência teórica de Marx. E Lênin inventou esse instrumento: o partido novo.

Cuidemos de evitar mal-entendidos. Lênin – de quem, em 1924, Lukács salientava o realismo e o antiutopismo – não inventou o partido arbitrariamente, mediante simples volição individual (também esta invenção respondia a possibilidades históricas concretas). Ele não só dispunha de uma análise concreta da formação social para a qual dirigia suas energias (recorde-se O desenvolvimento do capitalismo na Rússia ) e de um substantivo conhecimento das experiências (anteriores e contemporâneas) dos movimentos revolucionários: incorporava criticamente os desdobramentos da teoria e da ciência que lhe eram contemporâneas [6] . E mais: assimilava sem preconceitos o que havia de válido na reflexão alheia, desenvolvia pistas referidas por outrem, inscrevia-se num debate coletivo e dava formulação rigorosa ao que nele emergia.

É deste tipo de invenção que o movimento socialista revolucionário de inspiração marxista necessita hoje. O conhecimento da herança já referida (de que Lênin é parte importante, mas não única) é, como sublinhei, indispensável para realizá-la – mas está longe de ser o bastante. Essencialmente, a invenção de um novo padrão político-organizacional e a formulação de seus parâmetros, que permitam direcionar para um processo revolucionário as generalizadas insatisfações e resistências em face da ordem do capital será resultado de uma elaboração coletiva, capaz de incorporar a massa crítica de que já dispomos sobre o capitalismo contemporâneo e de apreender as/responder às formas atuais da sociabilidade.

Será uma tarefa muito mais complicada que a realizada por Lênin – devendo conjugar, num registro antes desconhecido, a teoria revolucionária atualmente acessível com demandas muito diferenciadas e pulverizadas. Mas é esta mesma conjugação que poderá unificar (sem identificar, com a diluição das suas especificidades) tais demandas, situando-as numa perspectiva universalizante que supere particularismos e corporativismos. E trata-se de tarefa factível desde que, aproveitando as lições do passado, deixemos de tomá-las como exemplos – e este é, como diria o velho Florestan, o buzílis da questão: a incontornável referência à herança não pode hipotecar a experimentação necessária.

Num ensaio de mais de vinte anos, Perry Anderson observava, com a sua conhecida argúcia, que o chamado marxismo ocidental tinha como traço pertinente o nunca haver conseguido vincular-se a movimentos de massa. Sem exagero, quer-me parecer que, nos dias correntes, o problema não reside em o marxismo tout court estar desvinculado de movimentos de massa – o problema está em que movimentos de massa são raros.

A invenção de um novo padrão de organização política, se, de um lado, é condicionada pela existência desses movimentos, de outro pode fomentá-los e torná-los mais densos.

Não é possível sequer prospectar se e quando uma tal invenção terá lugar – ainda que, para ela, estejam dados muitos elementos. Mas, salvo grave erro de avaliação, é possível concluir assegurando que da ultrapassagem deste nosso déficit organizacional depende, em escala decisiva, a possibilidade de travar e reverter a barbárie capitalista.



1. Tratei desta questão no meu ensaio Crise do socialismo e ofensiva neoliberal (S. Paulo: Cortez, 2007).
2. Por exemplo: ainda carecemos de análises suficientemente exaustivas sobre a crise do "socialismo real" ou do tipo de desenvolvimento social que se verifica na República Popular da China.
3. É sempre saudável recordar que o esforço teórico é dinamizado por dúvidas e perguntas, ao passo que a direção da atividade política demanda convicções (no caso da atividade revolucionária, preferencialmente fundadas em conhecimento teórico).
4. Uma imagem-limite desse declínio desolador se obtém quando se confronta o Comitê Central dirigido por Lênin e o Comitê Central secretariado por Brejnev – mas o fenômeno operou universalmente, quase sem o registro de exceções. E transcendeu o espaço da política revolucionária:   ao passo que G. Washington lia Rousseau, L. Johnson deleitava-se com o pato Donald.
5. As importantíssimas reflexões de Gramsci pertencem a este rico período em que a tradição marxista tanto se desenvolveu – entretanto, só se tornaram conhecidas e influentes muito posteriormente.
6. Ainda que nem sempre tenha sido bem sucedido nesta interlocução, como o atesta Materialismo e empirocriticismo.

Las consecuencias mundiales de la decadencia de Estados Unidos


Hace 10 años, cuando algunas personas y yo hablábamos de la decadencia de Estados Unidos en el sistema-mundo, a lo sumo nos topábamos con sonrisas de condescendencia ante nuestra ingenuidad. ¿No era Estados Unidos la única superpotencia, involucrada en cada uno de los rincones más remotos de la Tierra, haciendo lo que quisiera casi todo el tiempo? Ésta era una visión compartida a todo lo ancho del espectro político.
Hoy, la visión de que Estados Unidos está en decadencia, en seria decadencia, es una banalidad. Todo el mundo lo dice, excepto algunos políticos estadunidenses que temen ser culpados por las malas noticias de la decadencia si la discuten. El hecho es que prácticamente todo el mundo cree hoy en la realidad de esa decadencia. Sin embargo, algo que está menos discutido es cuáles han sido y serán las consecuencias en el mundo de esta decadencia. La decadencia tiene raíces económicas que siguen su curso. Pero la pérdida del cuasi monopolio del poder geopolítico que Estados Unidos ejerció alguna vez tiene consecuencias políticas importantes en todas partes.

Empecemos con una anécdota contada en la sección de Negocios del New York Times el 7 de agosto. Alguien que gestiona inversiones en Atlanta apretó el botón de pánico en nombre de dos acaudalados clientes que le dijeron que vendiera todas sus acciones y que invirtiera el dinero en un fondo común de inversión más o menos blindado. El gestor dijo que, en los 22 años que llevaba en el negocio, nunca había recibido una petición como ésa. Era algo sin precedentes. El periódico le llamó a esto el equivalente “Wall Street” de la opción nuclear. Iba en contra del consagrado consejo tradicional de asumir un enfoque firme y constante conforme se avanza ante los vaivenes del mercado.
Standard & Poor’s ha reducido su calificación crediticia de Estados Unidos de AAA a AA+, también algo sin precedentes. Pero esto fue una acción bastante leve. La agencia equivalente en China, Dagong, ya le había reducido la credibilidad crediticia a Estados Unidos en noviembre pasado a A+, y ahora se le redujo a A-. El economista peruano Oscar Ugarteche ha declarado que Estados Unidos es una república bananera. Dice que Estados Unidos ha optado por la política del avestruz para no espantar a las expectativas(de crecimiento).

Y en Lima, la semana pasada, los ministros de finanzas de los estados sudamericanos, reunidos, han discutido urgentemente cómo aislarse de la mejor manera ante los efectos de la decadencia económica de Estados Unidos. El problema para todo el mundo es que es muy difícil aislarse de los efectos de la decadencia estadunidense. Pese a la severidad de su decadencia económica y política, Estados Unidos continúa siendo un gigante en el escenario mundial, y cualquier cosa que pase ahí sigue provocando grandes olas en todas partes.

Con toda certeza, el impacto más fuerte de la decadencia estadunidense ocurre y seguirá ocurriendo al interior de Estados Unidos. Los políticos y los periodistas hablan abiertamente de la disfuncionalidad de la situación política estadunidense. ¿Pero qué otra cosa puede ser sino disfuncional? El hecho más elemental es que los ciudadanos estadunidenses están aturdidos por el mero hecho de la decadencia. No es sólo que los ciudadanos estadunidenses sufran ellos mismos, materialmente, por la decadencia, y que estén profundamente asustados de que sufrirán más conforme el tiempo avance. Es que habían creído a nivel muy profundo que Estados Unidos es la nación elegida, designada por Dios o la historia para ser el país modelo en el mundo. El presidente Barack Obama sigue tratando de tranquilizarlos diciendo que Estados Unidos es un país triple A.

El problema para Obama y para todos los políticos es que muy pocas personas siguen creyendo eso. El golpe al orgullo nacional y a la imagen propia es formidable, y es también muy repentina. El país está tomando muy mal este golpe. La población busca chivos expiatorios y ataca muy a lo loco, y no con demasiada inteligencia, a los supuestos culpables. La última esperanza parece ser que alguien sea culpable, y como tal el remedio sea cambiar a las personas con autoridad.

En general, las autoridades federales son vistas como las que hay que culpar: el presidente, el Congreso, ambos partidos principales. La tendencia es muy fuerte hacia tener más armas a nivel individual y a ejercer un recorte del involucramiento militar fuera de Estados Unidos. Culpabilizar de todo a la gente de Washington conduce a una volatilidad política y a luchas intestinas locales cada vez más violentas. Estados Unidos es hoy, diría yo, una de la entidades políticas menos estables en el sistema-mundo.

Esto hace de Estados Unidos no sólo un país cuyas luchas políticas son disfuncionales, sino uno que es incapaz de consolidar mucho poder real en la escena mundial. Entonces, hay una caída importante en la fe en el país, y en su presidente, por parte de los aliados tradicionales de Estados Unidos fuera y por la base política del presidente en casa. Los periódicos están llenos de análisis de los errores políticos de Obama. ¿Quién puede argumentar con esto? Con suma facilidad, yo podría enlistar docenas de decisiones que Obama hizo, y que desde mi punto de vista fueron equivocadas, cobardes o algunas veces directamente inmorales. Pero me pregunto si, de haber tomado las mucho mejores decisiones que su base supone que debió tomar, habría habido mucha diferencia en el resultado. La decadencia de Estados Unidos no es el resultado de decisiones pobres por parte de su presidente, sino de las realidades estructurales en el sistema-mundo. Obama puede ser el individuo más poderoso del mundo todavía, pero ningún presidente estadunidense es tan poderoso hoy como los presidentes de antaño.

Hemos entrado en una era de agudas, constantes y rápidas fluctuaciones –en las tasas de cambio de las divisas, en las tasas de empleo, en las alianzas geopolíticas, en las definiciones ideológicas de la situación. El grado y rapidez de estas fluctuaciones conduce a la imposibilidad de contar con predicciones de corto plazo. Y sin alguna estabilidad razonable en las predicciones de corto plazo (tres años más o menos) la economía-mundo se paraliza. Todo el mundo tendrá que ser más proteccionista e introspectivo. Y los estándares de vida bajarán. No es un cuadro bonito. Y aunque hay muchos, muchos aspectos positivos para muchos países a causa de la decadencia estadunidense, no hay certeza de que en el loco bamboleo del barco mundial, otros países puedan de hecho beneficiarse como esperan de esta nueva situación.

Es tiempo de un análisis de largo plazo mucho más sobrio, de juicios morales mucho más claros acerca de lo que el análisis revela, y de acciones políticas mucho más efectivas en el esfuerzo, en los próximos 20 o 30 años, para crear un mejor sistema-mundo que en el que estamos atorados ahora.