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Isso Não é um Cachimbo


“… Primeira versão, a de 1926, eu creio: um cachimbo desenhado com cuidado e, em cima (escrita a mão, com uma caligrafia regular, caprichada, artificial, caligrafia de convento, como é possível encontrar servindo de modelo no alto dos cadernos escolares, ou num quadro-negro, depois de uma lição de coisas), esta menção: “isto não é um cachimbo”


.…. A outra versão – suponho que a ultima -, pode-se encontrá-la na Alvorada nos antípodas . Mesmo cachimbo, mesmo enunciado, mesma caligrafia. Mas em vez de se encontrarem justapostos num espaço indiferente, sem limite nem especificação, o texto e a figura estão colocados no interior de uma moldura; ela própria está pousada sobre um cavalete, e este, por sua vez, sobre as tábuas bem visíveis do assoalho. Em cima, um cachimbo exatamente igual ao que se encontra, mas muito maior…….”


Será necessário então ler:” Não busquem no alto um cachimbo verdadeiro, é o sonho do cachimbo; mas o desenho que está lá sobre o quadro, bem firme e rigorosamente traçado, é este desenho que deve ser tomado por uma verdade manifesta…”


não consigo tirar da idéia que a diabrura reside numa operação tornada invisível pela simplicidade do resultado, mas que é a única a poder explicar o embaraço indefinido por ele provocado…


Essa operação é um caligrama secretamente constituído por Magritte, em seguida desfeito com cuidado…….


separação entre signos liguísticos e elementos plásticos; equivalência de semelhança e da afirmação. Estes dois princípios constituíam a tensão da pintura clássica: pois o segundo reintroduzia o discurso (só há afirmação ali onde se fala) numa pintura onde o elemento linguístico era cuidadosamente excluído. Daí o fato de que a pintura clássica falava e – falava muito – embora fosse se constituindo fora da linguagem; daí o fato de que ela repousava silenciosamente num espaço discursivo; daí o fato de que ela instaurava, acima de si própria, uma espécie de lugar-comum onde podia restaurar as relações da imagem e dos signos…….


Magritte liga os signos verbais e os elementos plásticos, mas sem se outorgar, previamente, uma isotopia; esquiva o fundo de discurso afirmativo, sobre o qual repousava tranquilamente a semelhança. e coloca em jogo puras similitudes e enunciados verbais não afirmativos, na instabilidade de um volume sem referência e de um espaço sem plano…


….Nada de tudo isso é um cachimbo…mas um texto que simula um texto; um desenho de um cachimbo que simula o desenho de um cachimbo…(desenhado como se não fosse um desenho) …”entre a parede e o espelho, que capta reflexos, e a superfície opaca da parede, que recebe apenas sombras, não há nada…em todos esses planos escorregam-se similitudes que nenhuma referencia vem fixar: translações sem ponto de partida nem suporte…


….a exterioridade, tão visível em Magritte, do grafismo e da plástica, está simbolizada pela não-relação – ou em todo caso pela relação muito complexa e muito aleatória entre o quadro  seu título…….estranhas relações se tecem, intrusões se produzem, bruscas  invasões destrutoras, quedas de imagens em  meio às palavras, fulgores verbais que atravessam os desenhos e fazem-no voar em pedaços…


…..Magritte deixa reinar o velho espaço da representação, mas em superfície somente, pois não é mais do que uma pedra lisa, que traz figuras e palavras: embaixo não há nada. É a lápide de um túmulo: as incisões que desenham as figuras e a que mascaram as letras não comunicam senão pelo vazio, por esse não-lugar que se esconde sob a solidez do mármore…parece-me que Magritte dissociou a semelhança da similitude…

Repressão Sexual e Trabalho em "Eros e Civilização" de Herbert Marcuse


Numa obra intitulada Eros e Civilização, o filósofo Marcuse aplicou conceitos da psicanálise na compreensão da repressão sexual obtida através da racionalização exercida sobre o trabalho e sobre toda a nossa vida pela sociedade contemporânea, que ele chama de sociedade unidimensional (isto é, uma sociedade sem dimensões e diferenciações, onde tudo eqüivale a tudo, se troca por tudo, tudo sendo mercadoria e objeto de consumo) e também de sociedade administrada (isto é, onde todas as nossas atividades, idéias, todos os nossos desejos e pensamentos estão sob controle de instâncias exteriores a nós e que desconhecemos.)


Marcuse fala em super-repressão e em princípio de rendimento.




A super-repressão não é apenas a repressão no sentido do recalque (1) ... Nem no sentido freudiano de contenção do princípio do prazer por exigências do princípio de realidade. A super-repressão é um conjunto de restrições e de imposições que têm como finalidade obter e conservar a dominação. É um fenômeno sócio-político.

Na teoria freudiana, a contenção do princípio do prazer pelo de realidade tinha um pressuposto: os seres humanos vivem em estado de penúria e precisam trabalhar para sobreviver. É preciso, portanto, que a libido não só seja reprimida para que energias se dirijam ao trabalho, mas também que o prazer aprenda a protelar-se e, em certos casos, a suportar frustrações definitivas. O trabalho podia, simultaneamente, tomar o lugar da libido para fins sociais úteis e podia também ser uma sublimação da libido, um meio para satisfazê-la indireta ou simbolicamente.


Ora, diz Marcuse, Freud não levou em conta um aspecto essencial da questão: a desigualdade. Isto é, que há indivíduos, grupos ou classes sociais cuja penúria é resolvida graças à condenação permanente de outros indivíduos, grupos ou classes sociais à penúria e ao trabalho forçado. A vitória do princípio de realidade sobre o do prazer foi obtida pela dominação de uma parte da sociedade sobre outra. É isto a super-repressão.


Assim como a super-repressão produz a fragmentação do processo de trabalho para que o trabalhador se transforme num incompetente e não tenha o menor controle sobre o que faz, nenhum poder de decisão e de transformação; assim como ela produz a fragmentação da produção e do consumo sob o controle da gerência científica e dos especialistas em merchandising; assim como fragmenta o lazer e os conhecimentos em mil pequenas especialidades, também fragmenta a sexualidade.


Para que o trabalho se torne central, valor e virtude, condenação e destino, a super-repressão dessexualiza e deserotiza o corpo, destrói as múltiplas zonas erógenas (cuja satisfação, se for conservada, será chamada de perversão, crime, imoralidade) e reduz a sexualidade exclusivamente à zona genital, com finalidade procriativa.

A sociedade racionalizada é uma sociedade funcional, isto é, nela tudo o que existe, só tem direito à existência se for definido por um função útil, adequada e aceita: a sexualidade será, então, a função especializada em procriar e função especializada de alguns órgãos do corpo.


A super-repressão não se contenta com a dominação e a funcionalização. O trabalho que ela valoriza e transforma em virtude é o trabalho alienado, isto é, aquele que não traz satisfação, nem alegria, nem compensações, que não é fonte de criação, nem possibilidade de sublimação. Trabalho ascético da vida ascética, o trabalho super-reprimido não protela nem substitui o prazer: apenas o mata.

A super-repressão, porém, só pode operar se estiver interiorizada, se as pessoas considerarem normal, natural e desejável viver dessa maneira.

Para isso ela recorre à divisão racionalizadora do tempo e do espaço, de tal modo que restem um tempo mínimo e um espaço mínimo para a sexualidade: algumas horas noturnas no leito conjugal, no quarto secreto do casal, num bordel, num camping. No entanto, como também as horas de lazer são controladas, porque estão ligadas ao consumo, assim como o consumo controla também os espaços do lazer, só restam duas saídas: ou o lazer exclui um tempo para a sexualidade, ou a coloca sob o controle do consumo, isto é, da pornografia, do motel, da sauna, da casa de massagem. Especialização do espaço e ilusão da sexualidade liberada.

Por esse caminho, a super-repressão se articula com o princípio do rendimento. Este, diz Marcuse, é a forma contemporânea assumida pelo princípio de realidade: produzir para consumir e consumir para produzir; sentir-se culpado, humilhado, diminuído quando não se produz o quanto e o que a sociedade estipula, e quando não se consome o quanto, o que e como a sociedade estipula.

A identidade de cada um, portanto, não depende mais da relação peculiar que se estabelece entre nosso corpo, nossa psique, nosso inconsciente e nossa consciência com a Natureza e a cultura, mas do modo como somos avaliados pelos critérios da administração que governa a sociedade. Por esses critérios, nossa sexualidade é definida, avaliada, julgada, aceita ou condenada. Nossa precária liberdade, desfeita pela heteronomia (do grego hetero: outro; nomia, nomos: lei, regra; autonomia, do grego, autos: si mesmo, eu mesmo; nomia, nomos: lei, regra. Autonomia: dar-se suas próprias leis; heteronomia: ser determinado por leis alheias).

Super-repressão e princípio de rendimento reduzem a libido ou Eros a quase nada, realizado de modo cruel e perverso o desejo de Thânatos, a morte, o vazio, o nada.

No entanto, assim como o recalcado retorna, a libido reprimida retorna também. Esse retorno assume três modalidade principais: numa delas, a libido se transforma em princípio de destruição, a agressividade realizando o prazer (o nazismo, o fascismo, os genocídios, a destruição da Natureza o cataclismo atômico); numa outra, ela reduz os autômatos humanos à infantilização, ao conformismo, à dessublimação repressiva (como, por exemplo, a exibição dos corpos nus pela propaganda como profanação); numa terceira, enfim, ela torna possível a rebeldia de Eros, a transgressão que não é afirmação do existente, mas sua negação (por exemplo, as "perversões" sexuais como fonte de saúde e de vida). Nesta terceira via, a sexualidade rebelde parte em busca da unidade perdida, da recomposição do corpo e do espírito, e recusa funções.

"O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e toma o avião da tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na Quinta-feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O operário joga bilhar e faz amor nos feriados. Homens, mulheres e crianças - todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na Terça e na Quarta, macarronada, que a feijoada fica para o Sábado, comemoração prévia do futebol de Domingo, vitória certa, ora se!... As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas aquela lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade, taque-taque, taque-taque... Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável."

Este texto é da escritora Lygia Fagundes Telles, retirado de seu livro A Disciplina do Amor.

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(1) Recalque - Freud preferia usar o termo repressão para os processos conscientes e pré-conscientes, usando o conceito de recalque ou recalcamento para os processos inconscientes. O recalque se realizaria quando a satisfação de uma pulsão sexual (que poderia proporcionar prazer) aparece como capaz de suscitar desprazer e sobretudo como ameaçadora para o sujeito. Tanto pode ser uma censura (repressão) como uma defesa (8um ato de desinvestir uma pulsão, investindo em outras não ameaçadoras)" (Pág. 66, Chauí, op. Cit.)

Notas sobre política



            1. A queda do Partido comunista soviético e o domínio sem véus do Estado democrático-capitalista em escala planetária apagaram o campo dos dois principais obstáculos ideológicos que impediam a retomada de uma filosofia política à altura de nosso tempo: o stalinismo, de um lado, o progressismo e o Estado de direito, de outro. Assim, o pensamento encontra-se, hoje, pela primeira vez defronte a sua tarefa sem qualquer ilusão, sem álibis possíveis. Diante de nossos olhos, está por cumprir-se, por toda parte, a “grande transformação” que empurra, um após o outro, os reinos de nosso planeta (repúblicas e monarquias, tiranias e democracias, federações e Estados nacionais) em direção ao Estado espetacular integrado (Debord) ou “capital-parlamentarismo” (Badiou), que constitui o estágio extremo da forma-Estado. Assim como a grande transformação da primeira revolução industrial destruíra as estruturas sociais e políticas e as categorias de direito público do Ancién Régime, também os termos soberania, direito, nação, povo, democracia e vontade geral cobrem, agora, uma realidade que nada tem a ver com aquela que esses conceitos designavam, e quem continua acriticamente a deles se servir, não sabe, literalmente, do que está falando. A opinião pública e o consenso nada têm a ver com a vontade geral, como a “polícia internacional” que conduz hoje as guerras nada tem a ver com a soberania do jus publicum Europaeum. A política contemporânea é este experimento devastador que desarticula e esvazia por todo o planeta instituições e crenças, ideologias e religiões, identidade e comunidade, para tornar, então, a propô-los sob uma forma definitivamente nulificada.

2. O pensamento que vem deverá, por isso, tentar levar a sério o tema hegeliano-kojéviano (e marxiano) do fim da história, como o tema heideggeriano da entrada na Ereignis como fim da história do ser. Com respeito a esse problema, o campo é hoje dividido entre aqueles que pensam o fim da história sem o fim do Estado (os teóricos pós-kojévianos ou pós-modernos da realização do processo histórico da humanidade em um Estado universal homogêneo) e aqueles que pensam o fim do Estado sem o fim da história (os progressistas de diversas matrizes). Ambas as posições remanescem aquém de sua tarefa, pois pensar a extinção do Estado sem a realização do telos histórico é tão impossível quanto pensar uma realização da história na qual permanecesse a forma vazia da soberania estatal. Como a primeira tese demonstra-se de todo impotente diante da tenaz sobrevivência da forma estatal em uma transição infinita, também a segunda se choca com a resistência sempre mais viva de instâncias históricas (de tipo nacional, religioso ou étnico). As duas posições podem, de fato, conviver perfeitamente através da multiplicação de instâncias estatais tradicionais (isto é, de tipo histórico), sob a égide de um organismo técnico-jurídico de vocação pós-histórica.
Apenas um pensamento capaz de imaginar conjuntamente o fim do Estado e o fim da história, e de mobilizá-los um contra o outro, está à altura da tarefa. É o que procurou fazer, ainda que de modo absolutamente insuficiente, o último Heidegger, com a idéia de uma Ereignis, de um evento último, no qual o que é apropriado e subtraído ao destino histórico é o próprio restar-oculto do princípio historicizante, a própria historicidade. Se a história designa a própria expropriação da natureza humana em uma série de épocas e de destinos históricos, a realização e a apropriação do telos histórico que está em questão não significa que o processo histórico da humanidade é simplesmente composto em um arranjo definitivo (cuja gestão possa ser confiada a um Estado universal homogêneo), mas que a mesma anárquica historicidade que, restando pressuposta, destinou o homem vivente nas diversas épocas e culturas históricas, deve hoje devir como tal ao pensamento; ou seja, que o homem já se apropria de seu próprio ser histórico, de sua própria impropriedade. O tornar-se próprio (natureza) do impróprio (linguagem) não pode ser formalizado nem reconhecido segundo a dialética do Anerkennung,[3] porque é, na mesma medida, um devir impróprio (linguagem) do próprio (natureza).
A apropriação da historicidade não pode, por isso, possuir ainda uma forma estatal – não sendo, o Estado, outro senão a pressuposição e a representação do restar-oculto da arké histórica –, mas deve deixar campo a uma vida humana e a uma política não-estatal e não-jurídica, que permanecem ainda inteiramente por pensar.

3. Os conceitos de soberania e poder constituinte, que estão no âmago da nossa tradição política, devem, portanto, ser abandonados ou, ao menos, pensados do início. Eles assinalam o ponto de indiferença entre violência e direito, natureza e logos, próprio e impróprio e, como tais, não designam um atributo ou um órgão do ordenamento jurídico ou do Estado, mas sua própria estrutura original. A soberania é a idéia de que há um nexo indecidível entre violência e direito, vivente e linguagem, e que esse nexo tem necessariamente a forma paradoxal de uma decisão sobre o estado de exceção (Schmitt) ou de um bando (Nancy), no qual a lei (a linguagem) se mantém em relação com o vivente retirando-se dele, abandonando-o à sua própria violência e a seu próprio irrelato. A vida sacra, isto é, pressuposta e abandonada pela lei no estado de exceção, é o mudo portador da soberania, o verdadeiro sujeito soberano.
Desse modo, a soberania é a guardiã que impede que o limiar indecidível entre violência e direito, natureza e linguagem, venha à luz. Nós devemos, ao contrário, manter os olhos fixados sobre o que a estátua da justiça (que, como lembra Montesquieu, devia ser coberta no momento em que fosse declarado o estado de exceção) não deveria ver, que (como hoje é claro para todos) o estado de exceção é a regra, que a vida nua é imediatamente portadora da relação soberana e, como tal, ela é, hoje, abandonada a uma violência tanto mais eficaz quanto anônima e cotidiana.
Se ela é hoje uma potência social, deve ela ir até o fim de sua própria impotência e, declinando toda vontade tanto de pôr o direito quanto de conservá-lo, despedaçar por todo lugar a relação entre violência e direito, entre vivente e linguagem que constitui a soberania.

4. Enquanto o declínio do Estado deixa em toda parte subsistir seu envoltório vazio como pura estrutura de soberania e de domínio, a sociedade, em seu conjunto, é confiada irrevogavelmente à forma da sociedade de consumo e de produção orientada unicamente ao fim do bem-estar. Os teóricos da soberania política, como Schmitt, viam nisso o signo mais certo do fim da política. E, em verdade, as massas planetárias de consumidores (quando elas não recaem simplesmente nos velhos ideais étnicos ou religiosos) não deixam entrever nenhuma figura nova da polis.
Todavia, o problema que a nova política tem defronte é precisamente este: é possível uma comunidade política que seja ordenada exclusivamente à plena fruição da vida mundana? Mas não é esse, precisamente, olhando bem, o escopo da filosofia? Quando um pensamento político moderno nasce com Marsilio di Padova, este não se define propriamente por meio da retomada, com fins políticos, do conceito averroísta de “vida suficiente” e de “bem-viver”? Benjamin, também, no Frammento teologico-politico, não deixa dúvida quanto ao fato de que “a ordem do profano deve ser orientada à idéia de felicidade”. A definição do conceito de “vida feliz” (que, em verdade, não deve ser separado da ontologia, porque do “ser: nós não temos outra experiência que não a de viver”) resta como uma das tarefas essenciais do pensamento que vem.
A “vida feliz” sobre a qual deve fundar-se a filosofia não pode mais ser nem a vida nua que pressupõe a soberania para dela fazer seu próprio sujeito, nem a estranheza impenetrável da ciência e da biopolítica moderna que se busca, hoje, em vão sacralizar, mas, note-se, trata-se de uma “vida suficiente” e absolutamente profana, que atingiu a perfeição da própria potência e da própria comunicabilidade, e acerca da qual a soberania e o direito não promovem mais qualquer captura.

5. O plano de imanência no qual se constitui a nova experiência política é a expropriação da linguagem efetuada pelo Estado espetacular. Enquanto, de fato, no velho regime, a alienação da essência comunicativa do homem se substancializava em um pressuposto que servia de fundamento comum (a nação, a língua, a religião...), no Estado contemporâneo, essa mesma comunicabilidade, essa mesma essência genérica (ou seja, a linguagem) constitui-se em uma esfera autônoma na exata medida em que ela se torna o fator essencial do ciclo produtivo. O que impede a comunicação é, assim, a própria comunicabilidade; os homens são separados por isso que os une.
Isso, porém, quer dizer também que, desse modo, é nossa própria natureza linguística que nos vem ao encontro, revertida. Por isso (justamente porque ser expropriada é a possibilidade própria do Comum), a violência do espetáculo é tão destrutiva; mas, pela mesma razão, ela contém ainda qualquer coisa como uma possibilidade positiva que pode ser usada contra si mesma. A época que estamos por viver é, em verdade, também aquela na qual se torna pela primeira vez possível para os homens fazer experiência de sua própria essência linguística – não desse ou daquele conteúdo de linguagem, dessa ou daquela proposição verdadeira, mas do próprio fato de que se fala.

6. A experiência que está aqui em questão não tem nenhum conteúdo objetivo, e não é formulável em uma proposição sobre um estado de coisas ou sobre uma situação histórica. Ela concerne não a um estado, mas a um evento de linguagem; não concerne a esta ou àquela gramática, mas, por assim dizer, ao factum loquendi como tal. Ela deve construída como uma experiência que concerne à matéria mesma, ou à potência do pensamento (em termos spinozianos, uma experiência de potentia intellectus, sive de libertate).
O que está em jogo nesta experiência não é, de nenhum modo, a comunicação enquanto destino e fim específico do homem, ou como condição lógico-transcendental da política (como nas pseudo-filosofias da comunicação), mas a única experiência material possível do ser genérico (isto é, a experiência da “aparência” – Nancy – ou, em termos marxianos, do General Intellect), a primeira consequência que deriva é a subversão da falsa alternativa entre fins e meios, que paralisa toda ética e toda política. Uma finalidade sem meios (o bem ou o belo como fins em si) é, com efeito, tão alienador de uma medialidade que tem sentido apenas em relação a um fim. O que está em questão na experiência política não é um fim mais elevado, mas o próprio ser-na-linguagem como medialidade pura, o ser-em-um-meio como condição irredutível dos homens. Política é a exibição de uma medialidade, ela torna visível um meio como tal. Essa é a esfera não de um fim em si, nem de meios subordinados a um fim, mas a de uma medialidade pura e sem fim como campo da ação e do pensamento humano.
            
7. A segunda consequência do experimentum linguae é que, para além dos conceitos de apropriação e expropriação, o que convém pensar é, sobretudo, a possibilidade e a modalidade de umlivre uso. A práxis e a reflexão política se movem, hoje, exclusivamente na dialética entre o próprio e o impróprio, em que o impróprio (como ocorre nas democracias industriais) impõe por toda parte seu domínio em uma irrefreável vontade de falsificação e de consumo, ou, como ocorre nos Estados integralistas ou totalitários, o próprio pretende excluir de si toda impropriedade. Se chamamos, ao revés, Comum (ou, como querem outros, igual) a um ponto de indiferença entre o próprio e o impróprio, isto é, qualquer coisa que não pode mais ser apreendida em termos de uma apropriação ou de uma expropriação, mas somente como uso, então o problema político essencial torna-se: “como se usa umcomum? (É, talvez, em qualquer coisa do gênero que Heidegger pensava quando formulava seu conceito supremo nem como apropriação nem como expropriação, mas como apropriação de uma expropriação).
Se conseguirem articular o lugar, os modos e os sentidos desta experiência do evento de linguagem como uso livre do comum e como esfera dos puros meios, as novas categorias do pensamento político – comunidade inoperosa,[4] aparênciaigualdadelealdadeintelectualidade de massapovo por virsingularidade qualquer – poderão dar uma forma à matéria política a que estamos defronte.

*Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa[1] [2]

[1] NT: [Texto original: AGAMBEN, Giorgio. Note sulla politica. In: Mezzi senza fine. Note sulla politica. Bollati Boringhieri: Torino, 1996, p. 87-93].
[2] Advogado e professor. Mestrando em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR).
[3] NT: [Trata-se do conceito hegeliano de reconhecimento; remete à Fenomenologia do Espírito e à luta pelo reconhecimento].
[4] NT: [i.e., inoperosa = des-obrada, sem-obra; trata-se de um conceito de Jean-Luc Nancy].

Teses sobre a história



1
Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado "materialismo histórico" ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.

2
"Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana", diz Lotze, "está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro". Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.

3
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final.

4




"Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,

e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo".
Hegel, 1807


A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.

5
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. "A verdade nunca nos escapará" — essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exacto em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.

6
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

7



"Pensa na escuridão e no grande frio
Que reinam nesse vale, onde soam lamentos."
Brecht, Ópera dos três vinténs


Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: "Peu de gens devi-neront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage". A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode reflectir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes génios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.

8
A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX "ainda" sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.

9
"Minhas asas estão prontas para o vôo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."
Gerhard Scholem, Saudação do anjo

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivel-mente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

10
Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos monges tinham como função desviá-los do mundo e das suas pompas. Nossas reflexões partem de uma preocupação semelhante. Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredado por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no "apoio das massas" e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma reali-dade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos.

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O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como "a fonte de toda riqueza e de toda civilização". Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser "o escravo de outros homens, que se tornaram... proprietários". Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: "O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador". Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, "está ali, grátis".

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"Precisamos da história, mas não como precisam dela

os ociosos que passeiam no jardim da ciência."
Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida


O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a social-democracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.

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"Nossa causa está cada dia mais clara e o povo cada dia mais esclarecido."
Josef Dietzgen, Filosofia social-democrata

A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homo-gêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha.

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"A Origem é o Alvo."


Karl Kraus, Palavras em verso

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras". Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de "agoras", que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o actual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx.

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A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu:





"Qui le croirait! on dit qu’irrités contre l’heure
De nouveaux Josués, au pied de chaque tour,
Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour."



16
O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem "eterna" do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz "era uma vez". Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história.

17
O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas.

18
"Comparados com a história da vida orgânica na Terra", diz um biólogo contemporâneo, "os míseros 50 000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas, Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora." O "agora", que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.


Apêndice


1
O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um "agora" no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.

2
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias.

[arquivo] - Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. [Tradução de Sérgio Paulo Rouanet]