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A filosofia entre-nós

Roberto Gomes é um dos poucos filósofos brasileiros que fizeram a abordagem do tema sobre a existência de filosofia brasileira (não confundir com filosofia escrita por filósofo brasileiro), questinando se a temos ou não, como discorre na sua obra CRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUIM, 8ª ed. editada pela Edições Criar, Curitiba, 1986, no seguinte trecho - pags. 55-57:


“Creio que possamos admitir pacificamente a existência de filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo. Há filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entre-nós, manifestando sua presença. Talvez um corpo estranho, mas presente. Não só contamos com documentos a respeito, documentos com data marcada, como encontramos revistas e livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se congressos, encontros, debates, e nos currículos universitários a filosofia consta obviamente – cada vez menos, mas consta. Tudo isso indica que a filosofia está entre nós. Como um parente distante, uma tia talvez, que chega e vai ficando – mas, seja como for, entre nós.

(...) Introjetou-se aqui – prossegue Gomes – a função do dependente: compreender as idéias alheias e, curiosamente, reduzir a história da filosofia no Brasil à narrativa de nossa “capacidade de assimilação”e de nosso “quociente de sensibilidade espiritual”, quando, numa adequada compreensão histórica, caberia, isto sim, extrair desta constatação o significado mais profundo: os modos de falsificação dos quais temos sido vítimas e co-autores. “O simples fato da questão (como ser original) – nota Antonio Candido – nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas da criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressivos) sempre reconhecemos como natural a nossa inevitável dependência”.

Com a naturalidade com que esquecemos de ser originais – enfatiza Gomes - , deixamos de de observar que um pensamento alheio se enraíza e tem em mira uma situação histórica diversa daquela na qual nos encontramos. O que se evidencia pela preocupação de Luís W. Vita com nosso “grau de compreensão” do pensamento alheio. Esquecemos igualmente que idéias vitais para um europeu ou norte-americano poderão ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibrados e mambembes.

Seja como for – ressalta Gomes -, há filosofia entre nós. Lembro, no entanto, que isso não esgota a problemática a respeito de uma filosofia brasileira, propondo, no mais das vezes, seu avesso: os sinais de seu esquecimento. Carentes de melhor distinção entre estas duas questões – "filosofia entre-nós" e "filosofia nossa" – encontramos em nossos historiadores de idéias uma marca constante: a quase totalidade do que se escreveu sobre o tema baseia-se num equívoco primário. Este: confundir o valor ou existência de livros de filosofia escritos por brasileiros, com o valor ou existência de uma filosofia brasileira”.

Nem tudo que é sólido desmancha no ar



COMO A MAIS ABSOLUTA dominação sobre os homens continua a ser exercida por meio de processos econômicos de exploração – mesmo sobre a crescente parcela da humanidade que está sendo rifada precisamente porque deixou de ser economicamente rentável –, o Manifesto Comunistaainda cruzará o milênio como uma mensagem na garrafa. Muito mais atual inclusive do que há 150 anos, quando a proletarização dos pobres e demais expropriados ainda não parecia irreversível, a ponto de considerável número deles procurar escapar à danação do assalariamento – só viver se encontrar trabalho, e só encontrar trabalho se este incrementar o valor do capital – reagrupando-se à margem da ordem burguesa nascente na forma de comunidades cooperativas, por meio das quais sonhavam recuperar a antiga independência econômica perdida. Porém a Modernidade anunciada pelo Manifesto viera também para abortar o não-lugar dessa utopia. Com a atual mundialização do capital enfim, ninguém mais está fora, sobretudo as grandes massas precarizadas e desconectadas na corrida ao corte de custos: em tempos de pressões competitivas globalizadas, literalmente não têm mais para onde ir. Nunca estiveram tão irremediavelmente incluídas.

Continuamos portanto na mesma, a mesma desgraça econômica de sempre, desde que a terra, o trabalho dos homens e a moeda de troca entre eles foram transformados em mercadoria, como qualquer outro artigo de comércio. Mas também continuamos na mesma numa outra acepção igualmente sombria da expressão, por assim dizer mítica. Era o que Marx e Engels queriam dizer, no momento mesmo em que chamavam a moderna exploração econômica pelo nome, ao declarar que a história de todas as sociedade tinha sido até então a história da luta de classes. Pois bem: se toda a história é história da luta de classes é porque a história sempre foi a mesma coisa, numa palavra, pré-história. Como de resto se pode ler num dos rascunhos preparatórios doManifesto: "assim como a forma mais recente da injustiça lança luz sobre todas as demais, a crítica da economia é urna crítica da história no seu todo, de cuja imobilidade a classe dos capitalistas, como outrora seus antepassados senhor de escravos, patrício romano, barão feudal –, deriva o seu privilégio (...) 


O silêncio arcaico das pirâmides repercute o barulho infernal do sistema de fábricas". Não por acaso – numa conhecida interpretação – para o poeta das Flores do mal (livro rigorosamente contemporâneo do Manifesto Comunista), essa mesma e famigerada Modernidade era a cifra de um mundo sempre-igual de ruínas recorrentes, as destruições criativas, no vocabulário da apologética mais recente, próprias de um sistema que não pode subsistir sem a morte precoce de seus instrumentos de reprodução. Assim, no suposto auge renascentista que estaríamos atravessando – a chamada globalização, na opinião apoteótica de um varão sabedor local –, no rumo sabe-se lá de que apogeu econômico futurista, não se achará muito mais do que outro espasmo pré-histórico do sistema tautológico a que se resume a absurda e interminável acumulação de capital comandada pelo único e exclusivo fim de se acumular mais capital.

* * *

Tudo isso, não obstante, é fato que Marx e Engels não resistiram à tentação progressista da época, deixando-se impressionar pela nova prosa modernista do mundo, pela irresistível escalada dos preços baratos da mercadoria burguesa tomando de assalto quantas muralhas da China lhe surgissem pela frente. E como poderiam, naqueles tempos de legitimação revolucionária dos acumuladores de dinheiro e poder? Mas ocorre que deslizando pelo plano inclinado da modernolatria deram com a plataforma de uma outra humanidade, a qual corresponderia enfim verdadeiramente ao seu conceito. É que entreviram naquela novidade avassaladora do capitalismo com relação às civilizações anteriores a chance providencial de quebrar o feitiço pré-histórico da alienação.


Nunca será demais evocar o essencial dessa reviravolta. E para realçar a nota dissonante do Manifesto neste final de século de harmonia extorquida, por que não evocá-lo nos termos mesmos das teorias sistêmicas em voga? Com efeito, não é muito difícil admitir que a evolução histórica da espécie humana sempre se deu por uma adaptação passiva do quadro institucional da sociedade à pressão das forças produtivas. A ser assim, a inovação da modernidade capitalista reside na circunstância, sem dúvida, inédita de que pela primeira vez essa pressão material não só é auto-impulsionada pelo imperativo da acumulação infindável mas solapa, também em permanência, as formas culturais de legitimação social herdadas, provocando por sua vez novas rodadas de adaptações passivas. 


Ora, ao contrário de uma solene declaração burguesa de reconhecimento e sanção de tendências históricas consumadas, o contradiscurso do Manifesto simplesmente demonstra que contra tais fatos há argumentos, além do mais fornecidos por eles mesmos, a saber: esse mecanismo de reprodução social em que a iniciativa cabe apenas à inovação econômica define justamente a pré-história da humanidade e, portanto, o capitalismo ele mesmo é pré-histórico, não espantando que nele ainda se apresente como um destino o cego movimento da economia; e tal engrenagem não saltará dos trilhos enquanto uma rotação ciclópica de eixo não passar o controle prático das transformações estruturais da sociedade para as mãos de indivíduos autônomos e cooperativos, encerrando assim a idade mítica de submissão absoluta do metabolismo social às suas condições materiais de reprodução. (E pensar que hoje quem se ajusta, e não por acaso mediante sucessivas e infinitesimais adaptações passivas, acredita que nesse último enunciado jurássico da causalidade sistêmica se concentra a quintessência do materialismo histórico, em nome do qual de alma leve pede a benção aos vencedores.)


Está claro, porém, o encanto não se romperia por simples decreto emancipatório; não basta apontar para a fantasmagoria para que ela se dissipe. Além de ser materialmente tangível, a peça subversiva que faria girar a porta de saída da pré-história precisaria pertencer, ela mesma, ao encadeamento arcaico que mandaria pelos ares. Estava assim designado o lugar a ser ocupado pela luta de classes: à mola perpetuadora da eterna recaída na barbárie seria delegada a tarefa de encaixar a alavanca numa muralha aparentemente sem brecha, se é fato que haveria mesmo um grão de transcendência na assimetria brutal de poder social entre as classes em luta. Nesse entorse da pré-história, Marx e Engels apostaram todas as fichas da emancipação. Ou quase todas: é bom não esquecer a ressalva acerca da ruína comum que também espreita o conflito de morte nessa guerra social por onde corre ainda a pré-história da humanidade. 


Como se essa reviravolta não bastasse, Marx e Engels repetiram uma segunda vez, naquele mesmo Manifesto, a prova do caráter pré-histórico do capitalismo: sacudida por crises periódicas em que o capital torna redundante sua própria fonte de valorização queimando força produtiva, a sociedade burguesa "vê-se subitamente reconduzida a um certo estado de barbárie" que se abate sobre os indivíduos como outrora a fome e as guerras de extermínio, só que agora na forma invisível de poderes subterrâneos autônomos e incontroláveis.


Nessa segunda prova dos nove – a experiência da impotência social máxima no confronto com as forças anônimas da exploração – ressaltava novamente a novidade histórica do capitalismo: sob o invólucro ultramoderno do progresso, a derradeira sociedade primitiva, mergulhada na inconsciência coletiva do desastre que se avizinha. Digamos então que o essencial do Manifesto reside na figuração contemporânea do nexo entre essas duas formas pré-históricas da opressão: a primeira, contrapondo campos sociais antagônicos e visivelmente personificados; a segunda, a dominação, sem sujeito designado, exercida sobre o conjunto da sociedade pela economia de mercado autonomizada, a ponto de transformar os seus beneficiários diretos em meras funções de seu próprio aparelho de produção. Uma dimensão não vai sem a outra, assim como o proletariado do Manifesto se exaure enfrentando ora a burguesia, ora o capital, do qual a primeira é "portadora involuntária e incapaz de reação", na fórmula do Manifesto, mas nem por isso desprovida de vontade e do poder de disposição sobre os homens que lhe confere um sistema que, por sua vez, a sujeita se não quiser perecer, como aliás se pode ler noutro rascunho famoso redigido dez anos depois, os Elementos fundamentais para uma crítica da economia política: "na redução dos homens a simples agentes do mercado se esconde a dominação de homens sobre homens. Porém a classe dominante não é apenas dominada pelo sistema, domina através do sistema. 


A tendência objetiva do sistema é redobrada e sancionada pela vontade constante daqueles que o servem. Como é cego, o sistema é a própria dominação, e por isso mesmo funciona sempre a favor dos dominantes, mesmo quando os ameaça de ruína; os trabalhos de parto a que eles se entregam nos momentos de crise atestam o pleno conhecimento desse fato".

* * *

Estando assim entrelaçadas as duas dimensões desse diagnóstico do capitalismo como derradeira sociedade pré-histórica – ele mesmo cifra de uma ruptura de época tanto mais paradoxal por implicar um momento de auto-reflexão da espécie humana sob o mais espesso invólucro de uma segunda natureza –, compreende-se que nenhuma das duas pode sobreviver à morte da outra. Os 30 anos de calmaria que sucederam à última grande guerra – efeito anestésico da Guerra Fria, do Welfare europeu e da industrialização consentida da periferia –, varreram da memória o abismo entreaberto pelo apocalipse nazista, na verdade cavado pela mítica espiral da normalidade burguesa, o envolvimento pré-histórico da luta de classes na engrenagem da exploração econômica. Há menos de duas décadas rompeu-se o dique novamente. Como um sinal de alarme entre duas catástrofes, o Manifesto Comunista ainda contínua soando, ontem como hoje, para despertar a humanidade do mesmo pesadelo ancestral da dominação.

O déficit da esquerda é organizacional


Para os revolucionários inscritos na tradição marxista colocam-se atualmente problemas inteiramente novos. 
Não é a primeira vez que, nos últimos cento e cinqüenta anos, uma conjuntura deste tipo se instaura (nem será, talvez, a última). Mas, certamente, nenhuma das conjunturas anteriores revestiu-se da dramaticidade com que se apresenta a situação atual. 

Com efeito, o exaurimento de todas as possibilidades civilizatórias do capital alcança hoje um nível tal que a manutenção, ainda que seja por uns poucos decênios, da ordem capitalista implica um grau de violência e barbarização que tornará inviável a sobrevivência da humanidade (o desastre ecológico é apenas um signo, embora crucial, das perspectivas horrorosas que se põem a médio, senão a curto, prazo). E isto se dá na quadra histórica, emergente na transição dos anos 1970 aos 1980, em que o projeto revolucionário fundado em Marx (e, de fato, o processo revolucionário real que tomou sua primeira forma na Revolução de Outubro) registrou derrotas históricas de larga incidência.

Em poucas palavras: nunca foram tão ameaçadoras as perspectivas imediatas da vida da humanidade e, simultaneamente, nunca o movimento revolucionário inspirado em Marx viu-se diante de tantas dificuldades. Precisamente por isto, vale a pena provocar a imaginação com um breve exercício de polêmica:   nosso – dos revolucionários – déficit não é teórico, é organizacional.

A potencialidade teórica do marxismo

É enorme a bibliografia sobre as crises do marxismo e, sem prejuízo de observações pertinentes que nela se encontram, quase toda possui um denominador comum: identifica a crise de uma ou outra vertente da tradição marxista (que, de fato, é um acervo ídeo-teórico e político muito diferenciado) com a crise do marxismo. Se houve, e de fato houve, uma paralisia no desenvolvimento da tradição marxista no segundo terço do século XX – aqui, as hipotecas derivadas do stalinismo foram decisivas -, paralisia que compeliu Lukács a reclamar, nos anos 1960, um "renascimento do marxismo", o que os anos posteriores a 1970 revelaram foi a crise terminal de uma vertente particular (certamente relevante) daquela tradição: o marxismo-leninismo oficial, prolongamento do "marxismo vulgar" dominante na Segunda Internacional. [1]

Mas, marginalmente ao marxismo-leninismo e após a denúncia do "culto à personalidade" (1956), outras vertentes marxistas se desenvolveram (ou continuaram se desenvolvendo) e constituíram um acúmulo ídeoteórico capaz de propiciar um conhecimento social adequado. Um exame cuidadoso da documentação produzida por marxistas de diferentes matizes, a partir dos anos 1950, revela a emersão de um estoque crítico que, depois dos anos 1970, só fez crescer. Ao contrário do que sustenta o senso comum das ciências sociais acadêmicas e do que é veiculado pelos meios de comunicação social, a elaboração teórica de extração marxista tem se revelado capaz de análises extremamente corretas (ou seja: validadas pela dinâmica social real) dos processos histórico-sociais dos últimos trinta anos. Não é este o lugar para oferecer provas bibliográficas desta afirmação, mas basta cotejar, por exemplo, a visão da dinâmica econômico-social do sistema capitalista nos últimos vinte e cinco anos oferecida por diferentes teóricos marxistas (Mandel, Mészáros, Chesnais, Husson et alii) com aquela traçada pelos apologistas do capital para aquilatar da atualidade e da atualização da capacidade heurística do referencial analítico elaborado originalmente por Marx.

É evidente que este efetivo desenvolvimento de vertentes da tradição marxista está longe de significar que inúmeros complexos problemáticos, que peculiarizam a atual quadra histórica, estejam minimamente equacionados [2] . Há toda uma série de níveis societários - no plano da cultura, no espaço da vida cotidiana, no campo das relações entre ciência e ética, nos domínios da demografia, da territorialidade etc. – em que se acumulam dilemas e impasses sobre os quais o estoque de conhecimentos é extremamente assimétrico em comparação à sua magnitude. As lacunas teóricas existentes são indiscutíveis e não há por que dissimulá-las.

Mas, ainda aqui, cumpre sublinhar que carências crítico-cognitivas de monta afetam o conjunto das teorias sociais contemporâneas e são imensamente mais expressivas no campo dos saberes funcionais à ordem do capital – que, no plano teórico-social, mostra-se cada vez menos apta a engendrar concepções que resistam às fortes tendências constitutivas do que Lukács, na esteira de Marx, designou como "decadência ideológica".
Com estas considerações – necessariamente breves e esquemáticas –, o que pretendo ressaltar, com ênfase, é que as dificuldades com que se defrontam hoje os revolucionários que se reclamam vinculados à tradição marxista não derivam essencialmente de uma "crise teórica". A potencialidade teórica da tradição marxista tem resistido à prova da história.

Teoria e política

Em alguma passagem de seus escritos, P. Togliatti anotou: "quem erra na análise, erra na ação". A observação é crucial para os revolucionários (como, aliás, já o sabia Marx): para aqueles que se propõem como tarefa a supressão da ordem do capital e a ultrapassagem da sociedade burguesa, o conhecimento verdadeiro da realidade social é, como Lukács esclareceu desde 1923, uma questão de vida ou de morte. Isto equivale a dizer que, para os revolucionários, a formulação de projetos e o estabelecimento de estratégias no marco das lutas de classes supõem o máximo conhecimento possível da dinâmica social concreta.
Esta determinação, que parece incontestável, requer três notações minimamente convalidadas pela experiência histórica. A primeira é que tal determinação diz respeito àqueles que se empenham na superação da ordem do capital – a manutenção e a gestão desta ordem reclamam, obviamente, conhecimentos e saberes; entretanto, a natureza destes pode ser meramente manipulatória e instrumental; já o empenho exitoso na desarticulação da sociedade burguesa no rumo das transformações socialistas exige o conhecimento teórico rigoroso da estrutura e da dinâmica da vida social. Em segundo lugar, ela se refere aos segmentos dirigentes dos movimentos revolucionários – a elevação do nível de consciência das massas, sempre potenciado nas lutas e em especial nas conjunturas revolucionárias, não elimina a efetiva fronteira distintiva (sempre móvel) entre elas e as suas vanguardas. Finalmente, é preciso lembrar que nenhum processo revolucionário se deflagra contando com um conhecimento teórico exaustivo e total das suas possibilidades e limites – se assim fosse, certamente a história moderna não registraria nenhuma revolução.

É necessário acrescentar, porém, que aquela determinação – quem erra na análise, erra na ação – está longe de significar que quem acerta na análise tem êxito na ação revolucionária. Para os revolucionários, o acerto na análise (vale dizer: um acúmulo crítico que garanta o máximo conhecimento possível da realidade social) é condição necessária para o êxito da intervenção política, mas não é condição suficiente. A política (revolucionária) não se reduz à teoria (revolucionária) ou, mais exatamente, a política não é teoria.

Na tradição marxista, foram freqüentes os equívocos derivados de uma interpretação simplista da decantada "relação entre teoria e prática", que não poucas vezes conduziram – confundindo unidade com identidade – a desastres simultaneamente teóricos e políticos. Por isto mesmo, é preciso afirmar com vigor que teoria e política configuram âmbitos distintos, mesmo que não divorciados, na totalidade das formas pelos quais os homens e as mulheres procuram compreender e transformar o mundo. No âmbito da teoria, o conhecimento verdadeiro é um fim; no âmbito da política, o conhecimento é um meio [3] . Na teoria, importa a verdade; a política é o campo das relações de força. As conexões entre teoria e intervenção política não são unívocas nem diretas, até porque suas dinâmicas são estruturalmente diversas - a temporalidade da ação política não é a da elaboração teórica (antes, é reiteradamente emergencial).

Nada disso aponta no sentido de subestimar o peso do conhecimento teórico na intervenção política revolucionária – ao contrário, decorre desta linha de argumentação a conseqüência da mais exigente qualificação das vanguardas e de seus representantes mais destacados, notadamente quando se verifica que, no decurso do tempo, esta qualificação veio registrando uma curva descendente [4] . Mas, sem qualquer concessão a um weberianismo ocasional, se se constata a existência de "duas vocações", a teórica (científica) e a política, que não se excluem, mas que, se não coincidem necessariamente nas mesmas figuras (como, para citar tipos diversos, em Lênin, Mariátegui, Togliatti, Cunhal), há que dizer que elas podem articular-se no "intelectual coletivo" que as vanguardas organizadas devem estruturar.

Esta argumentação, porém, aponta num sentido preciso (e obviamente polêmico): não são as lacunas teóricas que estão na raiz das dificuldades políticas com que se vêem a braços os revolucionários de inspiração marxista. A paralisia que enfermou a vertente teórica dominante da tradição marxista ao tempo do stalinismo (o marxismo-leninismo oficial), bem como outros esclerosamentos, certamente foi um componente ponderável a embaraçar o desenvolvimento do movimento revolucionário – que, por outro lado, nunca se reduziu aos processos de transformação social substantiva direcionados por vanguardas de corte marxista. O insuficiente conhecimento de que esta tradição dispõe sobre vários domínios da vida social contemporânea decerto incide negativamente na potenciação de vetores revolucionários. Nada disto, todavia, é o determinante essencial das dificuldades atuais - até porque, como se referiu, a massa crítica produzida nos últimos trinta anos, no marco da tradição marxista, está longe de ser negligenciável. O determinante essencial parece residir na problemática da organização política dos revolucionários.


O déficit da organização política

A passagem de Lenin é conhecida à exaustão: "sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário" – mas nem sempre se leva em conta que ela vem inscrita num texto (Que fazer?) em que o futuro líder da Revolução de Outubro está tematizando, centralmente, o problema da organização política . Não me parece adulterar sua tese interpretá-la como exigindo a referência teórica (que, para ele, estava dada: o marxismo) para que a organização política (o partido) pudesse direcionar o processo revolucionário na Rússia czarista - mas a centralidade, no processo revolucionário, cabe à organização e à direção política.
Recordemos que o texto lenineano (fundante de um partido novo ) inscreve-se nas polêmicas que se travaram num arco temporal que pode ser claramente delimitado: o período que vai do Bernstein-Debatte (a segunda metade dos anos 1890) até a elaboração trotskiana do Programa de transição (às vésperas da Segunda Guerra Mundial). Aí se compreendem a crise da Segunda Internacional, a Revolução de Outubro, o fracasso da revolução no Ocidente, os giros da Terceira Internacional, a emersão do fenômeno stalinista etc. As riquíssimas polêmicas dessas quase quatro décadas tiveram sempre, explícita ou tacitamente, a centralidade da organização política (as vanguardas e sua relação com as massas) como elemento constitutivo. Todos os confrontos, colisões, divergências etc. – expressando decerto diferenças nas concepções teóricas – relacionavam-se à problemática da organização política. Elas são nítidas nas formulações (e práticas) de Kautsky, de R. Luxemburgo, de Lênin e mesmo de Trótski e Bukharin, apenas para referir os seus protagonistas mais conhecidos[5] . Depois deste período de polêmicas, praticamente não se introduziu nada de novo nos elementos nelas contidos.

A recorrência a tais polêmicas e, igualmente, às soluções que nelas foram propostas é, obviamente, de capital importância para enfrentar as dificuldades atuais. E, sendo procedente a hipótese com que aqui se trabalha, segundo a qual o "núcleo duro" dessas dificuldades radica na problemática da organização política, de tanto maior relevo se reveste a análise daquelas polêmicas e das implicações práticas das soluções nelas aventadas.

Todavia, e este é o ponto que me interessa salientar, a análise crítica dessa herança do movimento revolucionário, realizada com o estudo da experiência histórica do período que lhe corresponde (que tanto condicionou aquela herança quanto foi por ela modificada), pouco pode contribuir para romper com os nós que embaraçam hoje a atividade revolucionária. Com certeza, a meu juízo, essa análise reafirmará seja a indispensabilidade do máximo conhecimento possível da realidade social, seja a centralidade da organização política – mas não nos dirá nada acerca das formas concretas dessa organização nem sobre a sua articulação com instâncias e sujeitos sociais. Para ser bem claro: a análise crítica daquele legado haverá somente de nos indicar, à exceção dos dois constitutivos acima mencionados (o conhecimento e a organização política), a que herança devemos renunciar. Extrairemos, por exemplo, lições de Rosa Luxemburgo (quando alertava que a ditadura do proletariado poderia se tornar uma pura e simples ditadura) e de Trótski (quando denunciava/analisava a burocratização) – mas não extrairemos elementos positivos para uma refundação político-organizacional.

De fato, os dois constitutivos que deverão estar presentes para que se possa promover uma ofensiva socialista expressam os elementos universais do processo revolucionário conducente à superação da ordem do capital. Mas a sua particularização conseqüente com a quadra histórica contemporânea supõe e implica uma concretização para a qual a experiência passada pouco pode contribuir. Os problemas inteiramente novos, a que me referi na abertura desta rápida comunicação, escapam ao âmbito próprio daquela experiência – que, entretanto, permanece ainda como a referência básica do movimento revolucionário.

Um mundo novo

A constatação pode ser acaciana, mas deve ser repetida: as transformações societárias que se explicitaram nos últimos trinta anos configuraram um mundo novo.
A análise deste mundo revela que a teoria social de Marx é completamente atual: o modo de produção capitalista, em todas as diversas formações sociais existentes, obedece à dinâmica que foi idealmente (teoricamente) reproduzida n' O capital: exploração do trabalho, crescimento destrutivo e autodestrutivo, concentração e centralização de riqueza e poder, contradições e antagonismos etc., com toda a sua coorte de conseqüências deletérias no plano sócio-cultural e humano. A análise marxista do capitalismo contemporâneo, registrando novos fenômenos e processos – e esta análise vem sendo feita –, não infirma nenhuma das descobertas estruturais de Marx; mas revela que elas não dão plena conta das determinações novas desse capitalismo. Esta análise demonstra que as determinações teóricas de Marx, estruturalmente válidas, não são, apenas elas, suficientes para apreender o capitalismo dos nossos dias.
O desenvolvimento recente deste capitalismo introduziu profundas mutações na sociabilidade própria à sociedade burguesa. E se não afetou as bases da pertinência de classe (a propriedade) e se, menos ainda, reduziu a gravitação das lutas de classes no processo social, alterou substancialmente as modalidades pelas quais a estrutura e o movimento daquela sociabilidade são tomados pela consciência de homens e mulheres.

As transformações na vida cotidiana (na constelação familiar, no espaço da reprodução imediata dos indivíduos etc.), na distribuição espacial dos indivíduos e grupos sociais, na organização e na repartição do tempo de trabalho, no controle do tempo fora do trabalho, os novos mecanismos de manipulação ideológica, seus impactos sobre os costumes – tudo isto, e muito mais, alterou qualitativamente as condições de constituição da consciência da massa dos homens e das mulheres.

É somente a partir da consideração desse mundo novo – e os traços dele aqui esboçados já se encontram minimamente estudados – que se pode intentar, de modo sério, encontrar soluções conducentes à criação de instrumentos de organização política eficazes para operar uma ofensiva socialista. Porque, e esta é uma determinação essencial, se as dificuldades que embaraçam a atividade revolucionária são notáveis, igualmente notáveis são as motivações reais que permitem a mobilização e a organização de largos contingentes de homens e mulheres contra a ordem do capital. Em todos os quadrantes, do Norte ao Sul, o capitalismo contemporâneo enfrenta uma insatisfação generalizada e uma resistência ora difusa, ora ganhando expressões corporativas e particularistas. Molecularmente, a ordem do capital tem exponenciado os seus coveiros – mas este movimento real permanece espartilhado nos limites da ordem porque carece de instâncias universalizadoras.

E estas não serão criadas somente a partir da análise crítica da experiência anterior do movimento revolucionário. O mundo novo requer, também, invenção.


A invenção de um novo padrão organizacional

Lênin não foi citado por acaso nas páginas anteriores. Também ele se situa, historicamente, num momento de inflexão do capitalismo (a emergência do imperialismo) e também para ele se punha um problema específico: encontrar um instrumento que tornasse interventiva a referência teórica de Marx. E Lênin inventou esse instrumento: o partido novo.

Cuidemos de evitar mal-entendidos. Lênin – de quem, em 1924, Lukács salientava o realismo e o antiutopismo – não inventou o partido arbitrariamente, mediante simples volição individual (também esta invenção respondia a possibilidades históricas concretas). Ele não só dispunha de uma análise concreta da formação social para a qual dirigia suas energias (recorde-se O desenvolvimento do capitalismo na Rússia ) e de um substantivo conhecimento das experiências (anteriores e contemporâneas) dos movimentos revolucionários: incorporava criticamente os desdobramentos da teoria e da ciência que lhe eram contemporâneas [6] . E mais: assimilava sem preconceitos o que havia de válido na reflexão alheia, desenvolvia pistas referidas por outrem, inscrevia-se num debate coletivo e dava formulação rigorosa ao que nele emergia.

É deste tipo de invenção que o movimento socialista revolucionário de inspiração marxista necessita hoje. O conhecimento da herança já referida (de que Lênin é parte importante, mas não única) é, como sublinhei, indispensável para realizá-la – mas está longe de ser o bastante. Essencialmente, a invenção de um novo padrão político-organizacional e a formulação de seus parâmetros, que permitam direcionar para um processo revolucionário as generalizadas insatisfações e resistências em face da ordem do capital será resultado de uma elaboração coletiva, capaz de incorporar a massa crítica de que já dispomos sobre o capitalismo contemporâneo e de apreender as/responder às formas atuais da sociabilidade.

Será uma tarefa muito mais complicada que a realizada por Lênin – devendo conjugar, num registro antes desconhecido, a teoria revolucionária atualmente acessível com demandas muito diferenciadas e pulverizadas. Mas é esta mesma conjugação que poderá unificar (sem identificar, com a diluição das suas especificidades) tais demandas, situando-as numa perspectiva universalizante que supere particularismos e corporativismos. E trata-se de tarefa factível desde que, aproveitando as lições do passado, deixemos de tomá-las como exemplos – e este é, como diria o velho Florestan, o buzílis da questão: a incontornável referência à herança não pode hipotecar a experimentação necessária.

Num ensaio de mais de vinte anos, Perry Anderson observava, com a sua conhecida argúcia, que o chamado marxismo ocidental tinha como traço pertinente o nunca haver conseguido vincular-se a movimentos de massa. Sem exagero, quer-me parecer que, nos dias correntes, o problema não reside em o marxismo tout court estar desvinculado de movimentos de massa – o problema está em que movimentos de massa são raros.

A invenção de um novo padrão de organização política, se, de um lado, é condicionada pela existência desses movimentos, de outro pode fomentá-los e torná-los mais densos.

Não é possível sequer prospectar se e quando uma tal invenção terá lugar – ainda que, para ela, estejam dados muitos elementos. Mas, salvo grave erro de avaliação, é possível concluir assegurando que da ultrapassagem deste nosso déficit organizacional depende, em escala decisiva, a possibilidade de travar e reverter a barbárie capitalista.



1. Tratei desta questão no meu ensaio Crise do socialismo e ofensiva neoliberal (S. Paulo: Cortez, 2007).
2. Por exemplo: ainda carecemos de análises suficientemente exaustivas sobre a crise do "socialismo real" ou do tipo de desenvolvimento social que se verifica na República Popular da China.
3. É sempre saudável recordar que o esforço teórico é dinamizado por dúvidas e perguntas, ao passo que a direção da atividade política demanda convicções (no caso da atividade revolucionária, preferencialmente fundadas em conhecimento teórico).
4. Uma imagem-limite desse declínio desolador se obtém quando se confronta o Comitê Central dirigido por Lênin e o Comitê Central secretariado por Brejnev – mas o fenômeno operou universalmente, quase sem o registro de exceções. E transcendeu o espaço da política revolucionária:   ao passo que G. Washington lia Rousseau, L. Johnson deleitava-se com o pato Donald.
5. As importantíssimas reflexões de Gramsci pertencem a este rico período em que a tradição marxista tanto se desenvolveu – entretanto, só se tornaram conhecidas e influentes muito posteriormente.
6. Ainda que nem sempre tenha sido bem sucedido nesta interlocução, como o atesta Materialismo e empirocriticismo.

Las consecuencias mundiales de la decadencia de Estados Unidos


Hace 10 años, cuando algunas personas y yo hablábamos de la decadencia de Estados Unidos en el sistema-mundo, a lo sumo nos topábamos con sonrisas de condescendencia ante nuestra ingenuidad. ¿No era Estados Unidos la única superpotencia, involucrada en cada uno de los rincones más remotos de la Tierra, haciendo lo que quisiera casi todo el tiempo? Ésta era una visión compartida a todo lo ancho del espectro político.
Hoy, la visión de que Estados Unidos está en decadencia, en seria decadencia, es una banalidad. Todo el mundo lo dice, excepto algunos políticos estadunidenses que temen ser culpados por las malas noticias de la decadencia si la discuten. El hecho es que prácticamente todo el mundo cree hoy en la realidad de esa decadencia. Sin embargo, algo que está menos discutido es cuáles han sido y serán las consecuencias en el mundo de esta decadencia. La decadencia tiene raíces económicas que siguen su curso. Pero la pérdida del cuasi monopolio del poder geopolítico que Estados Unidos ejerció alguna vez tiene consecuencias políticas importantes en todas partes.

Empecemos con una anécdota contada en la sección de Negocios del New York Times el 7 de agosto. Alguien que gestiona inversiones en Atlanta apretó el botón de pánico en nombre de dos acaudalados clientes que le dijeron que vendiera todas sus acciones y que invirtiera el dinero en un fondo común de inversión más o menos blindado. El gestor dijo que, en los 22 años que llevaba en el negocio, nunca había recibido una petición como ésa. Era algo sin precedentes. El periódico le llamó a esto el equivalente “Wall Street” de la opción nuclear. Iba en contra del consagrado consejo tradicional de asumir un enfoque firme y constante conforme se avanza ante los vaivenes del mercado.
Standard & Poor’s ha reducido su calificación crediticia de Estados Unidos de AAA a AA+, también algo sin precedentes. Pero esto fue una acción bastante leve. La agencia equivalente en China, Dagong, ya le había reducido la credibilidad crediticia a Estados Unidos en noviembre pasado a A+, y ahora se le redujo a A-. El economista peruano Oscar Ugarteche ha declarado que Estados Unidos es una república bananera. Dice que Estados Unidos ha optado por la política del avestruz para no espantar a las expectativas(de crecimiento).

Y en Lima, la semana pasada, los ministros de finanzas de los estados sudamericanos, reunidos, han discutido urgentemente cómo aislarse de la mejor manera ante los efectos de la decadencia económica de Estados Unidos. El problema para todo el mundo es que es muy difícil aislarse de los efectos de la decadencia estadunidense. Pese a la severidad de su decadencia económica y política, Estados Unidos continúa siendo un gigante en el escenario mundial, y cualquier cosa que pase ahí sigue provocando grandes olas en todas partes.

Con toda certeza, el impacto más fuerte de la decadencia estadunidense ocurre y seguirá ocurriendo al interior de Estados Unidos. Los políticos y los periodistas hablan abiertamente de la disfuncionalidad de la situación política estadunidense. ¿Pero qué otra cosa puede ser sino disfuncional? El hecho más elemental es que los ciudadanos estadunidenses están aturdidos por el mero hecho de la decadencia. No es sólo que los ciudadanos estadunidenses sufran ellos mismos, materialmente, por la decadencia, y que estén profundamente asustados de que sufrirán más conforme el tiempo avance. Es que habían creído a nivel muy profundo que Estados Unidos es la nación elegida, designada por Dios o la historia para ser el país modelo en el mundo. El presidente Barack Obama sigue tratando de tranquilizarlos diciendo que Estados Unidos es un país triple A.

El problema para Obama y para todos los políticos es que muy pocas personas siguen creyendo eso. El golpe al orgullo nacional y a la imagen propia es formidable, y es también muy repentina. El país está tomando muy mal este golpe. La población busca chivos expiatorios y ataca muy a lo loco, y no con demasiada inteligencia, a los supuestos culpables. La última esperanza parece ser que alguien sea culpable, y como tal el remedio sea cambiar a las personas con autoridad.

En general, las autoridades federales son vistas como las que hay que culpar: el presidente, el Congreso, ambos partidos principales. La tendencia es muy fuerte hacia tener más armas a nivel individual y a ejercer un recorte del involucramiento militar fuera de Estados Unidos. Culpabilizar de todo a la gente de Washington conduce a una volatilidad política y a luchas intestinas locales cada vez más violentas. Estados Unidos es hoy, diría yo, una de la entidades políticas menos estables en el sistema-mundo.

Esto hace de Estados Unidos no sólo un país cuyas luchas políticas son disfuncionales, sino uno que es incapaz de consolidar mucho poder real en la escena mundial. Entonces, hay una caída importante en la fe en el país, y en su presidente, por parte de los aliados tradicionales de Estados Unidos fuera y por la base política del presidente en casa. Los periódicos están llenos de análisis de los errores políticos de Obama. ¿Quién puede argumentar con esto? Con suma facilidad, yo podría enlistar docenas de decisiones que Obama hizo, y que desde mi punto de vista fueron equivocadas, cobardes o algunas veces directamente inmorales. Pero me pregunto si, de haber tomado las mucho mejores decisiones que su base supone que debió tomar, habría habido mucha diferencia en el resultado. La decadencia de Estados Unidos no es el resultado de decisiones pobres por parte de su presidente, sino de las realidades estructurales en el sistema-mundo. Obama puede ser el individuo más poderoso del mundo todavía, pero ningún presidente estadunidense es tan poderoso hoy como los presidentes de antaño.

Hemos entrado en una era de agudas, constantes y rápidas fluctuaciones –en las tasas de cambio de las divisas, en las tasas de empleo, en las alianzas geopolíticas, en las definiciones ideológicas de la situación. El grado y rapidez de estas fluctuaciones conduce a la imposibilidad de contar con predicciones de corto plazo. Y sin alguna estabilidad razonable en las predicciones de corto plazo (tres años más o menos) la economía-mundo se paraliza. Todo el mundo tendrá que ser más proteccionista e introspectivo. Y los estándares de vida bajarán. No es un cuadro bonito. Y aunque hay muchos, muchos aspectos positivos para muchos países a causa de la decadencia estadunidense, no hay certeza de que en el loco bamboleo del barco mundial, otros países puedan de hecho beneficiarse como esperan de esta nueva situación.

Es tiempo de un análisis de largo plazo mucho más sobrio, de juicios morales mucho más claros acerca de lo que el análisis revela, y de acciones políticas mucho más efectivas en el esfuerzo, en los próximos 20 o 30 años, para crear un mejor sistema-mundo que en el que estamos atorados ahora.

Delinqüência acadêmica


A “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: “Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. 

Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”. Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído poruma “universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder”. Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emersonfazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes “corporações”, a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma “alma”. [1] 
(…)

Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico,pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal.
O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.(…)

* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP.
Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. Sã Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1)

[1] Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual.
[2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948

Mais América




O momento atual tem profundo significado para nós. É o momento em que as Américas se definem pela América e em que os homens americanos devassam as terras americanas em todas as direções. Parece-nos mesmo, que o americanismo passou do plano exclusivamente político e económico, para integrar as preocupações dos homens médios. Assim, não é mais fórmula aproximadora de nações, um pã-americanismo, mas uma realidade unificadora de povos, isto é, de individuos e ideais.
Nós, no Brasil, já tivemos no passado homens que lutaram pela aproximação americana, e muito trabalharam para isso. Rio Branco e Joaquim Nabuco foram americanistas por excelência, se entendermos o americanismo como forma de incrementar as relações entre as nações americanas, à moda de Monroe. Depois desses dois estadistas, houve altos e baixos relativamente à aproximação continental, entre nós, predominando, como sempre, o sentido de maior compreensão americana. O nosso momento, entretanto, é original. As Américas tornam-se América através das gerações novas. Pela primeira vez, de norte a sul, os moços participam intensamente da vida e dos problemas americanos: é a função que estão realizando as universidades, as grandes instituições que concedem bolsas de estudos, as missões de divulgação cultural e os próprios governos. E só desta maneira podem os americanos se por em contacto com os problemas reais da América, problemas que são nacionais sob certos aspectos, mas que sob outros são americanos e mesmo universais. Tambem se apresenta como o único modo para uma compreensão ampla, do americanismo, pois o conhecimento da nova formação e dos problemas atuais, está, sem dúvida fornecendo uma outra América à geração nova, a América que é hoje, e não as Américas da época colonizadora, entrepostos comerciais das grandes potências européias.
O americanismo não é um problema. É antes, uma realidade ou, diríamos melhor, uma contingência. Veiu-nos com o descobrimento, com a fixação do homem à terra, com as necessidades impostas pelo meio aos novos elementos étnicos, criando um ambiente de rudeza e de fraqueza que observamos em todos os povos da América, sejam do norte sejam do sul, latinos ou não. Embora as soluções não tenham sido idênticas, as situações foram constantemente as mesmas. O negro, por exemplo, na América do Norte foi segregado, enquanto no Sul, entre nós, fundiu-se em grandes proporções aos demais elementos étnicos. Mas o tráfico e a escravização inicial do negro foi uma contingência, lá como aquí.
E quais foram os primeiros civilizados da América? Os homens da ombridade e da sombranceria, os homens de punho de ferro e coração-fornalha. Formamo-nos, todos, aos poucos e de empréstimo. Transplantamos homens e cultura e vivemos o mesmo drama da liberdade selvagem, do homem liberal por contingência e formação e de um democratismo sui-generis: o obedece-me que serás benquisto e digno. Democratismo, aliás, que resultou do encontro de duas atitudes antagônicas: o autoritarismo individual do europeu dominante e os padrões propriamente democráticos de conduta, impostos pela realidade, pois aquí até a tolerância foi, historicamente, uma contingência. Nisso a América superou o homem...
Atualmente, mais que no passado, somos os homens que lutam por duas soluções: a étnica e a económica. Começamos um processo e não percebemos seu fim e dele conhecemos apenas certas fases já realizadas. Como se definirá cada tipo étnico americano e quando? Como serão resolvidas as questões sociais implicadas pela nossa formação? Qual o sentido que tomarão as relações entre brancos e não brancos em cada país americano e como influirão na tendência de maior aproximação americana? E qual vai ser a afirmação económica de cada pais americano? Seguirão a linha imposta pelos recursos naturais ou procurarão futuramente criar um organismo económico autárquico, mesmo que artificial? Seguirão a divisão natural dos mercados, compreendendo a complementaridade dos mesmos, ou criarão economias nacionais em conflito, como já o fizeram os europeus? Como influirá a situação económica de cada pais nas relações das Américas como América no futuro? Quais os aspectos que tomarão as relações sociais nessas sociedades? Porque estamos em processo tudo são perguntas, e valem tanto aqui como acolá. Somos, quasi, a mesma gente. Pelo menos vivemos as mesmas situações e temos que resolver problemas fundamentalmente semelhantes.
Somos os mesmos homens sem "finesse", os homens de mãos calejadas que constroem o mundo brilhante e enfatuado de amanhã. O mundo americano realizado e das idéias voltadas sobre si mesmas. Porisso somos os homens da tragédia e sentimos palpitar a selva que estua violentamente neste mundo híbrido e em realização. Nós o sentimos porque o estamos criando, e o sentimos não como criadores, mas ingenuamente, sem malicia e profundeza porque ele nos parece grande demais para ser criado por alguem -mesmo milhões de pessoas em dezenas de gerações.
Porisso falamos em mais América. Este mais América significa um maior conhecimento recíproco de formas e não de conteudos, como poderia ressaltar do que já dissemos no artigo. Contudo não deixa de ser necessário e fecundo, emprestando um carater muito simpático a esse bandeirismo inter-continental e verdadeiramente americanista das novas gerações. 

Assaltantes de lojinhas do mundo, uni-vos!



A repetição, segundo Hegel, tem papel crucial na história: se alguma coisa acontece uma única vez, pode ser descartada como acidente, algo que poderia ter sido evitado se a situação tivesse sido conduzida de modo diferente; mas quando um mesmo evento repete-se, é sinal de que está em curso um processo histórico mais profundo. 

Quando Napoleão foi derrotado em Leipzig em 1813, pareceu má sorte; quando foi derrotado outra vez em Waterloo, ficou claro que seu tempo acabara. Vale o mesmo para a continuada crise financeira. Setembro de 2008 foi apresentado como anomalia que podia ser corrigida com melhores regulações e controles; hoje se acumulam sinais de quebradeira nas finanças e já é evidente que estamos lidando com fenômeno estrutural. 

Dizem e repetem e repetem que atravessamos uma crise da dívida e que todos temos de partilhar a carga e apertar os cintos. Todos, exceto os (muito) ricos. Aumentar impostos sobre muito ricos é tabu: se se fizer isso, diz o mesmo argumento, os ricos não terão incentivo para investir, haverá menos empregos e todos sofreremos mais. A única salvação, nesses tempos duros, é os pobres ficarem cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. O que devem fazer os pobres? O que podem fazer? 

Embora os tumultos de rua na Grã-Bretanha tenham sido desencadeados pela morte de Mark Duggan, todos concordam que manifestam mal-estar mais profundo ? mas que tipo de mal-estar? Como quando se queirmaram carros nos subúrbios de Paris em 2005, os agitadores de rua na Grã-Bretanha não tinham mensagem alguma a comunicar. (Há aí claro contraste com as manifestações massivas de estudantes em novembro de 2010, que também geraram violência. Os estudantes deixaram bem claro que rejeitavam as propostas de reformas na educação superior.) 

Por isso é difícil pensar sobre os agitadores de rua britânicos em termos marxistas, como uma instância da emergência do sujeito revolucionário; encaixam-se muito mais facilmente na noção hegeliana de "ralé", "escória" [orig. 'rabble'], espaços marginais organizados, que manifestam o próprio descontentamento mediante explosões 'irracionais' de violência destrutiva ? que Hegel chamava de "negatividade abstrata". 

Há uma velha história sobre um operário suspeito de roubo: todas as tardes, ao sair da fábrica, o carrinho-de-mão que ele empurra é cuidadosamente revistado. Os guardas nada encontram; o carrinho está sempre limpo. Até que a ficha cai: o operário roubava um carrinho-de-mão por dia. Os guardas não viam a mais visível verdade, exatamente como os jornalistas e especialistas e autoridades que comentaram os tumultos de rua. 

Dizem-nos que a desintegração dos regimes comunistas no início dos anos 1990 marcaram o fim da ideologia: o tempo dos projetos ideológicos em grande escala que culminaram em catástrofe totalitária está acabado; teríamos entrado numa nova era de política racional, pragmática. Se o lugar-comum de que vivemos numa era pós-ideológica é correto em algum sentido, pode-se ver nas recentes explosões de violência. Foi protesto de grau-zero, ação violenta sem demandas. Em sua tentativa desesperada para encontrar algum sentido nos tumultos, sociólogos e jornalistas deixaram passar sem qualquer registro o enigma que os tumultos nos impuseram. 

Os que protestavam, oprimidos e socialmente excluídos de fato, não vivem risco de morrer de fome. Gente que sobrevive em condições materiais muito piores, sem falar das condições de opressão física e ideológica, têm conseguido organizar-se em forças políticas com agendas políticas claras. 

O fato de os agitadores não terem programa é, portanto, ele mesmo, fato que exige interpretação: diz muito sobre nossa pregação político-ideológica e sobre o tipo de sociedade em que vivemos ? uma sociedade que celebra a escolha, mas na qual a única escolha possível é um consenso democrático obrigatório praticado como repetição sem pensamento [ing. a blind acting out]. 

Nenhuma oposição ao sistema consegue articular-se como alternativa realista, sequer como projeto utópico, e só consegue assumir a forma de explosão sem meta ou significado. O que significaria nossa tão celebrada liberdade para escolher, se a única escolha possível é jogar pelas regras ou a violência (auto)destrutiva? 

Alain Badiou argumentou que vivemos num espaço social que cada dia mais é experienciado como "sem mundo" [orig, 'worldless']: nesse espaço, a única forma que o protesto pode assumir é a violência sem sentido. 

Talvez aí esteja um dos principais perigos do capitalismo: embora, porque é global, o capitalismo inclua todo o mundo, ele mantém uma constelação ideológica "sem mundo", na qual as pessoas são privadas dos meios conhecidos para localizar o significado. A lição principal da globalização é que o capitalismo pode acomodar-se a todas as civilizações, cristã, hindu ou budista, do Ocidente e do Oriente: não há qualquer 'visão de mundo capitalista', nenhuma 'civilização capitalista' propriamente dita. A dimensão global do capitalismo manifesta a verdade sem significado. 

A primeira conclusão a ser extraída dos tumultos de rua, portanto, é que nenhuma das reações aos tumultos, seja a conservadora seja a liberal, é adequada. 

A reação conservadora era previsível: não há o que justifique tal vandalismo; é preciso usar os meios necessários para restaurar a ordem; para evitar que explosões como aquelas se repitam no futuro, precisamos, não de mais tolerância e ajuda social, mas de mais disciplina, mais trabalho duro e senso de responsabilidade. 

O que há de errado nessa narrativa não é só que ela ignora a situação social de desespero que empurra os jovens para explosões de violência mas, e talvez mais importanre, que ela ignora o modo como essas explosões são eco das próprias premissas ocultas da ideologia conservadora. 

Quando, nos anos 1990, os Conservadores lançaram sua campanha de "de volta ao básico", o complemento obseno que aí havia foi bem claramente revelado por Norman Tebbitt: "O homem não é só animal social, também é animal territorial; é indispensável incluir em nossa agenda a necessidade de satisfazer esses instintos humanos básicos de tribalismo e de territorialidade." Porque aquela "volta ao básico" tratava, realmente, disso: de soltar os bárbaros que vegetam por baixo de nossa sociedade burguesa aparentemente civilizada, satisfazendo os "instintos básicos" dos bárbaros. 

Nos anos 1960, Herbert Marcuse introduziu o conceito de "dessublimação repressiva", para explicar a "revolução sexual": os impulsos humanos podem ser dessublimados, ganhar rédea solta, e, mesmo assim, permanecer submetidos aos controle capitalista ? vide a indústria pornográfica [e as novelas e programas humorísticos da televisão brasileira (NTs)]. Nas ruas britânicas, durante os tumultos, o que se viu não foram homens reduzidos a 'bestas', mas a forma nua da 'besta' produzida pela ideologia capitalista. 

Por sua vez, os liberais de esquerda, não menos previsíveis, agarraram-se ao seu mantra sobre programas sociais e iniciativas de integração, as quais, negligenciadas, teriam privado a segunda e terceira gerações dos imigrantes de suas possibilidades econômicas e sociais: explosões de violência seriam o único meio que ainda têm para articular a insatisfação. 

Em vez de nos permitir embarcar indulgentemente em fantasias de vingança, devemos nos esforçar para entender as causas profundas dos atos de violência. Saberíamos nós o que significa ser jovem em área pobre racialmente 'complexa', ser considerado suspeito a priori nas batidas policiais, sempre agredidos por policiais, não só desempregado mas, muitas vezes, inimpregável, sem esperanças de futuro? A implicação é que as próprias condições em que essas pessoas encontram-se tornariam inevitável que tomassem as ruas. 

O problema dessa narrativa é que só lista as condições objetivas dos tumultos. 'Agitar', 'tumultuar' seria fazer uma declaração subjetiva, declarar implicitamente como alguém se relaciona com as próprias condições objetivas de vida. 

Vivemos tempos cínicos. Não é difícil imaginar um agitador que, apanhado quando saqueava e incendiava uma loja e interrogado sobre suas razões, responda usando a linguagem dos sociólogos e assistentes sociais: que fale de menor mobilidade social, insegurança crescente, desintegração da autoridade paterna, carência de atenção materna na infância. Ele sabe portanto o que faz, mas mesmo assim faz. 

É perda de tempo ponderar qual dessas duas reações, a conservadora ou a liberal, é a pior: como Stálin diria, as duas são piores, e isso inclui o alerta que os dois lados dão, de que o real perigo dessas explosões está na previsível reação racista da "maioria silenciosa". 

Uma das formas que essa reação assumiu em Londres foi a atividade 'tribal' de comunidades locais (turcos, caribenhos, sikhs), que rapidamente organizaram unidades por 'tribos' para vigiar suas propriedades. Os donos de lojas seriam uma pequena burguesia que defende sua propriedade contra um genuíno, embora violento, protesto contra o sistema? Ou seriam representantes da classe trabalhadora combatendo contra forças da desintegração social? Também nesse caso, deve-se rejeitar a ordem para escolher um dos lados. 

A verdade é que o conflito aconteceu entre dois pólos de oprimidos: os que tiveram sucesso e conseguiram operar dentro do sistema versus os frustrados demais para continuar tentando. A violência dos agitadores foi dirigida quase exclusivamente contra seus respectivos grupos. Os carros queimados e as lojas saqueadas não foram queimados e saqueadas em bairros ricos, mas nos próprios bairros onde vivem os incendiadores e saqueadores. Não há conflito entre diferentes partes da sociedade; o conflito é, no seu aspecto mais radical, entre sociedade e sociedade, entre os que têm tudo e os que nada têm a perder; os que nada apostaram na própria comunidade e os que fizeram as mais altas apostas. 

Zygmunt Bauman caracterizou os tumultos como "atos de consumidores defeituosos e não qualificados": sobretudo, foram manifestação de um desejo consumista atuado [orig. enacted] quando incapaz de realizar-se do modo 'certo' ? mediante um ato de compra. Nessa medida, os tumultos também contêm um momento de protesto genuíno, sob a forma de resposta irônica à ideologia do consumo: "Vocês nos convocam para consumir e, simultaneamente, nos negam os meios para consumir do jeito 'certo'. ? Estamos consumido, do único modo possível para nós!" 

Os tumultos são demonstração da força material da ideologia ? excessiva, talvez, em tempos de 'sociedade pós-ideológica'. De um ponto de vista ideológico, o problema dos tumultos não está na violência como tal, mas no fato de que a violência não é verdadeiramente autoafirmativa. É raiva e desespero impotentes mascarados como exibição de força: é inveja travestida de carnaval triunfante. 

Os tumultos devem ser situados também em relação a outro tipo de violência que a maioria liberal percebe hoje como ameaça ao nosso modo de vida: os ataques terroristas e os suicidas-bomba. Nas duas instâncias, violência e contraviolência são apanhadas num círculo vicioso, as duas gerando as mesmas forças que tentam derrotar. Nos dois casos, estamos lidando com passages à l'acte [fr. no original] cegas, nas quais a violência é admissão implícita de impotência. A diferença é que, ao contrário dos tumultos na Grã-Bretanha ou em Paris, os ataques terroristas são postos a serviço de um significado ? o Significado absoluto que a religião assegura. 

Mas os levantes árabes não foram ato coletivo de resistência que rejeitaram a falsa alternativa entre violência autodestrutiva e fundamentalismo religioso? Infelizmente, o verão egípcio de 2011 será lembrado como o fim da revolução, quando seu potencial emancipatório foi sufocado. Os coveiros são o exército e os islâmicos. Os contornos do pacto entre o exército (que é o exército de Mubarak) e os islâmicos (que foram marginalizados durante os primeiros meses do levante, mas agora estão ganhando terreno) são cada dia mais claros: os islâmicos tolerarão os privilégios materiais do exército e, em troca, garantirão a hegemonia ideológica. 

Os perdedores serão os liberais pró-ocidente, fracos demais ? apesar do dinheiro da CIA ? para 'promover a democracia'; e os verdadeiros agentes dos levantes da primavera, uma emergente esquerda secular que tentava montar uma rede de organizações da sociedade civil, a partir dos sindicatos e das feministas. 

A situação econômica em rápida deterioração, logo, mais cedo ou mais tarde, levará os pobres, grandes ausentes dos levantes da primavera árabe, às ruas. É bem provável que haja nova explosão, e a pergunta difícil para os sujeitos políticos egípcios é: quem dirigirá, com sucesso, a ira dos pobres? Quem traduzirá essa ira em termos de programa político: a nova esquerda secular ou os islâmicos? 

A reação predominante na opinião pública ocidental ao pacto entre islâmicos e o exército no Egito será, sem dúvida, um show de cinismo: nos dirão que, como o caso do Irã (não árabe) mostrou claramente, levantes populares em países árabes sempre terminam em islamismo militante. Mubarak aparecerá como diabo muito menos perigoso ? melhor ficar com diabo conhecido que lidar com forças de emancipação. Contra tal cinismo, é preciso permanecer incondicionalmente aliado ao núcleo radical-emancipatório do levante egípcio. 

Mas é preciso evitar também o narcisismo da causa perdida: é muito fácil admirar a beleza sublime dos levantes condenados ao fracasso. 

Hoje, a esquerda enfrenta o problema da 'negação determinada' [orig. 'determinate negation']: que nova ordem deve substituir a velha ordem, depois do levante, quando houver passado o sublime entusiasmo do primeiro momento? Nesse contexto, o manifesto dos Indignados da Espanha, lançado depois das manifestações em maio, é revelador. 

O primeiro traço que chama a atenção é o decidido tom apolítico: "Uns de nós consideram-se progressistas, outros conservadores. Uns são religiosos crentes, outros não. Uns têm ideologias claramente definidas, outros são apolíticos, mas todos estamos preocupados e zangados com o quadro político, econômico e social que vemos à nossa volta: corrupção de políticos, empresários, banqueiros, que nos deixam indefesos, sem voz." 

Protestam em nome de "verdades inalienáveis que não vemos respeitadas em nossa sociedade: o direito a moradia, emprego, cultura, saúde, participação política, livre desenvolvimento pessoal, direitos do consumidor e a uma vida saudável e feliz". Rejeitando a violência, clamam por uma "revolução ética. Em vez de pôr o dinheiro acima dos seres humanos, devemos pô-lo a nosso serviço. Somos pessoas, não produtos. Não sou o que compro, porque compro ou de quem compro." 

Quem serão os agentes dessa revolução? Os Indignados espanhóis descartam todos os políticos, a esquerda e a direita, como corruptos e controlados pela ganância e pela sede de poder. Mesmo assim, o manifesto apresenta várias demandas, mas... dirigidas a quem? Não a eles mesmos: os Indignados (ainda) não declaram que ninguém mais fará por eles, que eles mesmo têm de ser a mudança que querem ver. 

E aí está a fragilidade fatal dos recentes protestos: manifestam uma raiva autêncica que não consegue transformar-se em programa de ação positiva para mudança sociopolítica. Manifestam um espírito de revolta, sem revolução. 

A situação na Grécia parece mais promissora, provavelmente devido a uma tradição mais persistente de auto-organização progressista (que desapareceu na Espanha depois da queda do regime de Franco). Mas mesmo na Grécia o movimento de protesto padece das limitações da auto-organização: os que protestam estão mantendo um espaço de liberdade igualitária sem autoridade central, um espaço público no qual todos têm o mesmo tempo para falar etc. Quando os manifestantes começaram a discutir o passo seguinte, como avançar além dos simples protestos, a maioria concluiu que não se precisava de novo partido e que não era o caso de tentar tomar o poder do estado; que o movimento faria pressão sobre os partidos políticos. 

Evidentemente, é muito pouco para forçar uma reorganização de toda a vida social. Para chegar lá, é indispensável um corpo forte, competente para tomar decisões rápidas e implementá-las com todo o rigor necessário.