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Estorvo




A pressa, o nervosismo, a instabilidade, observados desde o surgimento das grandes cidades, alastram-se nos dias de hoje de uma forma tão epidêmica quanto outrora a peste e a cólera. Nesse processo manifestam-se forças das quais os passantes apressados do século XIX não eram capazes de fazer a menor ideia. Todas as pessoas têm necessariamente algum projeto. O tempo de lazer exige que se o esgote. Ele é planejado, utilizado para que se empreenda alguma coisa, preenchido com vistas a toda espécie de espetáculo, ou ainda apenas com locomoções tão rápidas quanto possível. A sombra de tudo isso cai sobre o trabalho intelectual. Este é realizado com má consciência, como se tivesse sido roubado a alguma ocupação urgente, ainda que meramente imaginária. A fim de se justificar perante si mesmo, ele dá-se ares de uma agitação febril, de um grande afã, de uma empresa que opera a todo vapor devido à urgência do tempo e para a qual toda a reflexão — isto é, ele mesmo — é um estorvo.

Theodor Adorno

Na política não há lugar para o vazio




Desde o início deste ano, quando os protestos que derrubaram os regimes autoritários no “mundo árabe” ganharam as manchetes dos noticiários, temos visto uma sucessão de mobilizações em massa que, inicialmente, ocuparam as ruas e centros urbanos das principais cidades e capitais dos Estados Unidos e Europa, espraiando-se rápida e surpreendentemente pelos demais continentes por força, em boa medida, das chamadas “redes sociais” – um dispositivo que, junto com essas mobilizações e mesmo se confundido com elas, inaugura uma nova era quanto à capacidade global de organização das resistências políticas.
Depois da chamada “Primavera Árabe” que levantou multidões contra a tirania dos governos da Tunísia, Líbia, Egito, Argélia, Jordânia, Marrocos, Iêmen, Bahrein e Síria, vieram os protestos em defesa da educação pública no Chile, os “indignados” na Espanha, os incêndios e saques praticados no norte de Londres, o inconformismo da geração “à rasca” em Portugal, as manifestações contra a crise econômica na Grécia, a oposição ao governo Berlusconi na Itália, até que os protestos ganharam uma razoável perenidade por meio da ocupação estratégica de espaços públicos, tal como se viu especialmente no Occupy Wall Street – uma experiência replicada em diversas outras cidades da qual a última notícia que se tem é sobre o movimento “Ocupa Tóquio”.
No Brasil, tal como acontece noutros lugares, esses acampamentos urbanos têm resistido à forte repressão policial e à indisposição da mídia que, quando não ataca diretamente, silencia e boicota a divulgação do esforço daqueles que, há meses, mantêm de pé as barracas do Ocupa Sampa, do Ocupa Rio e do Ocupa Salvador. Por fim, há pouco mais de um mês, o dia 15 de outubro foi consagrado como o dia da “revolução mundial”, contando com a realização de protestos, ocupações, marchas, greves, fóruns, aulas públicas e demais ações contestatórias em quase 900 cidades espalhadas pelo mundo e virtualmente conectadas.
Sem querer estender o caráter informativo ou quase jornalístico desta apresentação, procurando dar conta das particularidades que melhor caracterizam cada um desses eventos – já que se sabe claramente da radical diferença entre os contextos histórico-nacionais de uma Líbia e de uma Holanda – interessa abstrair essas diferenças em nome das semelhanças e mesmo da situação típica que permite falar, senão em termos de unidade, pelo menos em termos gerais.
Pois bem, por onde começar então? Creio que a melhor expressão para nomear essas manifestações espontâneas – que a muitos assombra e a outros tantos lhes furta as respostas prontas, retiradas de manuais – seja aquela declarada em uníssono pelos espanhóis que se reuniram em Puerta de Sol: “los indignados”. A ideia de indignação corresponde adequadamente ao caráter de irrupção desses movimentos, como se já não fosse mais possível permanecer calado, como se alguma privação, injúria ou mesmo um desconforto qualquer, levado às últimas consequências, tornasse a situação insustentável.
É difícil supor que estado de ânimo precedia tudo isso, que tensões se acumulavam silenciosamente, a ponto de que um ato desesperado – como o de um sujeito que decidiu atear fogo no próprio corpo – pudesse fazer ruir regimes militares encastelados há décadas. A ausência de liberdades civis, a derrocada da democracia representativa, a corrupção dos agentes públicos, os ajustes fiscais para enfrentar a crise econômica mundial, a precarização das relações de trabalho, o desemprego qualificado, o monopólio da informação, a ingerência das corporações sobre os governos – todos esses elementos, por certo, criaram, em seus respectivos contextos nacionais, as condições para a eclosão dessa massa de indignados que gritam: “não nos representam!”.
No entanto, diante desta miríade de motivações, talvez não seja o caso de tentar em vão solucionar questões que perguntam com estupor sobre “o que teria exatamente causado tudo isso” ou “por que não aconteceu antes?”. Trata-se, pelo contrário, de envidar esforços na compreensão do sentido desses eventos, tendo em vista enlaçar suas implicações mais gerais e perguntar até que ponto esses acontecimentos constituem a forma adequada de expressão das contradições de nossa época e o prenúncio do declínio das formas políticas tradicionais de organização e representação.
Desta feita, gostaria de insistir na ideia de indignação como “estado de coisa” resultante de certa privação – melhor seria dizer castração, já que ela nos lembra o esforço memorável de Sigmund Freud, a certa altura do desenvolvimento de sua metapsicologia, inscrito em Totem e tabu (1913). Depois de arquitetar conceitualmente um complexo aparelho psíquico que funcionava a partir do mecanismo de defesa do ego, dissociando representação e energia afetiva correspondente, e, a partir daí, identificar, por meio da interpretação dos sonhos, a etiologia sexual de certas doenças mentais e a importância das experiências infantis para a formação do inconsciente conforme o complexo de Édipo, Freud procura sustentar a teoria que elabora com base em suas descobertas clínicas numa inusitada antropologia das formas primitivas de sociedade, em busca de verdades factuais que explicassem os mitos fundadores, iluminadas por suas formulações acerca do psiquismo.
Em Totem e tabu, Freud retoma uma ideia de Darwin sobre o estágio primitivo das sociedades humanas, baseada na noção de um pai primevo, ciumento e violento, que reservava as fêmeas para si e expulsava da comunidade ou punia severamente os filhos que ousassem contrariá-lo. Na sequência dessa especulação, um recurso a que Freud chamou de “mito científico”, os irmãos, expulsos pelo pai violento e temido, retornam, matam-no e o devoram, colocando fim à horda patriarcal. Consuma-se, portanto, o parricídio – o assassinato do pai, um ato criminoso que, paradoxalmente, dá origem a uma ordem social, fundada em restrições morais sobre as pulsões e na religião que cultua o Totem, representação simbólica do pai que fora morto. O ato de devorar o pai, comprovado pelos registros arqueológicos de rituais totêmicos, consuma a identificação dos irmãos com ele e com o lugar que ocupa, pois ao comer suas partes, adquirem parte de sua força, permitindo-se, pois, gozar dos privilégios irrestritos do patriarca.
Depois de toda a orgia e desordem que se seguem à morte do pai, advém o arrependimento dos irmãos, pois a afeição com “o amável tirano” produz um enorme sentimento de culpa, de desamparo, já que a filiação, antes de tudo, proporcionava um lugar no mundo, um destino para as pulsões e, portanto, um sentido para a existência, ainda que isso implicasse renúncia ao gozo. Com a morte do pai, abre-se uma perspectiva ameaçadora da possibilidade do gozo irrestrito, diante da qual cada um se vê prestes a ser abusado ou violentado pelos outros. Surge, então, entre os irmãos, um ideal que restaura, na forma de uma autoridade simbólica, o poder soberano do pai primevo, estabelecendo uma interdição sumária: a proibição do incesto. O acesso a todas as mulheres seria permitido, menos à genitora – a mulher do pai. Como diz Freud, o tabu do incesto materno é a única interdição comum a todas as civilizações, justamente por que é a renúncia a esse excesso de gozo (que separa mãe e filho) que faz com que os homens saiam dos estágios de selvageria e barbárie e adentrem no universo da civilidade.
O parricídio, portanto, funda uma ordem social, a partir de uma interdição ou Lei simbólica que não está escrita em lugar algum, mas que é consentida por todos, restringindo o gozo absoluto e, consequentemente, condenando os homens à liberdade e à necessidade de falar, de comunicar aos outros a diferença que os singulariza, pois deixam de integrar a massa indiferenciada de filhos e passam à comunidade de irmãos – para dizer de outro modo, elevam-se da condição de súditos a de cidadãos. Unidos, os irmãos fizeram o que individualmente seria impossível: aniquilaram o tirano e criaram uma ordem social no lugar daquilo que antes era o puro arbítrio, onde não cabia qualquer lei senão a vontade do Pai.
Dito isso, não nos parece um exagero supor que o movimento espontâneo dos indignados, ante o abuso de seus representantes e, portanto, do Estado, pretende re-fundar a ordem social, haja vista as expressões coletivas de insatisfação, o questionamento virulento dos poderes constituídos ou mesmo a derrubada impiedosa dos regimes autoritários. Desse ponto de vista, o Estado e suas instituições apareceriam aos sujeitos como representações fantasmáticas da autoridade – pois, em última instância, remontam aos poderes do pai – e estabeleceriam com os indivíduos uma relação de proteção, exigindo em contrapartida a renúncia à violência. Aliás, o caráter aparentemente não violento do movimento dos indignados até poderia ser entendido como um assentimento a essa exigência, se não fosse a evidência de que sua força e, portanto, a maior violência que impõe à ordem consiste em seu número, no poder da união em torno de interesses comuns, portanto, na comunidade de interesses – na vontade comum.
No entanto, os cidadãos, membros do Estado moderno, curiosamente, se distanciaram dos laços que os uniam entre si e silenciaram sobre suas relações – em plena vida civil! Regrediram, pois, à condição de súditos, de filhos, dirigindo-se ao Estado como se estivessem em relação com o Pai, clamando pela segurança de sua proteção. Neste exato sentido – de desfazer essa relação de dependência às formas fantasmáticas do pai –, o ato de recobrar a capacidade de comunicação entre si, de falar ao outro e de externar um descontentamento vivido em comum faz com que o levante dos indignados seja equivalente a um novo parricídio e configure, pois, uma re-fundação simbólica da ordem social – uma fundação da ordem dentro da ordem fundada.
Por efeito deste mito fundador, que, não por acaso, guarda forte semelhança com o Leviatã de Thomas Hobbes, ganha algum sentido (o que, para o mito, equivale à explicação) o sentimento característico de desamparo e de vazio simbólico dos indignados. Isso se expressa claramente na generalidade ou mesmo na ausência de reivindicações por parte desses movimentos. Os setores mais conservadores do espectro político já perceberam e apontaram de modo acusatório e moralista essa suposta debilidade de “não se saber o que se quer”. Não há encaminhamentos programáticos, não há filiação a partidos e sindicatos, não há programas de governo a defender, enfim, não há propostas!
Sempre que interrogados sobre o que querem, o que desejam, os indignados respondem de modo sintomaticamente negativo. Até certo ponto, pode-se sustentar a relação entre “não saber o que se quer” e certa angústia que resulta do desamparo – o vazio de propostas é reflexo de um vazio de ser, dos que não querem voltar a ser súditos amparados pelo Soberano nem são mais cidadãos de um Estado contra o qual agem violentamente, ou seja, reorganizando em comunidade as multidões.
Não saber o que se quer, porém, não constitui necessariamente uma debilidade; ao contrário, trata-se de uma condição intrigantemente humana, contra a qual os neuróticos e narcisistas relutam de modo sofrível. Sendo os homens seres que desenvolveram a capacidade de pensar e, portanto, de falar o que pensam, suas relações se estabelecem, em boa medida, a partir da externação do que se sente. Sentir é atribuir sentido, é saber o que se sente. Mas o sentido não é um valor dado desde sempre, algo inerente à própria vida, de tal forma que possa ser sentido do mesmo modo por todos. Ao contrário, é efeito de uma construção discursiva endereçada ao Outro, tendo em vista sua anuência quanto aos significados conferidos às determinações objetivas, igualmente sentidas como condições de existência, já que isso não assegura, por si mesmo, um sentido eterno, natural, transcendente ou verdadeiro.
“O informulável é a doença do pensamento”, escreveu Lévi-Strauss indicando nossa intolerância aos aspectos da existência que, malgrado o esforço comum de simbolização, permanecem vazios de sentido. Seguindo essa indicação, Jacques Lacan afirmará que o homem está sempre tentando ampliar o domínio simbólico sobre o “em-si” das coisas no mundo a que ele chama o “Real”, seja o real do corpo, do sexo, da morte, do devir incerto daquilo que ainda não é. O sentido, contudo, é sempre uma atribuição, não havendo, pois, um sentido em-si mesmo. Então, como podemos nos assegurar dos nossos valores? Como fundar formas de agir em valores que não estejam à mercê do acaso, do aleatório, do sem sentido? Como fundar nossas ações cotidianas, como queria Kant, em princípios universais anteriores à atribuição de sentido? Sem pretensão alguma quanto à solução desta aporia, diga-se apenas que essa produção de sentido não é e nem pode ser um arroubo individual – quanto maior sua abrangência, precisão e capacidade de expressar as contradições objetivas e reais, maior será seu alcance simbólico, sua capacidade de dar significação à existência, ainda que essas expressões sejam invertidas, falsas ou ilusórias.
Se perguntarmos novamente “o que querem os indignados?”, já não será uma mácula o fato de esses sujeitos não saberem o que querem, pois, mesmo não sabendo, sabem algo: eles sabem o que não querem. Os indignados não querem mais se conformar a ouvir o riso de um estranho Outro enquanto este realiza seu gozo – não querem, pois, silenciar enquanto consomem compulsivamente toda sorte de quinquilharias objetais ofertadas pela indústria cultural; nem querem ouvir apenas a si mesmos – seguindo um padrão de racionalidade que beira o cinismo, pois sabem que o sentido que tomam como verdadeiro é uma ilusão amparada no consumo e, ainda assim, não deixam de se iludir. A noção hegeliana da “consciência infeliz” quanto à unidade perdida é revivida, pois, como um “mal-estar”, uma forma de sofrimento cujo sintoma traduz a impossibilidade de realização plena das pulsões no interior da cultura – mesmo que seja a cultura do narcisismo fundada no consumo, pois todo objeto determinado de satisfação revela sua imediata obsolescência ante a abstração da pura exigência pulsional do gozo. Os indignados, pois, não querem mais ouvir – eles querem falar, e escutá-los neste momento repõe o gesto revolucionário de Freud que, ao contrário dos especialistas de seu tempo e suas verdades prontas, se dispôs a escutar pacientemente a palavra ab-reagida da histérica, decifrar o delírio dos paranoicos e reaver o sentido das construções deslocadas dos obsessivos.
Na Paris de 1968, os estudantes e operários saíram às ruas para expor toda sua indignação quanto ao caráter explorador, alienante e fetichista do sistema capitalista, além de se rebelar contra a imposição dos bons costumes e dos dispositivos de repressão moral e sexual, gritando aos ventos: “queremos o impossível”. Em 2001, no Brasil, milhares de militantes vindos de várias partes do mundo celebraram a primeira edição do Fórum Social Mundial, que seria seguida de várias outras, ano a ano. Não se tratava mais de arriscar o impossível e pôr abaixo o sistema inteiro com suas contradições. Tratava-se de reparar suas injustiças, corrigir suas perversões, “mudar o mundo sem tomar o poder”, já que “um outro mundo é possível”. Em ambos os momentos históricos de irrupção, as massas resolveram não só externar programaticamente suas inquietações, mas inclusive institucionalizá-las, como no caso do Fórum. Pois bem, em pouco tempo essas reivindicações foram contorcidas e enjeitadas para, de algum modo, retornarem aos demandantes na forma de mercadorias: contra a repressão sexual, o imperativo de gozo; contra a intervenção direta sobre os costumes, a criação de tipos com os quais se identificar ou, mais tarde, a oferta plural e inesgotável de identidades a assumir. O “sistema”, por isso mesmo, sobreviveu!
Hoje, os indignados recuam frente ao perigo de anunciar o que se quer, dada a prontidão da indústria e seus agentes publicitários ciosos em captar ardilosamente esse desejo, respondendo-lhe com uma torrente de objetos substitutivos que jamais poderão satisfazer a demanda de gozo dos sujeitos desamparados ou suprimir o vazio de suas existências. Eles falam e querem falar, mas não dizem o que querem – apenas entoam: este é “um mundo que não queremos”.
Quando são interrogados sobre o que querem, quando são coagidos a revelar seu desejo, os indignados apenas silenciam. Não porque tenham plena consciência do poder que isso representa, ainda mais diante da compulsão do mercado e sua ansiedade por verter em objeto-mercadoria toda insatisfação, mas por que já não se sentem à vontade num mundo concebido pela administração não apenas do desejo, mas também das formas de recusa, convertendo numa “miséria neurótica” o horror da indeterminação.
Mesmo assim, o silêncio, como advertiu o filósofo esloveno Slavoj Zizek, poderá ser usado estrategicamente pelos movimentos contra os arautos das ações de emergência. Contudo, não se pode fazê-lo indefinidamente, correndo-se o risco de transformar a necessidade em virtude – em algum momento, não será mais possível se sustentar apenas sobre o silêncio, a recusa ou a negação, bradando “o que não se quer”; será necessário, com certa reserva de autonomia, saber “o que se quer” e, sobretudo, “o que fazer?”, respondendo audaciosamente à pergunta leninista que não cansa de ser reposta pela história a todos que a desafiam.
Há uma questão que ficou em suspenso. Freud parte de observações sobre uma sociedade demasiadamente moralista, cujo regime de investimento libidinal está fundado no paradigma da repressão e, consequentemente, da culpa como resultado das injunções de um supereu centrado na noção de renúncia ao gozo. Já em fins dos anos de 1950, em seu retorno a Freud, Lacan operou uma espécie de adaptação dos modos de satisfação das pulsões às transformações sociais que estavam em curso na nascente sociedade do consumo de massa. Segundo ele, não se trata mais de ordenar ao indivíduo que “não goze!”; ou seja, a inscrição do desejo e as coordenadas da economia libidinal não têm mais como referente o arbítrio do Pai que ordena não “o que fazer”, mas sim “o que não fazer”, o que não se pode fazer. Para Lacan, ao contrário, vivemos numa época em que domina o imperativo superegoico do gozo – “Goze!”
O parricídio, porém, até onde podemos compreender, só é levado a efeito por que os filhos foram privados do prazer. Se, no entanto, vivemos hoje o imperativo do gozo, se nos é permitida toda forma de satisfação pulsional, explorando o imenso espectro das formas pervertidas do desejo – não contrárias à norma, mas justamente seguindo seu imperativo –, por que então matar o Pai? Por que os indignados, filhos da sociedade de consumo, das satisfações desimpedidas, precisariam matar o Pai? Seria para colocar no seu lugar um Pai novamente autoritário, que impusesse limites ao gozo, amparando novamente os sujeitos, conferindo-lhes um lugar no mundo, como querem o Tea Party e os que elegem governos conservadores na Europa?
Contra a abstração do mito, podemos acorrer a determinações mais realistas e perguntar: será que os indignados são, antes de tudo, aqueles cuja fantasia de consumo fora violentamente desfeita pelo colapso das promessas neoliberais? Veja-se, então, o caso dos jovens espanhóis desempregados, os chilenos endividados, os ingleses que saquearam as lojas em busca de aparelhos eletrônicos – os “sem iPad” – ou ainda os jovens portugueses da geração “à rasca” que compõem o “precariado”. É claro que essa restrição ao consumo revela as contradições estruturais do modo de produção do capital. Não há como universalizar a riqueza socialmente produzida senão suprimindo sua apropriação privada. No entanto, em vez de avançar numa explicação estritamente econômica, voltemos ao mito para explorar suas determinações, sabendo, no entanto, que “os mitos” – mais uma vez Lévi-Strauss – “são apenas soluções ideais para as contradições reais”.
Como já foi suposto, a ação dos indignados consistiria simbolicamente em um novo parricídio. Por quê? Porque a ordem fraterna dos irmãos, o Estado moderno, fundado na capacidade de comunicação e limite ao gozo absoluto, fora destruído por aqueles que, mais uma vez, ousaram assumir o lugar do Pai gozante e operaram uma gigantesca farra especulativa tendente à realização absoluta do gozo. Aquilo que antes era um tabu a assegurar a ordem – a condenação da especulação financeira, expurgada da vida civilizada por alguém como Lord Keynes –, tornou-se um imperativo de gozo, um excesso permitido, um mais-gozar, cuja realização ensandecida se deu por meio de ciclos de acumulação, crise e destruição dos valores fictícios, dos valores reais e até mesmo dos valores fundantes da própria ordem do capital – tal como se viu no caso da execução hipotecária que minou a propriedade privada de milhares de norte-americanos durante a crise imobiliária de 2008.
É novamente Freud quem nos dá essa resposta, quando em Psicologia das massas e análise do eu (1921), ele retoma o tema de Totem e tabu (1913), lançando mão da figura do “herói usurpador” – um dos irmãos que, ao recontar o mito fundador às novas gerações, atribui a si exclusivamente o grande feito coletivo da morte do Pai. Não é difícil antever nele o protótipo do indivíduo que se acredita autônomo, soberano e unicamente devotado à realização de seus interesses – portanto, o ideal de homem que funda o liberalismo moderno. É esse indivíduo que não reconhece que o caráter de seu gozo – e, portanto, da transgressão que comete – depende da cumplicidade dos outros; ou seja, sua riqueza depende do reconhecimento social – sem isso, a fortuna dos bilionários se torna, do dia para a noite, uma montanha de papéis sem valor algum. Portanto, o sentido que atribui às suas ações é algo que se dirige sempre ao grande Outro que é a sociedade. Crendo-se autor único dessa transgressão, o “herói usurpador” se sente culpado por um crime que cometeu, mas cujas razões ele desconhece, pois ignora sua dimensão coletiva – sistêmica!
Em termos psicopatológicos, a impossibilidade de conter o gozo, ao qual não se reconhece a origem social, resulta na chamada culpa neurótica. É essa espécie de culpa que é sentida agora pelos agentes da especulação financeira, na medida em que reconhecem que é preciso controlar seus impulsos, e tentam de tudo para fazê-lo, mas jamais admitiriam que, por constituírem a expressão subjetiva da relação-capital que personificam, os mesmos são incontroláveis – os especuladores são neuróticos à beira de nos tragar a todos na espiral de uma psicose alucinatória, caso acreditemos neles. Não haveria melhor termo para lhes definir, senão o de Freud: “heróis usurpadores”.
A política é a forma plena da simbolização, da atribuição de sentido ao que não tem sentido; é a tentativa de preencher o vazio da existência, de antecipar o futuro na forma de uma aspiração, instando os indivíduos a que compartilhem de uma mesma fantasia, tornando-a uma fantasia social. A política é a negação da angústia ante o vazio, quer seja este o vazio do desamparo segundo o mito científico de Freud, quer seja o da perda do objeto original do desejo que é, grosso modo, o seio materno na versão de Lacan, quer seja, ainda, o vazio que resta da impossibilidade ontológica de identificação absoluta entre o eu e o outro, entre indivíduo e sociedade. A política é a forma plena de atribuir sentido às coisas e ao seu destino porque é uma atribuição que se faz em conjunto, não apenas diante do Outro, tendo em vista tornar-se o objeto do seu desejo (como supõe a dialética do reconhecimento nas mãos de Lacan, reposição da “dialética do senhor e do escravo” de Hegel), mas por que se faz, sobretudo, contra o Outro, tendo em vista tornar comum o objeto que se deseja, suprimindo as condições anteriores de senhor e de escravo.
Assim como a política é a forma plena da simbolização, há também uma forma plena da própria política – aquela que fora percebida por Marx. Segundo ele, a política é uma forma histórica determinada de controle sobre as relações de produção e distribuição da riqueza, fundada no conflito entre aqueles que produzem a riqueza material e os que apenas se apropriam dela. Se, como se disse inicialmente, na política não há lugar para o vazio, no sentido do desamparo, mesmo que seja impossível suplantá-lo, é porque, numa sociedade de classes, os indivíduos, mesmo sem se darem conta disso, têm um lugar no mundo: a classe a que pertencem.
A postulação de György Lukács, anunciada em História e consciência de classes(1923), traduz, a seu modo, essa condição de ser ao afirmar que, numa sociedade de classes, a ação do indivíduo deve estar, por força de uma necessidade histórica, em acordo com a classe a que pertence. Por isso mesmo, a consciência de classe, diz o filósofo húngaro, não corresponde ao que um ou outro indivíduo pensa sobre sua condição, nem mesmo ao estágio que essa consciência pode alcançar; a questão da consciência de classe não corresponde a um “nível” de consciência; não diz respeito, pois, a uma questão epistemológica ou de esclarecimento – e sim a uma questão prática, material, relativa às ações dos indivíduos. Mas não se trata de qualquer ação, daquilo que os indivíduos fazem ou deixam de fazer: ela corresponde ao que eles têm de fazer, por força da condição histórica de pertencimento à classe.
Se essa condição de classe garante um lugar aos indivíduos, nem por isso deixa de existir o vazio. Não o vazio deixado pelo que foi perdido – que é, na verdade, o desamparo; mas o vazio daquilo que não foi alcançado nem o será – que constitui a eterna busca, a permanente insatisfação, aquilo que foge ao controle, que não se pode nomear, que ainda não existe, enfim, que é imprevisível. Afinal, quem, dentre os profetas da salvação, poderia prever tudo isso? Quem poderia antecipar quando e onde surgiriam os indignados? Quem poderá dizer o que está por vir?
A política só existe enquanto existem as classes. A política é a negação do desamparo porque impõe aos indivíduos um lugar no mundo – o lugar da classe a que pertencem. O vazio é o lugar da invenção, do que ainda não é, do que pode vir a ser. O lugar do vazio é a negação da política. As classes, em seu antagonismo em torno do vazio, do futuro, do que pode vir a ser levam a política às últimas consequências. A negação das classes é a negação da política. A negação da política é o vazio. O vazio é a negação da negação.
por Paulo Massey

Entre o perigo e a chance



Leyla Perrone-Moisés
A desconstrução derridiana não pode ser explicada em poucas palavras. Apenas como introdução, lembremos que Derrida qualificou a cultura ocidental como “logocêntrica”, isto é, baseada num racionalismo que pretende ser universal. O filósofo a “desconstrói” procedendo a uma leitura crítica dos textos de nossa cultura, em busca dos pressupostos metafísicos em que esta se assenta, revelando suas ambigüidades, contradições e não-ditos. A desconstrução rejeita o pensamento dualista (isto ou aquilo, isto contra aquilo) assim como o pensamento dialético (tese, antítese, síntese), deixando sempre aberta uma outra via que é a différance (diferença e adiamento). Esse pensamento sempre em processo, que é a própria desconstrução, leva à formulação de paradoxos que irritam e contrariam aqueles que gostam de respostas claras e categóricas, consideradas racionais, confiáveis e operáveis.
Entretanto, a força e a fertilidade da desconstrução residem justamente nesse enfrentamento constante das aporias, que desafiam o pensamento e deixam abertas as possibilidades imprevisíveis e incalculáveis do “por-vir”. O vigor do pensamento desconstrucionista reside em seu caráter arriscado, e na coragem com que Derrida assume a responsabilidade do pensar sem garantias, avançando sempre em busca de “mais luzes”.
A renúncia às garantias da filosofia logocêntrica tem, como contraponto, algumas palavras freqüentes no discurso de Derrida: “incondicionalidade” e “incondicional”. Aparentemente, há uma contradição entre negar as verdades absolutas, apostar num porvir desconhecido, e uma ética da incondicionalidade, ligada surpreendentemente à defesa de causas “impossíveis”. Mas esse paradoxo é a condição de um pensamento que é, ao mesmo tempo, livre e engajado.
A busca do impossível, do incondicional, é uma confiança no porvir. Trata-se de uma teleologia não teológica, mas que tem relações com a fé (Kierkegaard), e certo aspecto religioso (apontado, entre outros, por Habermas), talvez um resíduo de messianismo judaico. Mas, como não é um pensamento teológico, a desconstrução é “uma responsabilidade infinita, que não dá descanso a nenhum tipo de boa consciência” (Spectres de Marx, 1993).
No exame de várias (senão todas) importantes questões tratadas por Jacques Derrida, aparece a expressão “um perigo e uma chance”. Vejamos alguns dos temas  diante dos quais Derrida assume uma posição que implica “um perigo e uma chance”.
O perdão
O perdão é uma condição para a reconciliação (dos indivíduos, das coletividades, dos Estados) e para a continuação da História, isto é, da vida. Nesse sentido, o perdão é uma “chance”. Mas o perdão pode ser (mal) compreendido como esquecimento do crime, como apagamento da culpa e, nesse sentido, é um “perigo”. Como defender o perdão com relação ao holocausto, ao apartheid, aos crimes das ditaduras latino-americanas? Diante desse impasse, entre o perigo e a chance, Derrida lembra primeiramente “a heterogeneidade absoluta entre o movimento e a experiência do perdão, por um lado, e tudo o que muitas vezes a ele é associado, isto é, a prescrição, a absolvição, a anistia ou o esquecimento sob todas as suas formas” (Sur parole. Instantanés philosophiques, 1999).
“O perdão é heterogêneo ao direito” (idem). Devido a essa heterogeneidade entre o crime e seu “apagamento”, o perdão “deve ser concedido àquilo que é imperdoável”. Como? Responde ele: “Se perdoamos o que é perdoável, ou aquilo para que se pode encontrar uma desculpa, não é mais perdão; a dificuldade do perdão, o que o faz parecer impossível, é que ele deve ser dado àquilo que continua sendo imperdoável”.
O perdão não é esquecimento: “Para que haja perdão, diz ele, é preciso que o irreparável seja lembrado ou permaneça presente, que a ferida permaneça aberta.” O perdão deve ser, portanto, incondicional, porque as condições para que ele seja concedido não existem.
A hospitalidade
A hospitalidade, isto é, a aceitação do outro em nossa casa, em nosso país, representa um perigo: o hóspede pode ser um ladrão ou um terrorista. Por outro lado, a hospitalidade é um imperativo ético e a chance de uma relação pacífica entre os homens. Mais que isso: a acolhida do outro é a condição da ipseidade, já que não há sujeito sem o reconhecimento do outro. A hospitalidade deve ser incondicional. Essa afirmação de Derrida incomoda: “Deve-se dar ao outro”, diz ele, “a permissão de fazer a revolução em nossa casa”. “Como assim?”, diz o bom senso. “A hospitalidade tem limites!” Não, responde Derrida. “Se há hospitalidade, só pode ser incondicional. Não há hospitalidade condicional: se coloco condições ao outro que vem, ao que chega, não posso mais falar de hospitalidade. Mas, se a hospitalidade não pode ser senão incondicional, é preciso dizer, ao mesmo tempo, que uma hospitalidade incondicional é impossível, é o próprio impossível” (Spectres de Marx).
Como resolver, na prática, esse paradoxo? Trata-se de considerar o impossível como “talvez possível”, de ter a hospitalidade absoluta como meta a ser buscada apesar de tudo e, nesse sentido, o “impossível” passa a ser condição do “possível”. O impossível é a chance do possível, aquilo que mantém aberta a possibilidade. No caso das leis de imigração, trata-se de “negociar”, de encontrar “a legislação menos pior”. “Este é o acontecimento que é preciso inventar cada vez”, diz ele em Sur parole.
A fraternidade
A fraternidade se liga, positiva ou negativamente, à hospitalidade. A fraternidade é um conceito suspeito, para Derrida, porque ela supõe a união dos “irmãos”, dos parentes, dos próximos e, como tal, oferece o risco da xenofobia, do nacionalismo, do fechamento dos Estados, da guerra. Em Politiques de l’amitié (1994), ele explica por que esse conceito é suspeito: “A fraternidade se enraíza na família, na genealogia, na autoctonia.” Ao mesmo tempo, a fraternidade é uma das respeitáveis divisas da República, a chance conquistada pela Revolução Francesa de uma relação mais digna entre os cidadãos. Assim como o conceito de “tolerância”, o conceito de “fraternidade” é respeitável, mas insuficiente, porque marcado por uma tradição cristã que os associa à “caridade”. Assim, a fraternidade precisa ser desconstruída e reinventada.
As leis
As legislações, que devem servir à justiça, mas não são a justiça, oferecem permanentemente o perigo do erro, da injustiça. Mas elas são a chance de se fazer justiça, na medida em que elas podem e devem ser constantemente repensadas e refeitas, deferidas diferidas, perfectíveis. A justiça, esta é o indesconstrutível, o objetivo maior da desconstrução. Podemos dizer que a desconstrução, diferentemente da filosofia clássica, não é uma busca da verdade, mas da justiça (Force de loi, 1994).
O segredo
O segredo é perigoso quando ele é guardado e preservado por organizações secretas e conspiratórias, que ameaçam a polis. O segredo contraria também o imperativo moral de nossa sociedade de dizer sempre a verdade, de trazer tudo à luz. Mas o direito ao segredo é também uma condição da democracia, e há muitas situações em que o segredo serve ao bem individual ou público. A questão do segredo é muito ligada a outra questão cara a Derrida, a da mentira, que também tem seus prós e contras, os quais devem ser repensados em cada circunstância.
As novas tecnologias
As novas tecnologias, da comunicação ou da pesquisa médica, implicam perigos éticos e práticos. A internet pode ser usada para veicular falsas informações, pois ela não é totalmente vigiada e controlável. Mas ela serve à democracia porque, nos países onde há censura, informações verdadeiras e úteis podem penetrar clandestinamente através dela. Da mesma forma, a manipulação do genoma humano pode ser usada para fins perigosos, como a eugenia, ou para efeitos ainda imprevisíveis. Mas não se pode deixar de dar uma chance às novas descobertas da ciência na busca de cura para várias doenças. Portanto, esta é também uma questão de dupla face, ou duplo gume.
Esses são apenas alguns exemplos do modo como opera a desconstrução diante das questões que nosso tempo tem de enfrentar. A desconstrução não destrói a questão, não a anula num “nem isso, nem aquilo”. Ela põe em evidência a necessidade de refletir sobre elas, uma reflexão incessantemente recomeçada segundo as circunstâncias.
As reflexões de Derrida levam a freqüentes aporias, isto é, a um “conflito entre opiniões contrárias e igualmente concludentes, em resposta a uma mesma questão”. E, muitas vezes, a um double bind, isto é, aquilo que acontece quando “relações básicas e importantes são cronicamente sujeitas a invalidação através de uma comunicação paradoxal” (teoria de Gregory Bateson). Esse caráter paradoxal do pensamento de Derrida foi apontado como “irresponsável”, já que ele não responde categoricamente a nenhuma questão levantada. Mas o double bind não pede para ser resolvido dialeticamente e, assim, superado, mas para ser interminavelmente reexaminado.
Quem teve a sorte de conhecer Jacques Derrida, pôde ver em sua própria pessoa e seu modo de ser essa preocupação ética sem descanso. Havia nele, ao mesmo tempo que uma cordialidade, uma hospitalidade, uma inteligência poderosa, uma fragilidade, um medo, uma inquietação constante com a responsabilidade de suas posições. Roland Barthes viu muito bem essas características do filósofo quando disse dele: “Sua solidão vem daquilo que ele vai dizer.”
Derrida foi o contrário de um apolítico: foi um corajoso e constante re-pensador da política. Não era um utópico, no sentido de um idealista apenas expectante; mas um ativista do pensamento, um analista agudo do presente e um antecipador do futuro. Alguns o acusaram de niilismo. Ele era, pelo contrário, fundamentalmente otimista. Entre o perigo e a chance, apostava na chance.
A desconstrução não é um sistema de pensamento em que possamos nos apoiar, ou um método que possamos aplicar. As propostas de Derrida são um convite à travessia do abismo na corda bamba, sem rede de segurança. Mas quem pode hoje, honestamente, garantir segurança na travessia dos tempos? É preciso coragem para sair do lugar, para escolher o que abandonar e o que conservar na viagem, porque sem abandono não há renovação, e sem memória não há História.

Das cinzas



                               
Por Vladimir Safatle 
Um dos mantras preferidos dos últimos anos diz respeito ao pretenso esgotamento do pensamento de esquerda. Seus sacerdotes são de dois tipos. Os primeiros gostariam de ser vistos como os vitoriosos de uma época terminada de conflito ideológico. Eles não cansam de afirmar que a esquerda nunca passou de um arremedo de autoritarismo mal disfarçado, demandas infantis de proteção, ingenuidade a respeito das violências animadas pelo mal radical e incompetência gerencial. Durante décadas, seus intelectuais não tinham coragem de dizer claramente o que pensavam. Mas, animados pelo fim do socialismo real com o conseqüente colapso dos partidos comunistas no Ocidente, pelo embaralhamento sistemático das políticas de social-democratas e conservadores e por doses reforçadas de fundamentalismo cristão, eles podem agora afirmar todo seu conservadorismo e sua crença nas virtudes curativas do porrete da polícia.
O segundo tipo é composto de um séqüito heteróclito de viúvas da esquerda. Com um olhar entristecido, elas afirmam que a esquerda está sem rumo desde a queda do muro de Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo. Não dá mais para sonhar com estado de bem-estar social e coisas do tipo, nem ter explicações angelicais a respeito da violência. Falar em novas configurações do político é conversa de gente que não entendeu que a democracia parlamentar é, como costumava dizer um líder conservador, o pior governo, mas o único possível. As velhas agendas da crítica do poder, da identificação dos conflitos de classe e das práticas disciplinares presentes em nossas instituições podem muito bem ser trocadas por uma boa ação social em ONGs, de preferência aquelas financiadas por bancos e grande corporações. Várias dessas viúvas, principalmente em países europeus, não temeram flertar com o pior do nacionalismo e do culto da identidade travestindo tudo isso de luta do Ocidente liberal contra o Oriente amedrontado pelo inelutável processo de modernização.
De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de esquerda encontrou no Brasil um terreno profícuo. Desde o governo Fernando Henrique tínhamos de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam Karl Marx para justificar o caráter inelutável da globalização e a necessidade de um choque de realidade visando a acabar de vez com o fantasma do “Estado getulista” com seus tentáculos ineficientes. Com o governo Lula, somos agora obrigados a conviver com o bloqueio reiterado da reconstrução dos fundamentos gerais do campo do político, como se a imersão na “pior política” fosse uma fatalidade intransponível. Nos dois casos, esmera-se em utilizar um palavreado de esquerda para justificar business as usual. O que apenas reforça nossa impressão de que o político na contemporaneidade seria apenas a dimensão da ausência de criatividade e das limitações de nossas aspirações de mudança.
Contra tudo isso, valeria a pena lembrar como, nos últimos anos, o pensamento de esquerda não se esgotou. Ele criou uma outra agenda, animada por problematizações renovadas a respeito das sociedades capitalistas contemporâneas. Há vários nomes que poderiam ser lembrados, mas este dossiê acabou privilegiando um pequeno número que tem em comum a capacidade de constituir uma cena de debate através de reenvios recíprocos.
Por outro lado, estes autores foram capazes de desenvolver uma produção conceitual que, aos poucos, mostra sua força em iluminar de outra forma problemas que não cessam de nos confrontar. Giorgio Agamben, com seus conceitos de estado de exceção universal e vida nua; Slavoj Zizek e a renovação da articulação entre psicanálise e marxismo na compreensão da sociedade contemporânea, assim como sua insistência da necessidade de uma suspensão política da ética; Alain Badiou e sua filosofia da história do século 20 animada pela noção de “paixão pelo real” e seu conceito renovado de universalismo; Toni Negri e a idéia de multitude; Judith Butler e sua teoria performativa de gênero; Chantal Mouffe, Ernesto Laclau e a democracia radical. Embora esses sejam conceitos que nos remetem a campos teóricos distintos e que, muitas vezes, tecem entre si relações de conflitos profundos, é bem provável que as discussões sobre a política de esquerda nos próximos anos passem por eles. Compreendê-los é, pois, uma tarefa urgente.
No entanto, poderíamos nos perguntar sobre quanto vale perder tempo com teoria se as urgências práticas da política parecem tão prementes. A esse respeito, talvez seja bem-vindo lembrar uma entrevista de Gilles Deleuze feita por Michel Foucault na qual Foucault começa colocando a questão: “Um maoísta me dizia: ´Sartre, eu compreendo bem porque ele está conosco, porque ele faz política e de que forma ele faz; você, em última instância, eu compreendo um pouco, você sempre colocou o problema do encarceramento. Mas Deleuze, este aí eu realmente não compreendo nada.”
A resposta de Deleuze não deixa de ser surpreendente. Ele afirma “estarmos vivendo de uma outra maneira as relações entre teoria e prática”. Até então, ou concebíamos a prática como uma aplicação da teoria, como a exposição de um processo que já havia sido descrito e conceitualizado pela teoria, ou fazíamos a operação inversa e concebíamos a prática como a força criadora de uma forma de teoria a vir, ou seja, uma prática soberana que despediria a teoria ou, no máximo, que a obrigaria a se curvar diante de seu peso. Nos dois casos, concebemos as relações entre teoria e prática como a subsunção de um pólo pelo outro. Pensamos a aplicação como uma operação guiada por relações de semelhança ou analogia. Onde a prática é análoga à teoria? Onde a teoria se assemelha ao que vemos na prática?
No entanto, deveríamos pensar a relação entre teoria e prática de outra forma, de uma forma “horizontal”. A esse respeito, poderíamos dizer que, quando a teoria se concentra em seu próprio domínio, ela começa a se confrontar com obstáculos, com muros que a impedem de avançar. Isso nos obriga a substitui-la por um outro tipo de discurso, uma prática que nos permita passar a um domínio diferente. Graças a essa passagem, poderemos resolver um problema na teoria, retornar a teoria em outro ponto, a partir de outro lugar. Da mesma forma, quando a prática se confronta com seu limite e parece não conseguir andar para a frente, é porque se faz necessário mudar de estrutura de discurso, ou seja, fazer teoria. Maneira de operar no ponto onde as diferenças entre teoria e prática se anulam para constituir uma estrutura horizontal de contínua imbricação e de passagens incessantes de um pólo a outro. Assim, poderíamos dizer com Deleuze: “a prática é um conjunto de passagens (relais) de um ponto teórico a um outro, e a teoria, uma passagem de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é necessário a prática para perfurar este muro”. O mesmo vale para a prática.
Os melhores momentos da filosofia contemporânea, em suas tradições mais variadas, não fizeram outra coisa que implementar tais passagens. E talvez seja uma passagem dessa natureza que está a nossa espera.

A condição humana na modernidade



Por Miroslav Milovic
Para Martin Heidegger, a pergunta sobre os Outros vai ser apenas uma promessa – como dirá Jurgen Habermas – que ele nunca vai cumprir. A filosofia heideggeriana não é a filosofia dos Outros. Um específico egoísmo, talvez o europeu, domina sua filosofia. Assim, a filosofia de Heidegger se transforma numa específica geopolítica. Edmund Husserl também, falando sobre a crise atual da humanidade, aponta a Europa como a única alternativa. Mas o que dizer sobre a tradição européia e essa impossibilidade filosófica de incluir a questão sobre o Outro? O que dizer sobre esse específico autismo europeu? O conceito da Europa, por exemplo, iniciou-se e se fortaleceu – como algumas interpretações históricas estão sugerindo – com as Cruzadas, dentro dessa identidade militar e não dentro da pergunta sobre os Outros e sobre a diferença. Por causa disso, pode ser que o atual discurso sobre a grandeza européia seja somente a tentativa de esconder a sua mediocridade.
Por isso é compreensível a desconfiança que Jacques Derrida tem sobre Heidegger. A profunda filosofia heideggeriana não fez dele um democrata. Assim, parece que o projeto da confrontação com a tradição e a modernidade, o esboço da destruição da metafísica fica ainda aberto. O projeto não se realizou com a hermenêutica heideggeriana. É preciso pensar uma nova perspectiva, talvez uma nova articulação da diferença ontológica. É o ponto inicial da filosofia de Derrida; é o ponto para abordar a desconstrução da filosofia. A discussão começa já na confrontação com Husserl no livro Voz e fenômeno. Aqui a questão ainda parece só acadêmica, ligada à herança kantiana, porque se refere às condições da síntese da consciência transcendental. O que é importante para Derrida, nesse contexto inicial, é que a questão sobre a consciência, nem para Immanuel Kant, nem para Husserl, ficou ligada à problemática da linguagem. A linguagem chega tarde para quase toda a história da filosofia. Isso é o que Derrida quer questionar, mostrando que a linguagem está no centro da estrutura da consciência. As condições transcendentais da consciência não podem ser articuladas sem a linguagem. Os signos lingüísticos se referem aos objetos ausentes. A consciência, por um lado, precisa da síntese dos dados diferentes, e a síntese, por outro, precisa dos signos, precisa de algo que vai ocupar o lugar dos objetos ausentes. Assim, a linguagem é a condição da síntese na consciência. A consciência é sempre a relação com algo diferente, com a linguagem. A consciência é mediada pela linguagem e, por causa disso, não podemos falar sobre a subjetividade constitutiva. A identidade é sempre mediada pela diferença. Aqui temos o início do projeto derridiano de gramatologia. O que agora existe são apenas os signos ou, melhor dizendo, pegadas, porque Derrida, com essa idéia da linguagem, não quer criar o novo lugar da condição transcendental.
A subjetividade e outros lugares privilegiados do pensamento tradicional têm de ser desconstruídos. A metafísica que pensa a identidade – ou a metafísica da presença – tem de ser superada pelo pensamento da diferença. Essa específica emancipação ou afirmação do signo não se refere à hermenêutica e ao projeto heideggeriano. Derrida não é um autor hermenêutico ou estético, como pensa Gianni Vattimo. A hermenêutica de Heidegger ainda afirma os lugares privilegiados para pensar a autenticidade do ser. Assim, ela ainda não é a diferença verdadeira, a diferença que produz a diferença. A diferença de Heidegger parece mais uma diferença reificada, determinando – poderíamos dizer assim – os lugares para a aparição do autêntico. A diferença heideggeriana ainda não é utópica. Heidegger ficou preso no horizonte da moderna metafísica da subjetividade. Por isso, o projeto da destruição da metafísica tem de ser superado pelo projeto de sua desconstrução.
Acho que as diferenças entre Heidegger e Derrida podem ajudar a entender as diferenças entre Hannah Arendt e Chantal Mouffe. Arendt vai iniciar o projeto sobre a política no contexto da diferença ontológica de Heidegger. Política faz a diferença, cria a ontologia, a possibilidade de Novo. Por isso, Arendt ainda tem o otimismo pensando a dignidade da política.
Com os motivos heideggerianos, ela vai voltar ao mundo grego, onde a política nasceu. A vida é ação, fala Aristóteles no início da Política. Sim, a vida é ação dirá também Hannah Arendt tentando separar a vida de uma elaboração metafísica e ligando à condição humana. A inspiração fenomenológica e heideggeriana fica clara. Pensar a política significa separar-se da metafísica, do essencialismo. Só assim pode aparecer o Novo. A política é para Arendt o lugar da ruptura com a metafísica.
A modernidade vai, assim, cair atrás do pensamento grego, afirmar a vida na política, a vida biológica, quer dizer, as condições da sobrevivência e do trabalho. Para os gregos, o projeto político não era sobreviver, mas viver bem e aproximar-se do mundo eterno. A modernidade, aproximando o privado e a natureza da política, anunciará uma especifica despolitização. O mundo moderno é o mundo sem a política, o mundo da economia e das condições da sobrevivência. Nós somos testemunhas dessa herança. Hoje, para sobreviver, agora no contexto do terrorismo, temos de criar as novas formas da autoridade política. Sobreviver ainda é um projeto político, ou melhor dizendo, junto a Arendt, é um projeto da negação da política. Estamos muito distantes do projeto grego que tentou unir a política à liberdade e não à natureza.
Voltar para a política – esse é o projeto de Hannah Arendt. Ou melhor, voltar para a política além da racionalidade. Hannah Arendt, mesmo confrontando os gregos e os modernos não quer afirmar novamente a metafísica na política, mas, sim, a herança heideggeriana.
De tal modo, afirmar a política para além da racionalidade são os pontos que unem Hannah Arendt e Chantal Mouffe. No entanto, a inspiração de Chantal Mouffe é diferente, posto que esta não vem da filosofia heideggeriana, mas, primeiro, da experiência psicanalítica, em que o sujeito é sempre falta, sempre uma condição conflitiva e, segundo, da idéia derridiana da diferença.
A diagnose da modernidade entre as duas é semelhante também. Mouffe vai falar sobre a perspectiva econômica do liberalismo moderno, no qual a política desaparece. A despolitização é a diagnose que ela, junto a Arendt, vai fazer sobre a modernidade. A condição humana na modernidade, para Arendt e para Mouffe, é mais individual e econômica que política e coletiva. Por isso, a modernidade chega só até a uma democracia representativa e não até a uma democracia participativa. O mundo liberal não é necessariamente ligado à democracia. Esse é o ponto onde Mouffe, procurando a inspiração em Carl Schmidt, vai se confrontar com autores como John Rawls, Richard Rorty e Habermas. Precisamos então repensar a política para articular as condições de uma nova democracia que Mouffe, junto com Ernesto Laclau, vai chamar de democracia radical ou agonística.
Até esse ponto convergem os caminhos entre Mouffe e Arendt. As diferenças começam quando tratam do conceito do pluralismo na política. No livro sobre o paradoxo democrático, Mouffe vai dizer que o pluralismo em Arendt fica sem antagonismo, ou que o agonismo político fica sem antagonismo. É o ponto onde uma inspiração derridiana supera uma inspiração heideggeriana.
Em suas várias discussões sobre política, Hannah Arendt se refere à discussão fenomenológica, ajudando-nos a compreender a importância histórica dessa radicalização do cartesianismo dentro da fenomenologia husserliana. Hannah Arendt acredita que a separação platônica entre o ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma específica tirania da razão e dos padrões em nossas vida. Isso é o que Nietzsche elabora como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem conseqüências catastróficas para o próprio pensamento. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais, o pensamento não muda a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina, no último momento, nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica, que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou.
Pensar a política, junto com a fenomenologia, significa pensá-la sem a identidade. No projeto arendtiano, em que não existe uma identidade originaria da politica, nós não somos os seres políticos por natureza. A política pode ou não acontecer entre nós. Contrária às dificuldades husserlianas e heideggerianas sobre os outros, a ação política em Arendt é sempre uma interação.Os outros são pressupostos e não conseqüências de uma reflexão solitária. Em livro sobre Santo Agostinho, Arendt vai se liberar da ontologia heideggeriana ligada à morte e procurar uma afirmação dos outros, dos próximos. Claro, Arendt sabe que Santo Agostinho não vai ligar a liberdade à política. A liberdade para ele não é um projeto político. Assim, a modernidade vai herdar essa dimensão não política da liberdade advinda do cristianismo.
Dentro dessa reconstrução histórica, Arendt chega até à filosofia kantiana. Kant não é um pensador político, melhor dizendo, quando a política aparece na filosofia kantiana, é sempre relacionada à doutrina do direito. Não existe a política, pensa Kant, que articula a nossa liberdade. É por isso que Arendt tem de procurar a inspiração em outro lugar dentro da filosofia kantiana e ela encontra essa inspiração dentro da terceira crítica.
Com a faculdade estética do juízo, o ponto, pensa Kant, é como compreendemos a natureza e não o que ela é em si mesma. A questão “o que é a natureza?” é uma pergunta cognitiva e, portanto, não pertence à Terceira crítica. A natureza existiria mesmo se não houvesse nenhum sujeito transcendental. Ela só não seria determinada conceitualmente. Mas, sem o sujeito, a natureza não seria bela. Ainda assim, aquilo que se torna o discurso possível sobre o belo não é mais o pensamento teórico. Enquanto as condições de possibilidade da experiência, no que diz respeito à forma, podem ser buscadas na razão, as condições referentes ao conteúdo são fundamentadas pela relação geral das faculdades espirituais. Aqui temos dois motivos importantes para Arendt. Por um lado, uma implícita intersubjetividade do juízo e, por outro, essa intersubjetividade não é fundamentada nos conceitos. Temos a possibilidade do prático, ou político, que não depende da racionalidade; temos a separação entre o teórico e o prático que Habermas depois vai criticar, porque essa separação cria as condições de uma forte estetização da política. Estetização da política pode significar a política desligada das pessoas, o que Arendt coloca, falando sobre a modernidade, mas pode ser a política desligada da teoria e dos argumentos.
Parece que essa articulação da intersubjetividade significa uma tentativa de Arendt de localizar, articular os lugares privilegiados na política e, de uma certa maneira, reificar a política. Arendt procura as soluções e não uma abertura para o caráter aberto e conflitivo da política que Chantal Mouffe quer defender.
Chantal Mouffe quer elaborar uma concepção antifundamentalista da política. A inspiração é, como mencionei, por um lado derridiana, pensando o conceito da diferença, e, por outro, psicanalítica, pensando o caráter conflitivo da natureza humana. Nesse sentido, Mouffe, inclusive, fala sobre os perigos de uma teoria que procura as soluções consensuais e assim marginaliza os verdadeiros conflitos. Pensei, nesse contexto, no meu país, a ex-Iugoslávia, cujo conflito também pode melhor ser entendido dentro dessa reconstrução de Chantal Mouffe. O comunismo postulou um certo consenso, a solidariedade ou irmandade dos povos dentro do universal projeto da sua realização. Assim, os verdadeiros conflitos entre os povos nunca chegaram à articulação política. Depois da morte de Josip Tito, o conflito aberto apareceu. O governo dele não conseguiu, nas palavras de Mouffe, transformar o antagonismo no agonismo, transformar o conflito numa competição política.
O conflito iugoslavo mostra o perigo das soluções consensuais que excluem a política. Consenso esconde conflitos. Na ex-Iugoslávia, mostrou-se que crer em consenso pode ser uma grande ilusão. Só que Hannah Arendt não é pensadora do consenso e também poderia criticar a experiência titoista dentro da crítica geral ao marxismo. Mesmo assim, penso que a busca de uma implícita ou explícita intersubjetividade, em que o caso iugoslavo também poderia, de uma certa maneira, ser colocado, cria os problemas para a política. A Iugoslávia podia, eventualmente, sobreviver baseada nos conflitos e não no consenso ou na intersubjetividade comunista. Aqui a gente chega até o ponto nevrálgico da discussão: por um lado, pensar a intersubjetividade na política pode criar as condições da reificação. Por outro lado, sem a intersubjetividade, sem a possibilidade do julgar junto aos outros, facilmente se chega até a banalidade do mal.
Agora, na teoria de Chantal Mouffe, mesmo falando sobre a democracia radical, a afirmação do caráter conflitivo da diferença não se tematiza de um jeito radical. Falando sobre o pluralismo político, Mouffe simplesmente o postula. O pluralismo não é uma afirmação ontológica, mas um fato histórico. É o próprio início da modernidade liberal. Derrida ficaria, eu acho, com muitas dúvidas com essa ligação entre o liberalismo e o pluralismo. Liberalismo é só uma forma da identidade social capitalista e não a afirmação da diferença. Outro problema é que Mouffe, e isso a aproxima de Habermas, quer ainda seguir o projeto moderno e europeu. Parece-me difícil imaginar a possibilidade da diferença e do pluralismo dentro desse explícito eurocentrismo.
Assim, por um lado, a desconstrução das identidades políticas fica ainda um projeto aberto. Por outro lado, é provável que a desconstrução das políticas da identidade crie a possibilidade da democracia. A filosofia e a cultura quase sempre instauraram a ausência no ser humano, que deveria ser superada na perspectiva do tempo linear; e esse tempo é o tempo do cristianismo, capitalismo, hegelianismo. Desconstruindo a metafísica da presença, Derrida articula o vazio que nunca deve ser preenchido. Preencher o vazio significaria o estabelecimento da nova identidade. Criticar a identidade, afirmando a diferença significa que o lugar da política e do direito tem de ficar vazio para não criar as novas formas da ideologia. Ou, com as palavras de Claude Lefort, “a soberania popular junta-se à imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender se apropriar dela”. Nesse vazio político, Chantal Mouffe vai entender o sentido do paradoxo democrático. A democracia cria o paradoxo, porque a realização dela seria já a sua desintegração.