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Labirinto de Borges

                                                    

O fio que a mão de Ariadne deixou na mão de Teseu (na outra estava a espada) para que este adentrasse o labirinto e descobrisse o centro, o homem com cabeça de touro ou, como quer Dante, o touro com cabeça de homem, e o matasse e pudesse, já executada a proeza, destecer as redes de pedra e voltar para ela, para seu amor.


As coisas aconteceram assim. Teseu não podia saber que do outro lado do labirinto estava o outro labirinto, o do tempo, e que em algum lugar prefixado estava Medeia.

O fio se perdeu; o labirinto perdeu-se, também. Agora nem sequer sabemos se nos rodeia um labirinto, um secreto cosmos ou um caos fortuito. Nunca daremos com o fio; talvez o encontremos para perdê-lo em um ato de fé, em uma cadência, no sonho, nas palavras que se cha mam filosofia ou na pura e simples felicidade.

Cnossos, Grécia, 1984.

Jorge Luis Borges. "O fio da fábula", in: Obras completas, vol. III. 
(São Paulo: Globo, 1999, p. 540).

A alucinação coletiva do virtual

                                     
Hoje não pensamos o virtual, é o virtual que nos pensa. É essa transparência imperceptível que nos separa definitivamente do real nos é tão incompreensível quanto pode sê-lo para a mosca o vidro contra o qual ela se choca sem compreender o que a separa do mundo exterior. A mosca nem sequer imagina o que põe fim ao seu espaço. Do mesmo modo, nem sequer imaginamos o quanto o virtual já transformou, como por antecipação, todas as representações que temos do mundo.
Somos incapazes de imaginá-lo porque é da natureza do virtual pôr fim não apenas à realidade, mas também à imaginação do real, do político, do social - não apenas à realidade do tempo, mas também à imaginação do passado e do futuro (a isso dá-se o nome , com uma boa dose de humor negro, de “tempo real”).
Ainda estamos muito longe de compreender que a entrada em cena da mídia impede a evolução da história, que a subida ao palco da inteligência artificial impede o avanço do pensamento. A ilusão que guardávamos de todas essas categorias tradicionais, inclusive a ilusão de nos “abrir ao virtual” como a uma extensão real de todos os mundos possíveis, é a própria ilusão da mosca que incansavelmente toma distância para de novo chocar-se contra o vidro.
Ainda acreditamos na realidade do virtual, apesar de o próprio mundo virtual já ter apagado virtualmente todas as pistas do pensamento. Para pôr um pouco de ordem nessa confusão, tomarei um exemplo delicado, justamente porque representa o prolongamento do fato mais assustador e incompreensível da história moderna: o extermínio e aqueles que negam sua existência, os negacionistas.
A proposição negacionista é em si mesma absurda; seu despropósito é tão evidente que a questão crucial passa a ser: por que temos que defender a verdade contra eles? Como a questão da existência das câmaras de gás pôde sequer ser formulada? Ela jamais o seria em outros tempos. Aqueles que contestam o negacionismo não se indagam sobre a própria possibilidade dessa polêmica e contentam-se com uma veemente indugnação. Ora, a própria necessidade de defender a realidade histórica das câmaras de gás como uma causa moral, a necessidade de defender a “realidade”em geral com base em uma espécie de engajamento político revela muito dos descaminhos da objetividade e da mudança de registro na verdade histórica.
No tempo histórico, o evento ocorreu e as provas de fato existem. Mas nào estamos mais no tempo histórico, estamos no tempo real - e no tempo real não há mais provas, sejam elas quais forem. O negacionismo, portanto, é absurdo em sua própria lógica. Seu caráter peculiar esclarece o advento de um aoutra dimensão, chamada paradoxalmente de “tempo real”, mas em cujos limites a realidade objetiva está ausente - e não apenas a realidade do acontecimento atual, mas também dos acontecimentos passados e futuros. Todos os elementos esgotam-se numa tal simultaneidade que as ações não recobram mais seu sentido, os efeitos não remontam mais suas causas e a história já é incapaz de neles ser refletida.
O tempo real é uma espécie de buraco negro onde nada penetra sem antes perder sua substância. De fato, os próprios campos de extermínio tornam-se virtuais e figuram apenas na tela do mundo virtual: todos os testemunhos, o Holocausto e o Shoah, precipitam-se, a despeito deles e a despeito de nós, no mesmo abismo virtual.
Não se diz com isso, no entanto, que, em sua sinceridade absoluta, os próprios testemunhos e os filmes (como imagens que esgotam o horror na atualidade da imagem) não contribuem para essa memória impossível : o extermínio real está condenado a um outro extermínio, o do virtual. Eis aqui a verdadeira solução final.
Exatamente nisto é que consiste a derrota do pensamento - do pensamento histórico e do pensamento crítico. Na verdade, porém, não é sua derrota: é vitória do temporeal sobre o presente, sobre o passado e sobre todas as formas de articulação lógica da realidade. Nem mesmo o futuro está a salvo no tempo real (este é o sentido da prposição paradoxal de que não haverá ano 2000). Caberia aqui discutir a visão de Paul Virillo sobre o “Acidente final”, sobre o “Acidente dos acidentes”, o “apocalipse do virtual”, que ele vislumbra ao termo dessa evolução, ou melhor, dessa involução de nosso mundo em tempo real. Nada é mesmo certo, porém, do que esse apocalipse (até mesmo essa certeza nos escapa!...). Sonhar com o “Acidente final significa prender-se à ilusão do fim, significa esquecer que a própria virtualidade é virtual e que, por definição, seu advento definitivo, seu apocalipse, jamais será capaz de ganhar força de realidade.
Não haverá apocalipse do virtual e do tempo real porque, justamente, o tempo real aniquila o tempo linear e a duração, ou seja, a dimensão em que poderiam desenvolver-se até seu extremo limite. Não há uma função linear exponencial do Acidente, e seu termo último permanece aleatório.
A solução radical de continuidade do real instaurada pelo virtual, a síncope ou o colapso do tempo instaurada pelo tempo real felizmente nos preserva do termo final do extermínio. O sistema do virtual, a exemplo de todos os outros, está condenado a destruir suas próprias condições de possibilidade. Não devemos, portanto, sonhar com um apocalipse futuro, assim como não devemos nos deixar prender por uma utopia qualquer, seja ela qual for: o apocalipse ou a utopia jamais terão lugar no tempo real, pois o próprio tempo sempre lhes faltará.
Se há efetivamente uma revolução do virtual, é preciso compreender seu sentido e deduzir todas as suas consequências, mesmo se nos reservamos a liberdade de ter de recusá-lo pela raiz. Se não há apocalipse (e, virtualmente, já nos encontramos dentro dele: basta constatar a devastação de todo o mundo real), isso vale também para as demais categorias.
O social, o político, o histórico e mesmo o moral e o psicológico - todos os acontecimentos dessas esferas são virtuais. Ou seja, é inútil buscar uma política do virtual, uma ética do virtual, etc., pois a própria política tornou-se virtual, a própria ética tornou-se virtual, no sentido de que ambas perderam seu princípio de ação e sua força de realidade.
O mesmo ocorre com a técnica: falamos de “tecnologias do virtual”, mas na verdade há (ou em breve haverá) somente tecnologias virtuais. Ora, não existe mais o pensamento do artifício num mundo em que o próprio pensamento torna-se artificial. Podemos dizer, nesse sentido, que o virtual nos pensa, e não o contrário.
Toda essa interrogação sobre o virtual tornou-se hoje em dia ainda mais delicada e mais complexa devido à extraordinária impostura que o rodeia. O excesso de informações, o bombardeio publicitário e tecnológico, a mídia, o entusiasmo ou o pânico - tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos. Windows 95, Internet, as auto-estradas da informação - tudo isso é consumido cada vez mais por antecipação, no discurso e na fantasia. Será esse talvez um modo de unir os efeitos em curto-circuito, fazendo-os irromper na imaginação? Disso, porém, não estamos certos. A própria impostura e a intoxicação não fazem parte do virtual? Não sabemos. Sempre a velha história da mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro.
“A certeza não existe”, diz uma pichação de Nova Iorque.
“Tem certeza?”

Tradução de José Marcos Macedo
Fonte: Folha de São Paulo (www.uol.com.br/fsp).

Somos todos grupelhos


Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.

Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.

Para nós, nos países "ricos", as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas... Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia - maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).

Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do "socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto... Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então "a criança não vai muito bem na escola", ou ainda "os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras"; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento...


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica "que poderia ser bem melhor". A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e "normalizadas", o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de "acidentes de trabalho" que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados - à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo - para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas "organizações".


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica - a libido - em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da "causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor - “pela boa causa" - caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução - e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da "base", enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local... A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os "porta-vozes" disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o "partido de Maurice Thorez" ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior... Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?... O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.


NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 - anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.
Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.
A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).
2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).
3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).
                                                                        Tradução de Suely Rolnik
Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Para além de uma dicotomia



Dificilmente encontraremos uma dicotomia mais empobrecedora e equivocada para a reflexão política do que aquela que separa “reforma” e “revolução”, prática reformista e pensamento revolucionário. No entanto, não foram poucas a vezes que ela foi pressuposta por análises de situações político-sociais.
Aceita essa dicotomia, encontramos dois equívocos complementares. O primeiro consiste em elevar a revolução à condição de modelo único de acontecimento dotado de verdade. O que não tiver seu potencial disruptivo e instaurador não vale uma luta política, não deve mobilizar nosso engajamento. Se revoluções saem do horizonte histórico de uma época, então tal tempo será visto necessariamente como um tempo morto, desprovido de acontecimentos. Ele será a descrição inelutável da mortificação da existência. O resultado de tal elevação da revolução a modelo único de acontecimento dotado de verdade é a incapacidade de operar distinções.
De fato, um dos sinais da inteligência consiste na capacidade de saber operar distinções. Pensando em algo parecido, Pascal costumava dividir os homens entre aqueles que têm “espírito de finesse” e aqueles que têm “espírito de geômetra”. Os primeiros eram capazes de se fixar e imergir nos detalhes, encontrar distinções sutis, mas corriam o risco de se perder em suas sutilezas. Já os segundos conseguiam apreender rapidamente totalidades, como um geômetra que desenha figuras.
No entanto, eles corriam o risco de cegar-se para aquilo que não era tão grande. Era claro que a verdadeira inteligência estava na capacidade de viver entre dois espíritos, como se um precisasse a todo momento corrigir a hipóstase do outro. Se quisermos ser pascalianos, poderemos dizer que os que só têm olhos para revoluções talvez estejam muito fascinados por seu próprio espírito de geômetra. No entanto, a falta de finesse na análise política pode ser catastrófica por levar processos acumulados de transformação a serem simplesmente perdidos.
Abertura de novas sequências

Se esse é um dos equívocos sempre à espreita quando se aceita a dicotomia entre reforma e revolução, o outro consistirá em simplesmente recusar todo e qualquer processo revolucionário, como se estivéssemos diante de alguma forma de momento de desvario da história. 


No limite, toda revolução é simplesmente criminalizada, ou seja, só analisada por seus erros, por suas mortes, por suas distorções. Para tais pessoas, é difícil compreender que um acontecimento verdadeiro não garante a sequência de suas consequências


Mais do que um projeto claro, as revoluções foram o ato violento de abertura de novas sequências. Um ato que mobiliza expectativas contraditórias, que coloca em circulação valores cuja determinação de sua significação será objeto de embates também violentos. Por isso, uma revolução é uma causa a partir da qual não é possível derivar, com segurança, qual série de consequências virá.
No entanto, talvez seja importante dizer que uma revolução não deve ser um objeto político. Essa afirmação não é feita pelo fato de as consequências dos processos revolucionários serem incalculáveis, imprevisíveis. Em alguns momentos, raros, nos dispomos a confiar no incalculável.
Na verdade, uma revolução não deve ser objeto político porque simplesmente não sabemos como produzi-la, não há uma linha causal entre um conjunto de condições sócio-históricas e uma revolução. Revoluções são sempre improváveis, fruto de uma série contingente de acontecimentos.
Seria mais honesto reconhecer que a história é o processo que transforma contingências e necessidades. Uma transformação que só é visível a posteriori. Assim, o que devemos fazer é não recusar esses processos contingentes e inesperados que têm a força de romper o tempo. Não recusar já é muita coisa.
Por outro lado, deve-se compreender que uma sequência de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para trás. Hoje, defender uma sequência de reformas é muito mais difícil do que defender rupturas radicais. Pois é mais perigosa uma mudança que está ao alcance de nossas mãos do que uma que está fora do alcance de nossa visão. Lutar por reformas sem perder de vista o fato de que processos incalculáveis podem acontecer. Mais do que um conselho político, essa talvez seja uma forma de vida.

                                                                         Por Vladimir Safatle

Oportunismo, doença infantil da esquerda pragmática: o apoio às greves da polícia.

                                           
     

A recente greve da polícia militar da Bahia retoma uma discussão antiga no interior das esquerdas. A discussão se orienta, basicamente, no que diz respeito à posição dos trabalhadores em relação à greve policial. Em termos gerais, as posições podem ser dividas em dois blocos[1]. Há os que defendem a greve dos policiais por ser esta uma categoria de assalariados e, portanto, de explorados, ou seja, trabalhadores como quaisquer outros, e aqueles que não defendem os policiais, por entenderem que o papel destes vincula-se diretamente à repressão e à classe dos opressores e exploradores. 

Os grupos que apóiam a greve dos policiais reivindicam principalmente que, dentro das PMs, haveria uma “divisão classista”[2]: um setor mais ligado às classes dominantes (oficialato) e outro, explorado pelo primeiro, composto pelas chamadas baixas patentes (soldados, cabos, sargentos). Estes últimos por sua condição de explorados, deveriam receber taticamente o apoio das esquerdas e dos trabalhadores. Outro argumento, reforçando a tese dos que defendem o apoio à greve dos policiais, é o de que a polícia estaria também em “disputa”. Assim, ignorar a possibilidade de influenciar este setor seria, entre outras coisas, um posicionamento puramente “idealista” para aqueles que desejam a ruptura num processo revolucionário.


Valendo-nos da nossa constituição ideológica libertária, antes de irmos ao campo da teoria, onde nossas análises poderão ser melhor fundamentadas, lembremos do despejo do Pinheirinho, executado “magistralmente” pela Polícia Militar, cujos setores do baixo oficialato, mesmo “explorados” economicamente, cumpriram eficientemente sua função ao reprimir, espancar e despejar (sem mencionar as denúncias de violência sexual). Recordemo-nos da atuação da Polícia Militar nos morros cariocas, que mata e assassina nosso povo pobre e negro sob o pretexto do combate ao narcotráfico. Vamos recordar as ações repressivas das Polícias Militares em manifestações estudantis e de trabalhadores, permitindo ao capital seu livre trânsito e reprodução. Sem mencionar, ainda que fosse necessário, a função da polícia na manutenção das desigualdades e na defesa dos exploradores e dominadores de nosso povo. Alguns satisfariam-se com as reflexões feitas até aqui. Acrescentaríamos à estas certezas ideológicas, o reforço da experiência de muitos militantes dos movimentos populares em que estamos inseridos, e que convivem dia a dia com a opressão, o racismo e a repressão dos “trabalhadores” policiais!


Mas é preciso também embasar nossas posições no terreno da teoria, já que determinadas organizações políticas de esquerda, que apóiam a greve policial, responderiam-nos que essa polícia só é desta forma por causa dos que a controlam, e que a tática de apoio à greve policial estaria inscrita numa estratégia muito mais “ampla” de derrota do capitalismo.


Mas entendemos que aqueles que defendem o apoio aos policiais o fazem, principalmente, por aplicarem leituras teóricas completamente equivocadas. Comecemos pelo primeiro equívoco que diz respeito ao funcionamento do poder. Entender a instituição policial apenas pela ação daqueles que a controlam é um erro grave de análise que leva a reducionismos. A sociedade capitalista está estruturada por relações de poder e esferas de dominação, sendo estas últimas interdependentes. Deste modo, não se pode explicar a dominação exercida pela polícia apenas como um efeito “secundário” da esfera econômica, cuja “natureza” seria modificada apenas com a mudança do sistema de produção capitalista pelo socialista. Há de se perceber que o socialismo e a liberdade se forjam com novas instituições e novos valores. A natureza da polícia não pode ser compreendida apenas em função de quem a “controla”, tampouco entendê-la exclusivamente a partir dos acordos de “gabinetes” e dos discursos emitidos por sua cúpula. Deve ser compreendida em sua totalidade e pela ação concreta que teve esta instituição na história: do soldado ao oficial, a polícia sempre esteve a serviço dos exploradores e dominadores e fôra o núcleo duro da reação contra os trabalhadores. Há interdependência desta estrutura repressiva com as outras esferas de dominação (econômica, política, cultural/ideológica, etc). A esfera repressiva (policial e militar) cumprem, deste modo, um papel tão relevante para a manutenção do capitalismo quanto a exploração econômica. Acreditar que a instituição policial (e também o Estado) pode ser “moldada” à vontade de seus gestores é ignorar os processos históricos que nos indicam que:

[...] a classe burguesa tem que remodelar um estado que já vinha antes e que tem suas coisas próprias. A “nova classe” burguesa se adapta à dominação existente, resultando outra conformação do poder político”[3].

A esquerda que apoia os “trabalhadores” policiais acredita que seja capaz de “moldar”, à vontade, a esfera militar do sistema capitalista em seu núcleo mais duro, ou esta tática segue um oportunismo político-eleitoral? Garantem, assim, não os caminhos que levariam à desestruturação do sistema, mas acabam reforçando na população, e nos movimentos sociais, a idéia de que essa esfera de dominação jamais deva ser colocada em questão!

Nesse sentido, a lição da Revolução Mexicana traz um elemento teórico fundamental da desintegração desta esfera de dominação: é o povo em armas que põem a polícia numa crise decisiva, e não a própria polícia! Assim como a burguesia, a polícia não está em disputa! Um povo forte põem a polícia em crise! Não é a toa que o primeiro golpe contra a esfera militar da burguesia tenha sido dado pela generalização de elementos do poder popular que a colocam francamente em cheque como instituição. O funcionamento “normalizado” da polícia nos processos revolucionários é sempre um indício de derrota dos trabalhadores!

Outra questão é o conceito de classe, extremamente simplista, utilizado pelos grupos que defendem a tese do “trabalhador de farda” ou “trabalhador da segurança”. Ao generalizar um conceito de classe baseado apenas no quesito da exploração econômica e das relações de produção capitalistas, entende-se erroneamente o policial como um “trabalhador explorado”, já que este também é assalariado e, assim, poderia obter uma consciência de classe a partir da sua condição. Para isto retomemos os anarquistas (tal como Bakunin) que aprofundaram com maior complexidade este tema. O policial pode estar inserido numa condição de assalariado e até ser “oprimido” no interior de sua estrutura institucional, mas possui uma função vital para a perpetuação do sistema de dominação capitalista, que é a defesa da propriedade privada, além do controle, repressão e extermínio das classes oprimidas e todos aqueles setores da população que buscam se organizar de alguma forma para a a reivindicação de demandas sociais.

Qualquer ideologia que busque a ruptura e a revolução social, e pretenda construir sua teoria de ação eficaz nesse sentido, deve buscar um conceito de classe amplo e que tenha correspondência com a complexidade das sociedades atuais. Num entendimento de que as pessoas se movem não apenas por interesses e demandas materiais e econômicas, ou que todas as esferas sociais não passam de desdobramentos das relações de produção capitalista. Existem demandas culturais, morais, religiosas que os trabalhadores constróem e atribuem sentido socialmente. Assim como existem relações de dominação que extrapolam as relações de produção, como a dominação de gênero, por exemplo. Nenhuma destas relações de dominação exclui o fato de termos de lutar contra a exploração econômica, articulando esta luta com as demais, contra todas as formas de opressão. Isto não significa afirmar que este conceito mais amplo de classe esbarre no vazio intelectual daqueles que insistem em dizer que as “classes não existem”, ou que a realidade modificou-se tão rapidamente, que é impossível dizer o que é uma classe ou que este conceito não dá conta da realidade. A estes, lembramos apenas de Pinheirinhos[4], de Oaxaca e mais recentemente, do confronto dos trabalhadores e policiais nos trens do Rio de Janeiro (aliás, os setores de esquerda que defendem a polícia também deveriam se lembrar)! Não pretendemos cair num subjetivismo estéril, deixemos isso aos charlatões e aos candidatos a iconoclastas. O capitalismo continua forte e sabe adaptar-se, entrecruzando-se com outras formas de dominação, mas o núcleo duro repressivo (exército e a polícia) é fundamental para sua manutenção.

Alguém acredita que aqueles que trabalham prazeirosamente dentro da polícia, mesmo nos setores do baixo oficialato o fazem apenas por motivações econômicas?

Não sejamos levianos ao comparar uma greve policial a uma greve de outros assalariados e dizer que ambas se equivalem e são a mesma coisa. É preciso ter cuidado com o discurso que diz que todas as categorias, ou mesmo as políticas governamentais, dentro de um sistema de dominação se equivalem. Dizer que tudo é equivalente (um professor, um parlamentar, um policial, um juiz), é não ser sincero com os fatos. Não podemos reproduzir este tipo de concepção, pois o que caracteriza o efeito da distribuição desigual do poder, e portanto, também das classes, é, de certo modo, a localização que os agentes ocupam na estrutura dura do sistema de dominação, e os benefícios individuais (não necessariamente econômicos) que estes indivíduos recebem por ocupar essas posições. O apoio à greve da polícia, em ano eleitoral, contra o governo petista da Bahia, a defesa da “polícia” cidadã e da militarização das cidades, são estratégias que apenas reforçam o domínio sobre as camadas mais pobres e oprimidas, e pouco contribuem com a luta pelo socialismo e pela liberdade. Ainda que existam “setores explorados” no baixo oficialato, isto não muda em nada a função reacionária do aparato policial contra nós trabalhadores. Defender a greve policial é defender o bloco mais duro da reação e significa fortalecer e melhorar a infra-estrutura do aparato repressivo da burguesia contra nós trabalhadores. A greve policial não pode ser vista além do que é: uma reivindicação que visa o aumento de salário e a melhora de condições para continuar chacinando nosso povo e defender de forma mais eficiente a burguesia e o capital. Os que a defendem, devem ter a decência de assumir que colocam-se, mesmo que temporariamente, ao lado dos exploradores, assassinos e dominadores do nosso povo.


[1] Cf. FERREIRA, HEMERSON. A esquerda diante da greve de PMs na Bahia: o que fazer? Disponível em Acessado em 08/02/12.
[2] Idem.
[3] Federação Anarquista Uruguaia-Federação Anarquista Gaúcha. Documento Wellington Gallarza-Malvina Tavares. Impresso em 2011.
[4] Os lumpemproletariados de Pinheirinhos, pela teoria marxista tradicional, deveriam comportar-se como verdadeiros reacionários, já que Marx no Manifesto Comunista, relaciona a posição excluída do lumpemproletariado no sistema de produção com o apoio as camadas mais reacionárias das elites dominantes. Chama-os de “rebotalho” do capitalismo (incluindo também os camponeses). Felizmente os sistemas teóricos vez ou outra são contrariados pela prática e a experiência da classe

Bar ruim é lindo, bicho



Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e cinqüenta anos, mas tudo bem.)

No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por Betão — é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver aí quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.

— Ô Betão, traz mais uma pra a gente — eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).

— Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?

Por Antonio Prata

Drogas - Just Say "Know"



A "guerra contra as drogas" é absolutamente indecente. A proibição do uso de substâncias psicotrópicas beneficia a violência do tráfico às custas do dinheiro público, além de não impedir na prática a utilização de drogas, que devido a procedência duvidosa e adulteração, ficam ainda mais perigosas. Neste texto procurarei destrinchar a ideologia duvidosa que proíbe coisas como a maconha e os alucinógenos, ignorando o uso milenar dessas substâncias com fins religiosos, hedonistas ou medicinais.


A raiz da proibição de substâncias está na igreja medieval, que por razões dogmáticas proibia o uso de todo o tipo de especiarias (não só psicotrópicos) como perfumes, açúcar, etc. O que quer que causasse prazer era controlado pelo clero. Mesmo a música demorou anos para se livrar da proibição da dissonância e mesmo da polifonia, a base de toda a música ocidental após o período renascentista.

O sexo até hoje é desconsiderado pela igreja como um ato sublime e religioso por si só, sem a reprodução como finalidade precípua, e a proibição de anticoncepcionais pelo Papa só endossa esta afirmação. Mesmo drogas medicinais eram atacadas, principalmente por serem utilizadas por "bruxos", que não passavam de médicos camponeses, parteiras, etc., que tinham o conhecimento das ervas. O descobrimento da América, já numa época onde essas substâncias eram toleradas, criou nações como o Brasil que dependiam e criavam sua riqueza (que, claro, ia para os colonizadores) quase que unicamente de uma substância psicotrópica que causa dependência, o café, e do açúcar, especiarias antes com o uso restringido na Europa. Isso sem falar no tabaco, hábito dos índios americanos que se espalhou pelo mundo com uma velocidade alarmante, apesar das restrições da Igreja, que não poderia tolerar uma coisa "infernal" como aquela, que queimava e produzia fumaça.No século passado, já com o iluminismo absolutamente consolidado, em pleno positivismo, fez-se a descoberta de inúmeras drogas, entre elas os anestésicos, que revolucionaram a cirurgia. 

Intelectuais faziam uso de Absinto (uma bebida com um efeito ligeiramente diferente do álcool), cocaína, ópio, tabaco sob a forma de rapé e cigarros, e o uso dessas substâncias (com exceção talvez do ópio) era requintada e dândi. Mas entre as classes populares ainda havia o preconceito (além da falta de dinheiro, claro) reminiscente da Igreja, principalmente entre os Protestantes, mas o álcool sempre foi largamente utilizado.O século XX entrou com a psicanálise do Dr. Freud, que era um notável usuário de tabaco e cocaína, o que na época não era considerado, como normalmente se entende hoje, um ponto negativo para ele. Na Sears, loja de departamentos Norte-Americana, se podia comprar um kit com uma seringa e diversas substâncias para o senhor de família relaxar ou se divertir. 

A antropologia estava em alta e diversos estudiosos viajavam para lugares remotos e experimentavam as drogas religiosas de diversos povos.De fato quase toda cultura tem uma droga específica. Alguns casos chegam ao extremo, como algumas tribos vikings, que usavam um cogumelo extremamente tóxico. Eles faziam o guerreiro mais forte tomar uma poção com o cogumelo e depois toda a tribo bebia a urina do guerreiro, que mantinha o efeito psicotrópico mas não o efeito tóxico, o guerreiro passava mal alguns dias. Os índios mexicanos que usam cactus Peyote vomitam por dias a fio com a boca lanhada e seca apenas para ter alucinações. Normalmente quem faz o uso dessas substâncias é o xamã, ou pagé, da tribo e ele a partir disso faz previsões ou curas.Zoroastrismo, Igreja Cóptica, esquimós da Sibéria, índios por toda a América (aliás 80% das plantas alucinógenas se concentra na América), sufis do islã, tribos africanas, todos usam ou usavam substâncias psicotrópicas (sem contar o álcool) com fins religiosos, de prazer ou medicinais. 

Acredita-se que na Grécia antiga, nos ritos de Eleusis, se utilizava um derivado do Ergot, o mofo do centeio, como um alucinógeno semelhante ao LSD. Se isso for verdade, gregos ilustres como Platão, que participavam das cerimônias, utilizavam (ou viam pessoas utilizar) alucinógenos.Mas com tudo isso, a maior nação Protestante do mundo, os Estados Unidos, em 1914 resolveu baixar uma lei proibindo o uso de diversas substâncias psicotrópicas, feito imitado (nem sempre por vomtade própria) por todo o mundo algum tempo depois. Além disso, na década de 30, talvez devido a depressão econômica, tentaram proibir o álcool. O tráfico foi tanto, a violência tanta, que voltaram atrás.

Enquanto isso se descobria o LSD e Aldous Huxley fazia experimentos com a mescalina e escrevia um livro muito influente até hoje, "As portas da percepção". As bases estavam lançadas para o primeiro movimento contracultural, os Beatniks, nos anos 50. Usuários de drogas pesadas, intelectuais, apreciadores do Jazz, este grupo razoavelmente pequeno de pessoas foi a base cultural da revolução dos anos 60. Através de seus livros uma geração inteira de pessoas direcionadas para o uso sem preconceitos (e até exagerado) de drogas foi criada. E com ela a revolução sexual e cultural que todos conhecemos.As pesquisas com o uso psiquiátrico do LSD caminhavam (com resultados controversos até hoje) muito bem, e quando o governo percebeu havia toda uma geração não voltada para o consumo, despreocupada com o trabalho e pacifista (isso em plena e inútil guerra do Vietnã). 

Esse foi o ultimato para as drogas. O governo americano proibiu o LSD em 1966, e acabou com as verbas para sua pesquisa (o estudo psiquiátrico do LSD continua apenas na Suíça). O tráfico internacional de drogas começou. Houve toda uma campanha de desinformação sobre drogas. O usuário de drogas não podia confiar em nenhuma informação técnica sobre a substância, reportagens exageradas mostravam fatos duvidosos, etc. Até hoje existe algo disso, embora seja muito mais fácil conseguir informação confiável sobre drogas.É isso mesmo. Você achava que o governo proíbe as drogas porque elas "fazem mal", mas na verdade o governo as proíbe porque elas são contraproducentes numa sociedade de zumbis consumistas, trabalhadores incansáveis de corporações sem rosto e pessoas naturalmente deprimidas e sem religião. 

É verdade que algumas drogas fazem mal e provocam uma dependência terrível, como a heroína, é verdade que se pode morrer de overdose de cocaína, e é verdade que uma pessoa despreparada e deprimida, num ambiente desfavorável, pode se suicidar pelo efeito do LSD. Mas o álcool e o tabaco também provocam muitos malefícios e são liberados. Você não acha que o cidadão é que deveria decidir o que utilizar? Você gosta de ser tratado como um bebê que não pode comer um doce porque papai não quer? Você, cidadão respeitável, gosta de pagar a busca e apreensão de drogas, que podiam render impostos para o governo e ainda ter uma qualidade bem melhor, o que evitaria muitas mortes? Você acha que seu filho merece a informação dos amigos e traficantes ou a de uma bula? Você não confia nas pessoas?Não prego aqui a liberação de heroína ou cocaína, o que seria impossível aqui, embora a experiência da Holanda não seja o que pregam. 

Lá, pelo menos os Junkies, que são doentes, têm o auxílio do governo. E sempre vão haver Junkies, pesquisas mostram que pelo menos 10% da população desenvolve algum tipo de dependência que não seja de café ou tabaco. Mas alucinógenos não provocam dependência e geralmente são experiências enriquecedoras. Quase não existe tráfico de LSD, simplesmente porque ele não vicia, a pessoa sequer sente uma vontade reincidente (como na cocaína, outra droga que não causa dependência física, apenas uma forte dependência psicológica) - ou seja, drogas seguras não são normalmente traficadas, e o lugar comum chega a pensar (já me vieram com essa diversas vezes) que o "Ácido" é muito mais perigoso do que a cocaína. Sem falar na maconha, que nunca deveria ter sido proibida, e que leva a fama de quase tudo que não é: aditiva, destruidora de cérebro, etc. E as pessoas que falam isso bebem todo o dia, ou todo o fim de semana.Não prego aqui que todos devam usar drogas. 

Apenas os xamãs modernos, os artistas e os intelectuais, as pessoas criativas em geral é que normalmente se beneficiam, e que arcam o pequeno preço que algumas drogas cobram. Mas todos temos o direito de experimentar. 

Todos temos o direito de saber.
Drogas - Just Say "Know".


                                                                                                                                Timothy Leary

Mensagem ao Papa




Não és tu o confessionário, oh Papa! Somos nós; compreende-nos, e que os católicos nos compreendam.

Em nome da pátria, em nome da família, incentivas a venda das almas e a livre trituração dos corpos.

Temos, entre nós e nossas almas, suficientes caminhos para percorrer, suficientes distâncias para que neles se interponham os teus sacerdotes vacilantes e esse amontoado de doutrinas das quais se nutrem todos os castrados do liberalismo mundial.

Teu deus católico e cristão que, como todos os demais deuses, concebeu todo o mal:

1. Tu o meteste no bolso.

2. Nada temos a fazer com teus cânones, índex, pecados, confessionários, padralhada.

Pensamos em outra guerra, uma guerra contra ti, Papa, cachorro.

Aqui o espírito se confessa ao espírito. Não há deus, bíblia ou evangelho, não existem palavras que possam deter o espírito. Não estamos no mundo. Oh Papa confinado no mundo! Nem a terra, nem deus falam de ti.

O mundo é o abismo da alma! Papa caquético, Papa alheio à alma. Deixe-nos nadar em nossos corpos, deixe nossas almas em nossas almas. Não precisamos de tua espada de claridades.


Antonin Artaud

Exército


Tenho a sorte de não ter ido nunca à tropa. Jamais na minha vida toquei um fuzil nem pude superar a minha repugnância assombrosa pela cor dos uniformes. A única vez que matei alguma coisa eu tinha sete anos. Ia com um tio meu e um irmão maior; eu levava uma escopeta que errou sempre. O meu irmão matou dois tristes birulicos que logo nem comemos, e durante muitas horas depois senti uma espécie de oco na cabeça, como uma pergunta essencial, humana, libertária, sobre a inutilidade dessas mortes. A morte inútil de dois pássaros é o começo da barbárie.

O exército começa na violência inútil contra dois pássaros, na bofetada injusta de um pai em uma criança. O exército começa na ordem militar das famílias, no imperativo urgente dum homem que chega escravizado, e logo o exército cresce dentro de nós, como uma geometria inapelável, e estende-se ao domínio sexual, à violação, às discussões autoritárias, o exército estende-se ao trabalho onde reproduzimos uma hierarquia celestial, às aulas das universidades, às monarquias, a deus. E logo, quando já o exército contamina quotidianamente a alma e o cérebro, quando já assassinou a utopia com que nascemos e que algum dia havemos recobrar, então é singelo dar-lhe um uniforme, vesti-lo de verde, pôr-lhe um nome e um adjetivo, e acolhê-lo entre nós como se fosse natural e não uma trama dos poderosos e sua consciência para impedir a liberdade.

O exército não é só a instituição mais repugnante jamais criada no planeta: o exército é uma atitude, uma cultura, uma maneira de destruir as coisas. O grau de sofisticação dos instrumentos de destruição e morte é algo tão horrível que só nos pode levar a duvidar do sentido do universo. Há armas que estragam por dentro, deixando cavidades irreparáveis na epiderme. Há armas de metal pequeno que furam os caminhos harmônicos do corpo deixando ao sair rastros vermelhos e retalhos de carne. Há armas que estouram ao pisá-las, semeando orgãos sangrentos nas areias naturais. Há armas que matam lentamente: na sua agonia atômica o corpo perde a pele e os cabelos e acaba a vida entre vômitos vazios, impotentes. Há armas que matam muitos anos depois, de câncro e de cegueira. Há armas que deixam mapas queimados na pele, como macabras metáforas dos territórios ocupados: a Beira Oeste, a Faixa de Gaza, Irlanda. Há armas que asfixiam e armas que desmembram. E há armas que assassinam legalmente nas câmaras esterilizadas dos presídios, armas que eletrocutam com consenso, armas policiais que derrubam sujos ladrões urbanos na cumplicidade da noite, armas de álcool legitimado, armas de poderosas seringas, armas de palavras que insultam aos que falam ou escrevem diferente, armas anatômicas que violam meninas de dois anos, armas de tinta que assinam execuções e masculinas leis injustas.

Contra esta barbárie, contra este épico da morte, só nos cabe a insubmissão ativa. A insubmissão não é um ato político: é uma atitude, uma necessidade, uma aposta pela utopia que querem esmagar por lhes dar medo. Porque dá medo imaginar um lugar comum onde perdamos a noção do ser e da história e onde sejamos apenas a extensão humana do azar, outra forma da matéria, cada um na sua carne e tocando a dos outros, no território sem poder que levará sempre a espécie humana à inteligência. A insubmissão é mais do que uma náusea por matar: é a necessária revolta contra esta epopéia de miséria. Poderão desaparecer as castas militares. Poderemos aprender a controlar-nos mutuamente, sem pistolas, no consenso. Poderemos fingir que chegamos já ao limite da igualdade. Mas, enquanto existirem os presídios, as favelas, os bairros crematórios, enquanto existir uma fronteira real, existirá o exército.

Celso Alvarez Cáccamo