Páginas

Ainda é preciso ler Freud?




Fora do círculo familiar, os 50 anos de Freud foram festejados apenas pelo pequeno grupo de psicanalistas vienenses que se reuniam em sua casa todas as quartas-feiras desde o outono de 1902. A ocasião era propícia a comemorações: não sendo mais o único analista, sua psicanálise já ultrapassara os limites de Viena – a conquista dos “arianos” de Zurique neutralizara a vil acusação de “ciência judia”. Vivia-se a fase áurea da clínica psicanalítica e, em termos de publicações de fôlego, jamais haveria para Freud ano igual ao anterior (1905). Além do livro sobre os chistes e do “Caso Dora”, houve os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, com o qual ele adicionara ao discurso do desejo (1900) o discurso da pulsão, definindo categoricamente os dois eixos centrais de sua investigação metapsicológica.
Como presente de aniversário, os alunos ofereceram-lhe um medalhão, realizado pelo escultor K. M. Schwerdtner. Sobre uma face, fora gravado o perfil de Freud, e sobre a outra, a cena de Édipo em frente à Esfinge. Em volta do desenho, um verso de Édipo Rei: “Aquele que resolveu o famoso enigma e que foi um homem de enorme poder”. Lendo a inscrição, Freud teria empalidecido: “Parecia ter visto um fantasma”, escreveu E. Jones. Depois de P. Federn admitir ser o autor da escolha da citação, Freud, agitado, contou que, quando jovem estudante de medicina na Universidade de Viena, costumava olhar os bustos dos antigos professores, imaginando que um dia poderia estar entre eles: o seu traria exatamente a mesma citação de Sófocles inscrita no medalhão com o qual acabava de ser honrado.
Desse episódio, apenas a segunda parte do sonho diurno de Freud materializou-se: afinal, como o Édipo da mitologia, ele decifrou, no plano da cultura, o próprio enigma edipiano, adentrando os mistérios da sexualidade humana. Quanto a figurar entre pares, nem seria o caso, pois de fato jamais fora médico; foi um psicanalista e um magnífico professor. Mas, na Universidade de Viena, seu estatuto não passou de um professor extraordinarius, que, no regime acadêmico da época, designava quem se encarregava de cursos que não constavam do currículo oficial obrigatório.
Esse caráter marginal permanece também o destino da psicanálise, e mesmo seu grande trunfo ou talvez condição de sobrevivência. Na academia, em particular, a psicanálise não deve estar no centro de uma formação, mas exterior aos outros domínios. O próprio Freud assumia uma incompatibilidade com toda sorte de “existência oficial” e demandava “independência em todas as direções”. O professor francês Jean Laplanche afirma que o analista [e a psicanálise] nasce e desenvolve-se apenas na marginalidade e na ruptura, e não pode garantir-se senão preservando todo um jogo de extraterritorialidades, em todos os níveis: marginalidade do tratamento em relação às instâncias da vida cotidiana, da análise pessoal em relação aos requisitos das sociedades de analistas, do exercício da análise em relação às profissões reconhecidas (médico ou psicólogo), das instituições analíticas em relação às instituições e aos reconhecimentos oficiais etc. “Como analistas, como pesquisadores e como universitários, afirmamos (…) que a experiência analítica constitui um campo epistemológico específico e autônomo”. A contrapartida é que ela não seja propriedade privada de um indivíduo ou de uma instituição.
É que ao fim e ao cabo, como teoria do inconsciente, a psicanálise acabaria por se tornar indispensável para todas as ciências que se ocupam da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições como a arte, a religião ou a ordem social. “Creio ter introduzido alguma coisa que ocupará constantemente os homens”, escreveu Freud a Binswanger, em 1911.
Não há qualquer anseio imperialista na pretensão freudiana. Se a disciplina por ele fundada deve interessar à psicologia, às ciências da linguagem, à filosofia, à biologia, à história da civilização, à estética, à sociologia e à pedagogia, isso não faz mais do que prolongar o movimento mesmo de seu próprio pensamento, “interessado” em todas essas disciplinas, conforme nos explica S. Mijolla-Mellor (Recherches en Psychanalise, 2004). Desse ponto de vista, antes de interessar a outros campos do saber ou da cultura, é a própria psicanálise que tem interesse nesses campos, sendo eles parte constitutiva dela própria. Quanto ao interesse das outras disciplinas pela psicanálise, é certo que tal movimento não elimina o fato da resistência – e esta diz respeito à vexação psicológica dos homens diante de seus desejos inconscientes tais como apontados pela invenção freudiana. Na fundação da Associação Psicanalítica Internacional, em 1910, Freud anunciou aos colegas: “Os indivíduos aos quais fazemos descobrir o que recalcam experimentam hostilidade a nosso respeito; não podemos esperar uma amabilidade simpática da sociedade para com aqueles que desvelam impiedosamente seus defeitos e insuficiências”. Em carta a Arthur Schnitzler, ainda escreveria que a psicanálise não é “um meio de se fazer amar”.
Devemos esperar, por isso, de tempos em tempos, vilanias tais como a infame e medíocre compilação de críticas publicada na França, em 2005, com o nome de O Livro Negro da Psicanálise, no qual Freud é tratado como falsário, trapaceiro e mentiroso (tal como faz agora, em 2010, Michel Onfray em O Crepúsculo de um Ídolo: a Fabulação Freudiana). Costuma-se aproveitar essas ocasiões para mais uma vez se falar em “crise da psicanálise”, o que Jacques Lacan (1901-1981), já em 1974, refuta com vigor, em termos definitivos: “A crise (…) não existe (…).” A psicanálise ainda não encontrou seus próprios limites. Há muito que descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise não há solução imediata, mas apenas a longa e paciente busca das razões”. Além disso, há Freud, arremata Lacan, “que ainda não compreendemos inteiramente”.
Por Fernando Aguiar

A perversidade espiritual do Céu


                         

O vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim deveria ser um momento de reflexão. Tornou-se clichê enfatizar a natureza “milagrosa” dessa queda: foi como se um sonho se realizasse, porque algo inimaginável aconteceu, algo que dois meses antes ninguém julgava possível, com as eleições livres após a desintegração dos regimes comunistas, que desmoronaram como um castelo de cartas. Quem, na Polônia, teria imaginado eleições livres das quais Lech Wałęsa sairia como presidente? No entanto, deveríamos acrescentar de imediato que um “milagre” ainda maior aconteceu poucos anos depois, ou seja, a volta de ex-comunistas ao poder por meio de eleições livres e democráticas e a total marginalização de Wałęsa, que se tornou mais impopular do que o homem que, quinze anos antes, arrasara o Solidarność com um golpe militar: o general Wojcieh Jaruzelski.

A explicação mais comum para essa segunda inversão lembra as expectativas utópicas “imaturas” da maioria: o desejo da maioria do povo era contraditório, ou melhor, incoerente. O povo queria chupar cana e assoviar; queria a abundância material e a liberdade democrática capitalista sem pagar o alto preço de viver numa “sociedade de risco”, ou seja, sem perder a segurança e a estabilidade (mais ou menos) garantida dos regimes comunistas. Como observaram devidamente os sarcásticos comentaristas ocidentais, a realidade da nobre luta por liberdade e justiça era apenas uma paixão por bananas e pornografia.

Quando a inevitável decepção se instalou, houve três reações (ora opostas, ora sobrepostas): (1) nostalgia dos “bons tempos” comunistas; (2) populismo nacionalista de direita; (3) paranoia anticomunista renovada e “atrasada”. As duas primeiras são fáceis de compreender. A nostalgia do comunismo não deve ser levada muito a sério: longe de exprimir o desejo genuíno de voltar à realidade cinzenta do regime anterior, está mais para uma forma de luto, um processo de lento abandono do passado. A ascensão do populismo de direita não é especialidade do Leste Europeu: é uma característica comum a todos os países pegos no sorvedouro da globalização. Mais interessante é a estranha ressurreição do anticomunismo quase duas décadas depois dos acontecimentos, porque oferece uma resposta simples à pergunta: “Se o capitalismo é assim tão melhor do que o socialismo, por que nossa vida continua péssima?”. É porque ainda não entramos de fato no capitalismo, os comunistas ainda dominam, disfarçados de novos proprietários e gerentes... É um fato óbvio que, quando o povo protesta contra os regimes comunistas na Europa oriental, a maioria não exige o capitalismo. Eles querem segurança social, solidariedade, algum tipo de justiça; querem a liberdade de viver sua vida fora do alcance do controle estatal; querem se reunir e conversar à vontade; querem uma vida de honestidade e franqueza simples, livre da primitiva doutrinação ideológica e da cínica hipocrisia predominante. Como observaram muitos analistas perspicazes, os ideais que orientaram os manifestantes foram tirados em grande parte da própria ideologia socialista dominante; o povo aspirava a algo que se pode chamar, muito apropriadamente, de “socialismo com rosto humano”.

A questão crucial é como interpretar o colapso dessas esperanças utópicas. A resposta predominante é o realismo capitalista: o povo simplesmente não tinha uma imagem realista do capitalismo, estava cheio de expectativas utópicas imaturas. Depois do entusiasmo dos dias inebriantes da vitória, o povo teve de recuperar a sobriedade e passar por um doloroso processo de aprendizado das regras da nova realidade ou, em outras palavras, conhecer o preço a pagar pela liberdade política e econômica. Foi como se a esquerda europeia tivesse de morrer duas vezes: primeiro como esquerda comunista “totalitária” e depois como esquerda democrática moderada, que nos últimos anos vem perdendo espaço na Itália, na França e na Alemanha. Até certo ponto, esse processo pode ser responsabilizado pelo fato de que os partidos de centro e mesmo os conservadores que substituíram a esquerda incorporam vários traços que caracterizavam tradicionalmente a esquerda (apoio a alguma forma de Estado de bem-estar social, tolerância com as minorias etc.), de modo que se alguém como Angela Merkel apresentasse seu programa nos Estados Unidos seria tachado de esquerdista radical. Mas isso só vale até certo ponto. Na democracia pós-política de hoje, a tradicional bipolaridade entre a centro-esquerda social-democrata e a centro-direita conservadora vem sendo substituída pouco a pouco por uma nova bipolaridade entre política e pós-política: o partido tecnocrata liberal, tolerante e multiculturalista do governo pós-político e sua contrapartida populista de direita da luta política apaixonada – não admira que os antigos adversários de centro (conservadores ou democratas cristãos e sociais-democratas ou liberais) sejam tantas vezes forçados a unir forças contra o inimigo comum. (Freud escreveu sobre o Unbehagen in der Kultur – o descontentamento/inquietação na cultura – e hoje, vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, vivemos uma espécie de Unbehagen no capitalismo liberal. A pergunta fundamental é: quem articulará esse descontentamento? Caberá aos populistas nacionalistas explorá-lo? Essa é a grande tarefa da esquerda.)

Deveríamos desconsiderar o impulso utópico que motivou os protestos como sinal de imaturidade ou permanecer  fiéis a ele? Vale notar aqui que a resistência ao comunismo na Europa Oriental assumiu três formas consecutivas: (1) a crítica marxista “revisionista” dos socialismos reais (“Esse não é o verdadeiro socialismo, queremos o retorno à visão autêntica do socialismo como sociedade livre”) – podemos observar maliciosamente que o mesmo processo aconteceu no início do período moderno europeu, quando a oposição secular ao papel hegemônico da religião teve de se exprimir primeiro como heresia religiosa; (2) a exigência de espaço autônomo para a sociedade civil, livre das restrições do controle do Estado-partido (essa era a posição social do Solidariedade em seus primeiros anos de vida; a mensagem ao partido comunista era: “Não queremos o poder, só queremos um espaço livre, longe do seu controle, onde possamos nos dedicar à real exão crítica sobre o que acontece na sociedade”); (3) por último, a luta declarada pelo poder: “Queremos sim o poder total democraticamente legitimado, está na hora de vocês se mandarem...”. As duas primeiras formas são apenas ilusões (ou melhor, concessões estratégicas) que devem ser descartadas?


A premissa subjacente deste livro é simples: o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus “quatro cavaleiros do Apocalipse” são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria--prima, comida e água) e o crescimento explosivo das divisões e exclusões sociais.

Para tomar apenas essa última questão, em nenhum outro lugar as formas de apartheid são mais palpáveis do que nos ricos Estados produtores de petróleo do Oriente Médio: Kuwait, Arábia Saudita, Dubai. Escondidos nos subúrbios, muitas vezes por trás do muro, há dezenas de milhares de trabalhadores imigrantes “invisíveis”, que fazem o trabalho sujo, da manutenção até a construção civil, separados de suas famílias e sem nenhum privilégio. Isso claramente acrescenta à situação um potencial explosivo que hoje é explorado pelos fundamentalistas e deveria ser canalizado pela esquerda na luta contra a exploração e a corrupção. Um país como a Arábia Saudita está literalmente “além da corrupção”: não precisa dela porque a gangue dominante (a família real) já é dona de toda a riqueza e pode distribuí-la à vontade. Nesses países, a única alternativa aos surtos fundamentalistas seria uma espécie de Estado social-democrata de bem-estar social. Se essa situação persistir, será possível imaginar a mudança na “psique coletiva” ocidental quando (não se, mas precisamente quando) uma dessas “nações (ou grupos) delinquentes” obtiver armas nucleares, químicas ou biológicas poderosas e declarar sua disposição “irracional” de usá-las e pôr tudo em risco? As próprias coordenadas básicas da consciência mudarão, uma vez que vivemos hoje num estado de negação fetichista coletiva: sabemos muito bem que alguma hora isso acontecerá, mas ainda assim não acreditamos que possa realmente acontecer. O esforço dos Estados Unidos para tentar impedi-lo com ações preventivas contínuas é uma batalha perdida de antemão: a própria ideia de que se possa fazer isso se baseia numa visão fantasmática.

Uma forma mais comum de exclusão inclusiva são as favelas, grandes  áreas não inseridas nos mecanismos estatais de governança. Embora sejam sobretudo um campo em que gangues e seitas religiosas disputem o controle, as favelas abrem espaço para organizações políticas radicais, como na Índia, onde o movimento maoista dos naxalitas vem organizando um amplo espaço social alternativo. Segundo uma autoridade estatal indiana: “A questão é que, quando não governamos uma região, ela não é nossa. A não ser nos mapas, ela não faz parte da Índia. Hoje, pelo menos metade da Índia não é governada. Não está sob nosso controle [...] é preciso criar uma sociedade completa, pela qual a população local tenha interesses muito significativos. Nós não fazemos isso. [...] E assim damos espaço para os maoistas”.

Embora os sinais da “grande desordem sob o céu” em todos esses campos sejam abundantes, a verdade dói e tentamos desesperadamente evitá-la. Para explicar como, temos de recorrer a um guia inesperado. A psicóloga suíça Elisabeth Kübler-Ross propôs um famoso esquema de cinco estágios do luto quando, por exemplo, descobrimos que temos uma doença terminal: negação (nós simplesmente nos recusamos a aceitar o fato: “Isto não pode estar acontecendo, não comigo”); raiva (que explode quando não podemos mais negar o fato: “Como isto foi acontecer comigo?”); barganha (esperança de poder adiar ou diminuir o fato: “Deixe-me viver até meus filhos se formarem”); depressão (desinvestimento libidinal: “Vou morrer, então por que me preocupar?”); e aceitação (“Já que não posso lutar, é melhor me preparar”). Mais tarde, Kübler-Ross aplicou esses estágios a todas as formas de perda pessoal catastrófica (desemprego, morte de entes queridos, divórcio, vício em drogas) e enfatizou que eles não aparecem necessariamente nessa ordem nem são todos vividos pelos pacientes.

Podemos distinguir os mesmos cinco padrões no modo como nossa consciência social trata o apocalipse vindouro. A primeira reação é a negação ideológica de qualquer “desordem sob o céu”; a segunda aparece nas explosões de raiva contra as injustiças da nova ordem mundial; seguem-se tentativas de barganhar (“Se mudarmos aqui e ali, a vida talvez possa continuar como antes...”); quando a barganha fracassa, instalam-se a depressão e o afastamento; inicialmente, depois de passar pelo ponto zero, não vemos mais as coisas como ameaças, mas como uma oportunidade de recomeçar. Ou, como Mao Tsé-Tung coloca: “Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente”.

Os cinco capítulos deste livro (Vivendo no fim dos tempos, publicado pela Boitempo) se referem a essas cinco posturas. O capítulo 1, “Negação”, analisa os modos predominantes de obscurecimento ideológico, desde os últimos campeões de bilheteria de Hollywood até o falso (deslocado) apocaliptismo (obscurantismo da Nova Era e coisas do tipo). O capítulo 2, “Raiva”, examina os violentos protestos contra o sistema global, em especial a ascensão do fundamentalismo religioso. O capítulo 3, “Barganha”, trata da crítica da economia política, com um apelo à renovação desse ingrediente fundamental da teoria marxista. O capítulo 4, “Depressão”, descreve o impacto do colapso vindouro, principalmente em seus aspectos menos conhecidos, como o surgimento de novas formas de patologia subjetiva (o sujeito “pós-traumático”). E, por ultimo, o capítulo 5, “Aceitação”, distingue os sinais do surgimento da subjetividade emancipatória e procura os germes de uma cultura comunista em suas diversas formas, inclusive nas utopias literárias e outras (desde a comunidade de camundongos de Kafka até o coletivo de bizarros párias da série televisiva Heroes).

Essa virada na direção do entusiasmo emancipatório só acontece quando a verdade traumática não só é aceita de maneira distanciada, como também vivida por inteiro: “A verdade tem de ser vivida, e não ensinada. Prepara-te para a batalha!”.


Como os famosos versos de Rilke (“Pois não há lugar que não te veja. Deves mudar tua vida”), esse trecho de O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse, só pode parecer um estranho non sequitur: se a Coisa me olha de todos os lados, por que isso me obriga a mudar? Por que não uma experiência mística despersonalizada, em que “saio de mim” e me identidade com o olhar do outro? E, do mesmo modo, se é preciso viver a verdade, por que isso envolve luta? Por que não uma experiência íntima de meditação? Porque o estado “espontâneo” da vida cotidiana é uma mentira vivida, de modo que é necessária uma luta contínua para escapar dessa mentira. O ponto de partida desse processo é nos apavorarmos com nós mesmos. Quando analisou o atraso da Alemanha em sua obra de juventude Crítica da filosofia a do direito de Hegel, Marx fez uma observação sobre o vínculo entre vergonha, terror e coragem, raramente notada, mas fundamental: É preciso tornar a pressão efetiva ainda maior, acrescentando a ela a consciência da pressão, e tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública. É preciso retratar cada esfera da sociedade alemã como a  partie honteuse [parte vergonhosa] da sociedade alemã, forçar essas relações petrificadas a dançar, entoando a elas sua própria melodia! É preciso ensinar o povo a se aterrorizar diante de si mesmo, a imagem de nele incutir coragem.

Essa é a nossa tarefa hoje, diante do cinismo descarado da ordem global existente.Para cumprir essa tarefa, não devemos ter medo de aprender com os inimigos. Depois de se encontrar com Nixon e Kissinger, Mao disse: “Gosto de tratar com direitistas. Eles dizem o que realmente pensam, ao contrário dos esquerdistas, que dizem uma coisa e querem dizer outra”. Há uma verdade profunda nessa observação. A lição de Marx aplica-se hoje ainda mais do que em sua época: podemos aprender muito mais com os conservadores críticos e inteligentes (não reacionários) do que com os progressistas liberais, porque estes tendem a obliterar as “contradições” inerentes à ordem existente que aqueles estão prontos a admitir como insolúveis. O que Daniel Bell chamou de “contradições culturais do capitalismo” está na origem do mal-estar ideológico de hoje: o progresso do capitalismo, que necessita de uma ideologia consumista, solapa pouco a pouco a própria atitude (ética protestante) que tornou o capitalismo possível. O capitalismo de hoje funciona cada vez mais como uma “institucionalização da inveja”.

A verdade de que tratamos aqui não é a verdade “objetiva”, mas a verdade autorreferencial sobre nossa própria posição subjetiva; como tal, essa verdade é uma verdade engajada, avaliada não por sua precisão factual, mas pelo modo como ela afeta a posição subjetiva da enunciação. Em O seminário 18 – De um discurso que não fosse semblante*, Lacan deu uma definição sucinta da verdade da interpretação na psicanálise: “A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decide por um sim ou um não, ela desencadeia a verdade como tal. Ela só é verdade na medida em que é verdadeiramente seguida”. Não há nada “teológico” nessa formulação precisa, apenas a noção da unidade propriamente dialética de teoria e prática na interpretação (não só) psicanalítica: a “prova” da interpretação do analista é o efeito-verdade que ela desencadeia no paciente. Também é assim que devemos (re)ler a Tese XI de Marx: a “prova” da teoria marxista é o efeito-verdade que ela desencadeia em seus destinatários (os proletários), transformando-os em sujeitos revolucionários.

O locus communis “É preciso ver para crer!” deveria ser sempre lido com sua inversão, “É preciso crer para ver!”. Apesar da tentação de contrapor esses pontos de vista – como o dogmatismo da fé cega versus a abertura para o inesperado –, é preciso insistir na verdade da segunda versão: a verdade, ao contrário do conhecimento, é, como um Evento badiouano, algo que só o olhar engajado, o olhar do sujeito que “crê” consegue enxergar. Tomemos como exemplo o amor: no amor, só o amante vê no objeto de amor aquele X que causa amor, o objeto-paralaxe, portanto a estrutura do amor é a mesma do Evento badiouano, que também só existe para quem se reconhece nele: não existe Evento para o observador objetivo não engajado. Sem essa posição engajada, por mais acuradas que sejam as descrições do estado de coisas, elas não conseguem gerar efeitos emancipatórios; em última análise, só tornam mais pesado o fardo da mentira ou, para citar Mao outra vez, “erguem a pedra para largá-la aos próprios pés”.

Em 1948, quando Sartre viu que seria caluniado pelos dois lados da Guerra Fria, escreveu: “Se isso acontecesse, só provaria uma coisa: ou sou muito desastrado, ou estou no caminho certo”. Muitas vezes me sinto assim também: sou criticado por ser antissemita e por disseminar mentiras sionistas; por ser um nacionalista esloveno enrustido e um antipatriota traidor do meu país; por ser um stalinista disfarçado defendendo o terror e por disseminar mentiras burguesas sobre o comunismo...

Sendo assim, talvez, apenas talvez, eu esteja no caminho.certo, o caminho da fidelidade à liberdade. No diálogo (por sua vez, excessivamente humanista e sentimental) de Spartacus, de Stanley Kubrick, há uma troca de ideias entre Espártaco e um pirata que se oferece para organizar o transporte dos escravos pelo Adriático. O pirata pergunta francamente a Espártaco se ele sabe que a revolta dos escravos está condenada, e que mais cedo ou mais tarde os rebeldes serão esmagados pelo exército romano; também pergunta o que ele faria se admitisse que a derrota dos escravos é inevitável: ele continuaria a lutar até o fim? 

É claro que a resposta de Espártaco é ai rmativa: a luta não é apenas uma tentativa pragmática de melhorar a condição dos escravos, é uma rebelião baseada em princípios, em nome da liberdade; assim, mesmo que sejam vencidos e mortos, a luta não será em vão, porque estarão ai armando seu compromisso incondicional com a liberdade – a tentativa, a própria ação, já é um sucesso, uma vez que ilustra a ideia imortal de liberdade. Aqui, devemos dar à “ideia” todo o seu peso platônico.

Este livro, portanto, é um livro de luta, segundo a dei nição surpreendentemente pertinente de luta emancipatória dada por são Paulo: “Pois nosso combate não é contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as autoridades, contra os dominadores [kosmokratoras] deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal que povoam as regiões celestes” (Efésios 6,12). Ou, traduzido para a linguagem de hoje: “Nossa luta não é contra indivíduos corruptos reais, mas contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que os sustenta”. Engajar-se nessa luta significa endossar a fórmula de Badiou: “Mieux vaut un désastre qu’un désêtre”, isto é, mais vale correr o risco e engajar-se em fidelidade num Evento-Verdade, mesmo que essa fidelidade termine em catástrofe, do que vegetar na sobrevivência hedonista-utilitária sem eventos daqueles que Nietzsche chamou de “últimos homens”. Portanto, o que Badiou rejeita é a ideologia liberal da vitimação, que leva a política a evitar o pior, a renunciar a todos os projetos positivos e buscar a opção menos pior. Ou, como observou com amargura o escritor judeu vienense Arthur Feldmann: o preço que costumamos pagar pela sobrevivência é a nossa vida.

Slavoj Zizek



Ostentação



A hipervalorização de bens ditos “de marca” é uma característica das sociedades contemporâneas.  Delas advém a distinção como forma de poder que fascina tanto ricos quanto pobres no cenário da dessubjetivação partilhada por todos, da loja de luxo ao camelódromo das falsificações.
A questão da distinção guarda em seu fundo um aspecto mais tenebroso, concernente ao presente da condição subjetiva da vida dos usuários devorados pelas antipolíticas autodestrutivas do consumismo transformado em regra.
Zerada a intersubjetividade que se definia na interação afetiva e comunicativa entre pessoas, o que resta são as coisas – e as pessoas como coisas – que podem ser compradas. Diga-se de passagem que as pessoas não compram coisas, mas sinais que informam sobre um capital simbólico. Coisificação da consciência é o nome velho para o fenômeno em que a concretude das coisas é substituída pela abstração da insígnia.
A fascinação de tantas pessoas por roupas, carros e até eletrodomésticos ditos “de marca” em nossa época é a declaração auto-exposta da morte do sujeito. Espantalhos de uma ordem que previu o assassinato do desejo, do pensamento e da liberdade – conjunto do que aqui chamamos de subjetividade – são incapazes de compreender seu descarado simulacro.
A morte por assassinato da subjetividade é percebida na redução do indivíduo a uma espécie de morto-vivo em três tempos. 1 – A destituição do direito ao próprio desejo: a publicidade colonizou a capacidade de sentir e projetar a autobiografia de cada um que é apagada na encenação da “vida fashion”. 2 – A desaparição da possibilidade de pensar: a publicidade oferece os jargões e slogans a serem repetidos sob a ilusão de ideias próprias. 3 – O direito à ideia-prática da liberdade é extirpado: resta o simulacro da escolha entre uma marca e outra. A ação torna-se acomodação ao mesmo de sempre.
A escolha entre o nada e a coisa nenhuma é bem disfarçada no poder de ostentar que promete redimir do buraco subjetivo. Não tendo mais o que expressar, alguém simplesmente “ostenta” um relógio caro, um computador moderninho, um carrão oneroso. Ou um piercing, um músculo forte. Tudo e cada coisa é reduzida à marca, emblema do capital e seu poder na era do Espetáculo.
Podemos dizer que a ostentação é a cultura da pseudo-expressão no tempo das marcas. Se o poder de ostentar é proporcional ao esvaziamento da expressão, resta perguntar o que foi feito dessa potência humana? Ora, a expressão é fator subjetivo que se cria em um contexto social e político em que está em jogo a capacidade de “dizer alguma coisa”, de “dizer o que se pensa”, o que se “deseja”.
Só que fomos privados da expressão com a derrocada da formação de sujeitos desejantes, reflexivos e livres. Se as pessoas não dizem o que pensam, é porque a capacidade de pensar e dizer lhes foi extirpada. No lugar, podem travestir-se com a insígnia do poder fundamentalista das marcas da religião capitalista. A cruz para Cristianismo, a Estrela de Davi para o Judaísmo, a Lua Crescente para o Islamismo e uma marca famosa para o servo fiel do capital.
Os jovens são as principais vítimas dessa violência. Que sejam o “público alvo” quer dizer que são a presa fácil para um tiro certeiro. Os rebanhos de zumbis nikezados, abercrombizados, macdonaldizados, são arregimentados no exército de otários das massas manobradas, paramentados para o grande sacrifício sem ritual do capitalismo, em que a subjetividade é diariamente morta a pauladas.
A saída é a arte, a poesia, a negação ativa contra o uso e o consumo de marcas. A prática anti-capitalista é um ateísmo e começa com a recusa aos seus deuses como simples profanação cotidiana.

Marcia Tiburi

Aventura




Cada parte de nossa atividade e de nossa experiência tem um duplo significado: ela gira em torno do próprio ponto central; ela terá tanto em amplitude e profundidade, em prazer e dor, quanto lhe for concedido pela experiência imediata; e ela é simultaneamente uma parte do decorrer da vida, não apenas uma totalidade circunscrita, mas também um componente de um organismo completo. Estes dois sentidos configuram diversamente cada conteúdo de vida; acontecimentos cujas significações próprias poderiam ser muito semelhantes entre si – quando essas se referem a si mesmas – são extremamente divergentes em função de suas relações com a totalidade da vida; ou, sendo talvez incomparáveis com respeito à primeira perspectiva, seus papéis como elementos de nossa existência inteira podem ser quase idênticos. Se de duas experiências, cujos conteúdos perceptíveis são semelhantes, uma é percebida como “aventura” e a outra não, isto constitui aquela diversividade da relação com a totalidade da nossa vida, pela qual cabe a esta tal significado, que à outra não se coloca.
A forma da aventura, em sua acepção mais genérica, pode ser assim expressa: ela extrapola o contexto da vida. Por aquela totalidade de uma vida entendemos que em seus conteúdos específicos – por mais que eles se distingam de uma maneira flagrante e irreconciliável – circula um processo de vida unitário. Contraposto à imbricação dos anéis da vida, ao sentimento de que, apesar de todas essas contracorrentes, essas viradas, esses embaraços, se tece, finalmente, uma linha contínua, está aquilo que chamamos aventura: uma parte da nossa existência à qual – pela frente e por trás se ligam imediatamente outras, mas que, ao mesmo tempo, em seu sentido profundo, corre por fora de qualquer continuidade desta vida. Não obstante, ela é distinta do simples acaso, do estranho, do que apenas roça a epiderme da vida. Ao situar-se fora do contexto da vida, a aventura como que penetra, justamente com esse mesmo movimento, novamente nele – isso será paulatinamente esclarecido. Ela é um corpo estranho em nossa existência, que, no entanto, é de alguma forma ligado ao centro. O externo é, mesmo via um longo e não habitual desvio, uma forma do interno. Por essa situação anímica, a aventura recebe facilmente a coloração do sonho na memória. Todos sabem como os sonhos são rapidamente esquecidos, em função de eles se situarem também fora do contexto de sentido da totalidade da vida. O que denominamos “onírico” não é outra coisa senão uma recordação, que se associa com menos fios que as demais experiências ao processo dinâmico e unitário da vida. Localizamos nossa incapacidade em ordenar uma experiência a esse processo na representação do sonho, no qual esta experiência teria se realizado. Quanto mais “aventureira” for uma aventura, tanto mais seu conceito será preenchido em sua acepção mais pura, tanto mais ela será “onírica” para nossa memória. E ela freqüentemente se afasta tanto do ponto central do Eu e do decurso da totalidade da vida, por ele firmemente assegurado, que pensamos facilmente na aventura, como se um outro a tivesse vivenciado; quão distante ela paira no lado oposto desta totalidade e quão estranha a aventura se lhe tomou, exprime-se justamente pelo fato de, por assim dizer, ser compatível com nosso sentimento, dar a ela um outro sujeito que não aquele. Em um sentido muito mais preciso do que quando tratamos das outras formas dos nossos conteúdos de vida, a aventura tem começo e fim. Isto constitui seu desligamento dos entrelaçamentos e encadeamentos daqueles conteúdos, seu centramento em um sentido próprio. Com respeito aos acontecimentos cotidianos e aos anuais, percebemos que um termina na medida em que – ou por que – o outro se coloca. Eles determinam suas fronteiras entre si, e, com isso, a unidade do contexto da vida é configurada ou expressa. A aventura, porém, segundo seu sentido como aventura, é independente do anterior e do posterior; ela determina seus limites sem considerá-los, precisamente lá onde a continuidade com a vida é recusada por princípio – ou que em verdade sequer precisa ser recusada, porque um estranhamento, uma intocabilidade e uma existência à parte são dados de antemão – falamos de aventura. A ela falta aquela penetração mútua com as partes vizinhas da vida, pela qual esta forma uma totalidade. O seu começo e o seu fim são determinados como uma ilha na vida, de acordo com suas próprias forças formadoras, e não como um pedaço de um continente, determinado simultaneamente pelo lado de cá e pelo lado de lá. Esta delimitação decisiva, com qual a aventura se subtrai da marcha conjunta de um destino, não é algo mecânico, mas orgânico. Assim como o organismo não determina sua forma espacial simplesmente por meio de obstruções vindas da direita e da esquerda, mas mediante a força motriz de uma vida que se forma internamente, também a aventura não termina porque alguma outra coisa se inicia. Antes, sua forma temporal, seu fim radical, constitui a figura precisa de seu sentido interior.
Aqui temos, em primeiro lugar, a relação profunda do aventureiro com o artista, e talvez também o fundamento da inclinação do artista pela aventura, pois a essência da obra de arte é que ela recorta um pedaço da linha infinitamente contínua da plasticidade e da experiência, o solta da conexão com este e com aquele lado e lhe dá uma forma auto-suficiente, determinada a partir de um centro interno, e por de mantida unida. O fato de uma parte da existência – entrelaçada na ininterrupção desta – ser, todavia, sentida como uma totalidade, como uma unidade acabada, constitui a forma comum à obra de arte e à aventura. E em função dela ambas são sentidas – em toda parcialidade e casualidade dos seus conteúdos – como se em cada uma delas de alguma maneira se resumisse e se esgotasse a vida toda. E isto parece acontecer não de um modo pior, mas sim de um modo mais perfeito, porque a obra de arte se coloca do lado oposto da vida, uma realidade, e a aventura se coloca do lado oposto da vida, como um processo ininterrupto, que entrelaça compreensivelmente todo elemento com seu vizinho. Justamente porque a obra de arte e a aventura se opõem à vida (mesmo que nos mais distintos significados do oposto),1 uma e outra são análogas à totalidade de uma vida, como é representado em um pequeno corte e na densidade da experiência do sonho.
Por isso o aventureiro é também o exemplo mais forte do homem a histórico, do ser do presente. De um lado, ele não é definido por nenhum passado, o que determina sua oposição à velhice, de outro, não há para ele o futuro. Uma prova extrema, e bem característica disto, temos no fato de Casanova, como é de se ler em suas memórias, tão amiúde, no decorrer da sua vida erótico-aventureira, pretender seriamente se casar com a mulher que ele amava naquele momento. Na natureza e na condução da vida de Casanova havia algo completamente contraditório; interna e externamente algo mais impossível seria impensável. Casanova não foi somente um conhecedor primoroso dos homens, mas especialmente um raro conhecedor de si mesmo; tendo de dizer a si próprio que não manteria um casamento por mais de catorze dias e que as conseqüências lastimáveis deste passo seriam totalmente inevitáveis, o êxtase do momento (quero aqui colocar o acento mais sobre o momento do que sobre o êxtase) engolia a perspectiva de futuro. Porque o sentimento do presente o dominava incondicionalmente, ele buscava uma relação para o futuro, o que era impossível justamente por sua natureza do presente.
O fato de algo isolado e casual conter uma necessidade e um sentido diferencia o conceito de aventura de todas as partes da vida que encaixam os meros desígnios do destino em sua periferia. Uma tal parte da vida só se torna uma aventura por meio daquela dupla doação de sentido: ela constitui em si uma configuração de um sentido que é de alguma maneira deveras significativo – configuração que é fixada por meio de um começo e um fim -; ela está, não obstante toda sua casualidade e toda sua exterioridade perante o fluxo contínuo da vida, em conexão com a essência e com a determinação do sujeito em um sentido amplo – que se alastra aos segmentos racionais da vida – e em uma necessidade secreta.
Isso faz lembrar a relação do aventureiro com o jogador. O jogador, na verdade, está abandonado à falta de sentido do acaso; apenas na medida em que ele conta com o favor deste acaso, na medida em que ele considera possível uma vida condicionada por este acaso, e a realiza, o acaso coloca-se para ele em uma concatenação do sentido. A superstição típica do jogador não é outra coisa senão a forma palpável e singular, e por isso infantil, deste esquema profundo e abrangente de sua vida: que no caso reside um sentido, um significado, necessário qualquer – mesmo que este não seja necessário segundo a lógica racional. Pela superstição, com a qual o jogador quer atrair o acaso, via augúrios e lances mágicos, para dentro do seu sistema de finalidade, ele o libera de seu impenetrável isolamento, ele procura nesse acaso uma ordem vigente segundo certas leis, mesmo que segundo leis fantásticas. E assim o aventureiro permite que o acaso, que se situa fora da linha da vida, que é dirigida por um sentido, seja todavia abrangido por este sentido. Ele introduz um sentimento central da vida, que é conduzido por meio da excentricidade da aventura e produz uma necessidade nova e significativa de sua vida, justamente na amplitude da distância entre seu conteúdo casual dado pelo exterior e o centro da existência – unificador e doador de sentido. Entre acaso e necessidade, entre os fragmentados da realidade exterior e o significado unitário da vida desenvolvida a partir de dentro, está em jogo, em nós, um processo eterno, e as grandes formas, nas quais configuramos os conteúdos da vida, são as sínteses, os antagonismo e os compromissos destes aspectos fundamentais. A aventura é um deles. Se o aventureiro profissional faz da ausência de sistema da sua vida um sistema de vida, se ele busca os meros acasos exteriores a partir de sua necessidade interior, incorporando aqueles nesta, com isto ele toma apenas macroscopicamente visível o que constitui a forma essencial de toda “aventura”, mesmo a do homem não aventureiro, pois sempre entendemos por aventura um terceiro termo – além tanto do mero acontecimento abrupto, cujo sentido permanece pura e simplesmente exterior para nós (do mesmo modo como veio do exterior), como também da linha unitária da vida, na qual cada parte complementa a outra, formando um sentido total. A aventura não é uma mistura de ambos, mas a experiência incomparavelmente colorida, que se deixa interpretar apenas como abrangência especial daquele pólo casual-exterior pelo pólo interior-necessidade.
Ocasionalmente toda esta relação é ainda abarcada por uma profunda configuração interior. Da mesma maneira como a aventura parece basear-se numa diferenciação dentro da vida, a vida como um todo pode ser sentida como uma aventura. Para tanto, não é preciso nem ser um aventureiro, nem vivenciar várias aventuras específicas. Quem tem esta atitude singular perante a vida deve sentir, sobre a totalidade daquela vida, uma unidade superior, como que uma vida superior que se comporta perante aquela como a própria totalidade da vida imediata diante das experiências específicas – que são para nós as aventuras empíricas. Talvez pertençamos a uma ordem metafísica, talvez nossa alma viva uma existência transcendente, de tal forma que, contraposta a uma inominável existência que se completa acima dela, nossa vida terrena consciente seja somente uma parte isolada. O mito da transmigração de almas pode ser uma tentativa hesitante de exprimir este caráter segmentário de toda vida dada. Quem sente por meio de toda a vida real uma existência atemporal e secreta da alma – que é ligada a estas realidades apenas como que de longe – perceberá a vida em sua totalidade dada e limitada como uma aventura, comparada àquele destino transcendente e em si unitário. Certas motivações religiosas parecem provocar isto. Onde nosso trilho terreno é considerado um mero estágio anterior do cumprimento do destino eterno, onde temos sobre a terra apenas uma ligeira estadia de hóspede, mas não um lar, há manifestamente apenas uma coloração especial do sentimento geral de que a vida como uma totalidade é uma aventura; com o que é expresso somente que os sintomas da aventura afluem para ela: que ela se situa fora do sentido próprio e do decurso contínuo da existência, mas está, contudo, ligada a eles por meio de um destino e de uma simbólica misteriosa; que ela é um acaso fragmentário, mas é, todavia, coesa como uma obra de arte, com começo e fim; que ela, como um sonho, junta em si todas as paixões e, como este, está fadada ao esquecimento; que ela, como o jogo, se distingue do sério, mas caminha, como o Va banque do jogador, em direção à alternativa de um ganho máximo ou da destruição.
A síntese das grandes categorias da vida – sendo a aventura uma formação peculiar delas – perfaz-se entre a atividade e a passividade, entre aquilo que conquistamos, e aquilo que nos é dado. Sem dúvida, a síntese da aventura torna a oposição destes elementos extremamente perceptível. Por um lado, com ela, abarcamos violentamente o mundo em nosso interior. A diferença em relação à maneira como aproveitamos as dádivas dele no trabalho deixa isto claro. O trabalho possui, por assim dizer, uma relação orgânica com o mundo, ele desenvolve continuamente as matérias e forças do mundo até seu ápice, visando a finalidades humanas, enquanto, na aventura, temos uma relação inorgânica com o mundo; ela traz consigo os gestos do conquistador, o rápido aproveitamento das chances, não importando se com isto separamos uma parte harmônica ou desarmônica para nós, para com o mundo ou para com a relação de ambos. De outro lado, porém, na aventura, estamos expostos ao mundo, mais desprotegidos e sem reservas do que naquelas relações todas, que estão ligadas por mais pontes com a totalidade de nossa vida no mundo e que, portanto, nos protegem melhor contra os choques e perigos, por meio de desvios e adaptações.
Aqui entrelaçamento de ação e sofrimento, no qual decorre nossa vida, estende seus elementos a uma simultaneidade da conquista, que deve tudo somente à própria força e ao espírito do presente, e do completo abandonar-se às forças e às chances do mundo, que tanto podem nos favorecer como nos destruir. O fato de a unidade na qual reunimos em cada momento nossa atividade e nossa passividade perante o mundo – unidade que num certo sentido constitui a vida – conduzir seus elementos a um aguçamento tão extremo e, precisamente com isto, tomar-se mais profundamente perceptível – como se eles fossem somente aspectos de uma e da mesma vida misteriosamente inseparável – constitui um dos mais admiráveis encantos com o qual a aventura nos seduz.
O fato de a aventura continuar nos parecendo um cruzamento do momento de segurança da vida com o de insegurança constitui algo mais que o posicionamento da mesma relação fundamental, sob um outro ponto de vista. A segurança que – acertada ou equivocadamente – temos com respeito ao êxito confere à atividade uma coloração qualitativamente especial. Se, ao contrário, não estamos seguros de que alcançaremos o objetivo estabelecido na partida, se temos consciência da incerteza com respeito ao êxito, isto constitui não apenas uma segurança quantitativamente menor, mas significa, antes, uma condução interna e externamente singular da nossa praxis. O aventureiro, para dizê-lo numa só palavra, trata o que na vida é incalculável, como em geral tratamos o que pode ser calculado com segurança. (Por isso o filósofo é o aventureiro do espírito. Ele faz a tentativa sem perspectiva, porém não sem sentido, de formular em termos de um conhecimento conceitual um procedimento de vida da alma, sua disposição diante de si, do mundo e de Deus. Ele trata o insolúvel como se fosse solúvel.)
Onde o entrelaçamento com os elementos desconhecidos do destino torna duvidoso o êxito de nossa atividade, cuidamos de limitar o emprego de nossas forças, de manter abertas as linhas de retirada e damos cada passo apenas experimentando. Na aventura, procedemos de um modo diametralmente oposto: apostamos tudo justamente na chance flutuante, no destino e no que é impreciso, derrubamos a ponte atrás de nós, adentramos o nevoeiro, como se o caminho devesse nos conduzir sob quaisquer circunstâncias. Este é o típico “fatalismo” do aventureiro. Certamente as escuridões do destino não são mais transparentes a ele que aos outros, mas ele se comporta como se fossem. A ousadia peculiar com a qual ele sempre se retira da estabilidade da vida constrói de certa maneira, para sua própria legitimação, um sentimento de segurança e de necessidade do êxito, que em geral só encontramos na transparência de acontecimentos calculáveis. O fato de o aventureiro, não obstante, crer que este desconhecido é seguro para ele constitui apenas um afastamento subjetivo da convicção fatalista, de que nosso destino – o qual não conhecemos – é com certeza inevitável; por isso a atividade do aventureiro freqüentemente parece loucura aos olhos do homem sóbrio, porque, para que tenha sentido, ela parece ter como pré-requisito que o insondável seja sabido.
O príncipe de Ligne dizia de Casanova: “Ele não acredita em nada, exceto no que é menos plausível”. Evidentemente, aquela relação perversa ou no mínimo “aventureira” entre o sabido e o ignorado constitui o fundamento desta afirmação. O ceticismo do aventureiro – o fato de ele “não acreditar em nada” – é manifestamente um correlato disto: para quem o improvável é provável, o provável toma-se facilmente improvável. O aventureiro confia, de algum modo, em sua própria força; antes de tudo, porém, confia em sua própria sorte; no fundo, ele se fia em uma singular união não diferenciada de ambas. A força, da qual ele está seguro, e a sorte, da qual ele não está seguro, convergem nele – subjetivamente – em direção a um sentimento de segurança. Se a essência do gênio é caracterizada por uma relação imediata com as unidades misteriosas, que na experiência e na decomposição operada pela razão se separam em fenômenos completamente isolados, então o aventureiro genial vive, como que com um instinto místico, no ponto onde a marcha do mundo e o destino individual por assim dizer ainda não se diferenciaram um do outro. Por isso o aventureiro tem geralmente feições “geniais”. A partir desta constelação especial, na qual ele faz do mais inseguro e do incalculável os pressupostos de sua ação – o que um outro faria apenas do calculável -, tomase compreensível a “segurança sonâmbula” com a qual o aventureiro conduz sua vida e, mediante a postura inabalável que este mantém quando vem a ser desmentido pelos fatos, se comprova quão profundamente aquela constelação está enraizada nos pressupostos de vida de pessoas desta natureza.
Mesmo sendo a aventura uma forma de vida que pode se concretizar em uma multiplicidade de conteúdos de vida não decididos de antemão, o conteúdo erótico tende, antes de todos os demais, a assumir esta forma, de tal modo que nossa linguagem praticamente impede a aventura de ser entendida como algo diferente de uma experiência erótica. Na verdade, uma experiência amorosa de curta duração não constitui necessariamente uma aventura. Antes, para que ela exista, é mister que as qualidades anímicas especiais – em cujo ponto de encontro reside a aventura – se unifiquem com esse momento quantitativo. Sua tendência para esta aproximação manifesta-se passo a passo.
A relação amorosa contém em si a junção clara – que também unifica a forma do aventureiro – desses elementos: a força conquistadora e a concessão não-constrangi da, o ganho advindo da própria capacidade e a dependência da sorte, que nos é concedida por uma instância incalculável alheia à nossa força e capacidade. Talvez uma certa equivalência destas direções na experiência, obtidas na base de sua diferenciação profunda, seja encontrável somente da parte do homem; talvez se deva a isto a significação exemplar, constatável no fato de a relação amorosa normalmente ser considerada apenas para o homem “aventura”, sendo que para a mulher algo idêntico é enquadrado em outras categorias. A atividade da mulher em um romance amoroso é tipicamente entremeada de passividade, que foi pela natureza ou pela história atribuída à sua essência; por outro lado, o ato de receber e o seu contentamento constituem imediatamente uma concessão e um presentear. Os dois pólos da conquista e da graça – que podem ser expressos em vários matizes – estão muito próximos na mulher e se distanciam decisivamente no homem, e por isso sua junção na experiência erótica confere ao homem o cunho – pouco dúbio – de “aventura”.
O fato de o homem ser a parte pretendente, ativa e amiúde impetuosamente abarcadora permite facilmente que, em cada experiência erótica percebida com displicência, o momento do destino, ou seja, a dependência a algo não previamente determinável, a algo que se subtrai a qualquer coação, passa desapercebido. Com isto entendemos não apenas a dependência à concessão por parte do outro, mas algo mais profundo.Certamente todo amor correspondido é um presente que não pode ser “merecido”, independente da proporção do amor, porque o amor se esquiva de qualquer exigência e pagamento e, por princípio, pertence a uma categoria totalmente distinta do acerto mútuo de contas; um ponto que mostra uma de suas analogias com a relação religiosa profunda. Além daquilo que recebemos do outro como doação livre, existe ainda em cada felicidade amorosa um favor do destino – como portador mais profundo e impessoal daquela doação pessoal. Nós o recebemos não apenas do outro, antes, o fato de recebermos dele constitui uma graça dos poderes incalculáveis. No acontecimento mais orgulhoso e autoconfiante deste campo reside algo que devemos tomar com humildade. E na medida em que a força, que deve seu sucesso a si mesma e que dá a toda conquista amorosa algum tom de vitória e triunfo, se casa com aquela outra da graça do destino, temos de certa maneira a constelação da aventura.
Em solos profundos enraíza-se a relação do conteúdo erótico com as formas gerais de vida da aventura. A aventura é o enclave do contexto da vida, o recorte abrupto, cujo início e fim não têm ligação com a corrente de algum modo unitária da existência – e não obstante, ela, como que por sobre esta corrente e prescindindo de sua mediação, se conecta com os instintos mais misteriosos e com uma intenção última da vida e se diferencia, em função disto, do mero episódio casual, do que nos “acontece” apenas exteriormente. Onde a experiência amorosa tem uma duração curta, ela vive justamente neste entrelaçamento de um caráter meramente tangencial com um caráter central. Ela pode dar à nossa vida um brilho simplesmente momentâneo, como um raio que lança, em um ambiente interior, uma luz externa, deslizante, efêmera; todavia, com isto é satisfeita uma necessidade, ou, em outros termos, a aventura só é possível em função de uma necessidade – chamem-na física, psíquica ou metafísica – que existe como que atemporalmente no fundamento ou no centro de nossa essência e que é tão ligada à experiência fugaz, quanto aquela claridade casual prontamente extinguível o é com a nossa nostalgia da luz.
A possibilidade de existência desta dupla relação no âmbito do erótico espelha-se em seu duplo aspecto temporal: o êxtase momentaneamente culminante e abruptamente cadente e a eternidade, em cuja idéia se cria uma expressão temporal para o fato de duas almas serem de uma forma mística determinadas uma para a outra e ainda para uma unidade superior. E isto poderia ser comparado com a dupla existência de conteúdos espirituais, que emergem de fato apenas na fugacidade do processo anímico, no ponto sempre instantâneo de incandescência da consciência, mas cujo sentido lógico possui, porém, uma validade atemporal, uma significação ideal, totalmente independente daquele instante da consciência, na qual estes conteúdos espirituais se tornam reais para nós. O fenômeno da aventura – com sua marca abruptamente pontiaguda, que empurra o final para o campo de visão do início e com sua relação simultânea com um centro da vida, que a distingue do mero acontecimento casual (relação cuja ausência implicaria a impossibilidade de existência do “risco de vida” no estilo da aventura) – é deste modo um forma que, pelo seu simbolismo temporal, aparece como predeterminada para a recepção do conteúdo erótico.
Estas analogias e formulações comuns ao amor e à aventura já prenunciam o fato de a aventura não pertencer ao estilo de vida da velhice. O que é decisivo para este fato é que a aventura, segundo sua essência e encanto específicos, é uma forma da experiência. conteúdo do acontecer não constitui ainda a aventura: o fato de existir um risco de vida ou de uma mulher ser conquistada para uma breve felicidade; o fato de elementos desconhecidos, com os quais se ponderou o jogo, terem trazido ganho ou perda surpreendente; o fato de a pessoa com um disfarce físico ou psíquico se encontrar em esferas da vida, das quais se regressa ao mundo familiar como que vindo de um mundo estranho – tudo isto não constitui ainda necessariamente uma aventura. Esta se caracterizará somente por meio de uma certa tensão do sentimento de vida, com a qual aqueles conteúdos se realizam; somente quando uma corrente, indo e vindo entre a parte mais exterior da vida e a sua fonte central de energia, abarca aquela em si, e quando aquela coloração, temperatura e ritmo especiais do processo de vida constituem o que é verdadeiramente decisivo, o que de certa maneira acentua o conteúdo de um tal processo de vida, o acontecimento deixará de ser uma simples experiência e se tornará uma aventura.
Este princípio de acentuação, porém, se distancia da velhice. De forma geral, somente a juventude conhece tal preponderância do processo sobre os conteúdos da vida, enquanto para a velhice, quando o processo da vida começa a desacelerar e a enrijecer, importam os conteúdos, que são de certo modo atemporais e indiferentes ao ritmo e à paixão de sua experiência. Na velhice, ou se vive totalmente centralizado, e neste caso os interesses periféricos decaem e perdem a ligação com a vida essencial e com sua necessidade interna, ou o centro se atrofia, em decorrência do que a existência passa a se limitar tão-somente aos detalhes isolados e passa a haver a acentuação da importância do que é meramente exterior e casual. Em nenhum dos dois casos é possível a relação entre o acontecimento exterior e as fontes de vida interna, na qual se fundamenta a aventura, em nenhum deles se pode chegar à sensação de contraste da aventura: onde uma atividade é retirada totalmente do contexto geral da vida, mas deixa, não obstante, fluir em si a força e a intensidade totais da vida.
Esta oposição entre juventude e velhice – por meio da qual a aventura se torna prerrogativa da primeira, o que acentua lá o processo da vida, seu ritmo e suas antinomias e aqui os conteúdos, para os quais a experiência aparece cada vez mais como uma forma comparativamente casual – pode ser expressa como aquela entre o espírito romântico e o espírito histórico da vida. Para a atitude romântica importa a vida em sua imediaticidade, na individualidade de sua forma momentânea, em seu aqui e agora; ela sente a força total da corrente da vida com mais intensidade precisamente na pontualidade de uma experiência arrancada do curso normal das coisas, mas à qual se estende, contudo, um nervo proveniente do coração da vida. Toda esta ação da vida lançando-se fora de si, esta amplitude da oposição dos elementos penetrados por esta ação, pode alimentar-se somente do excesso e da alegria incontida da vida, como ocorre na aventura, no romantismo e na juventude.
A disposição histórica é mais própria da velhice, se esta como tal tem uma atitude importante e característica de recolhimento. O fato de esta disposição histórica ampliar-se para uma visão do mundo ou restringir seu interesse ao próprio passado é irrelevante; em todo caso ela corresponde, em sua objetividade e meditação retrospectiva, à imagem dos conteúdos da vida, da qual a imediaticidade da vida em si desapareceu. Toda história como imagem, em um sentido científico restrito, é gerada por meio desta sobrevivência dos conteúdos além do processo de seu presente, que é vivenciado, porém indizível. A ligação que este processo construiu entre eles desintegrou-se e precisa ser agora reconstruída na forma de uma imagem ideal, por meio de linhas totalmente diferentes. Com este deslocamento do acento, deixam de existir todos os pressupostos dinâmicos da aventura. Sua atmosfera é, como já foi indicado, a contemporaneidade incondicional, a aceleração do processo da vida até um ponto que não possui nem passado nem futuro – e que por isso reúne a vida em si com intensidade – e que se torna com freqüência relativamente indiferente à matéria do processo.
Assim como para a verdadeira natureza do jogador o motivo decisivo não é ganhar esta ou aquela quantia em dinheiro, mas sim o jogo como tal, a violência do sentimento rasgado pela oscilação entre a felicidade e o desespero, a proximidade, como que palpável, das forças sobrenaturais, que decidem entre ambos, também a sedução da aventura inúmeras vezes não se encontra no conteúdo que ela nos oferece – e que, oferecido de outra forma, seria talvez menos reparado – mas sim na forma aventureira de sua experiência, na intensidade e no suspense, com os quais ela, exatamente nestes casos, nos permite sentir a vida. Justamente isso liga a juventude à aventura. O que se chama de subjetividade da juventude é somente isto: a matéria da vida em seu significado objetivo não é para ela tão importante quanto o processo que a conduz, quanto a própria vida. O fato de a velhice ser “objetiva”, o fato de ela formar, a partir dos conteúdos que a vida passada deixou restar de um modo especialmente atemporal, uma composição nova: da contemplatividade, da ponderação objetiva, do que está livre da inquietação com a qual a vida se torna presente – precisamente isto é o que aliena a aventura da velhice, o que faz do velho aventureiro um fenômeno repulsivo e sem estilo; não seria difícil desenvolver toda a essência da aventura pelo fato de ela simplesmente não ser uma forma de vida em conformidade com a velhice.
Todas aquelas determinações e situações da vida que são não só estranhas mas mesmo hostis à sua forma de aventura não impedem que a aventura, em um aspecto mais geral, apareça misturada a toda existência humana prática como elemento encontrado por todo lado, que apenas comparece reiteradamente nas distribuições mais sutis como que macroscopicamente invisível e encoberta por outros elementos no fenômeno. Independente daquela representação que se aproxima da metafísica da vida, segundo a qual nossa existência sobre a terra como totalidade e unidade constitui uma aventura, e visto antes pelo lado puramente concreto e psicológico, cada experiência singular contém alguma quantidade de determinações que em certa medida lhe faculta alcançar o “limiar” da aventura. Dentre estas determinações, a mais essencial e mais profunda neste caso é o apartamento do acontecimento do contexto geral da vida. O fato de pertencer a este contexto não esgota a significação de nenhuma de suas partes. Antes, mesmo onde uma tal parte está mais estreitamente entrelaçada com o todo, onde ela parece estar realmente toda dissolvida no contínuo fluir da vida, como uma palavra não-acentuada no decorrer de uma frase mesmo aí uma percepção refinada permite reconhecer uma valor próprio desta parcela da existência; com uma significação autocentrada, esta parcela contrapõe-se àquele desenvolvimento total, ao qual, visto pelo outro lado, ela pertence inseparavelmente. Tanto a riqueza como a perplexidade da vida procedem inúmeras vezes desta dualidade de valores de seus conteúdos. Vista a partir do centro da personalidade, uma tal experiência constitui tanto algo necessário, desenvolvido a partir da unidade da história individual, como algo casual, estranho a esta unidade, insuperavelmente delimitado e colorido por uma profunda incompreensibilidade, como se esta experiência estivesse em algum lugar no vazio e gravitasse no nada.
Destarte, sobre toda e qualquer experiência há uma sombra daquilo que a aventura realiza em sua concisão e clareza. Uma tal experiência permite que um certo sentimento de inclusividade em um começo e um fim, um sentimento da pontualidade da experiência singular que como tal desconsidera o resto, se afaste de sua incorporação à seqüência da vida. Este sentimento pode tornar-se imperceptível, mas ele está latente em cada experiência e emerge dela, freqüentemente, para nosso próprio espanto. Não se poderia indicar uma experiência, cuja distância da continuidade da vida seja ínfima, na qual não pudesse emergir o sentimento da aventura, nem tampouco uma experiência tão distante dela, na qual este sentimento emergiria necessariamente; não se poderia tornar tudo aventura caso seus elementos não repousassem em alguma medida em tudo, caso eles não pertencessem aos fatores vitais, devido aos quais um acontecimento pode ser designado como experiência humana. O mesmo ocorre com a relação do que é casual com o que é vinculado ao sentido. Em cada sucesso que se nos depara, há tanto de algo simplesmente dado, exterior e eventual, que se reduz somente a uma questão de quantidade saber se a totalidade pode ser considerada algo razoável, algo que possa ser compreendido conforme um sentido, ou se sua indissolubilidade com respeito ao passado e sua incalculabilidade com respeito ao futuro devem determinar a coloração do todo. Entre o empreendimento burguês mais seguro e a aventura mais irracional há uma série contínua de manifestações da vida, nas quais o compreensível e o incompreensível, o provocado e a graça concedida, o calculável e o casual se misturam em uma infinitude de graus. Na medida em que a aventura indica um extremo nesta série, o outro tem também, justamente por isso, uma parcela em seu caráter. A inserção de nossa existência em uma escala, na qual cada marca é simultaneamente determinada por uma atuação de nossa força e por um abandono às coisas e poderes impenetráveis – esta problemática de nossa colocação no mundo que assume uma conotação religiosa na questão insolúvel sobre a liberdade do homem com respeito às determinações divinas – permite que nos tornemos todos aventureiros. No âmbito de nossa circunscrição de vida e de nossas tarefas nela, que definem nossos objetivos e nossos meios, não poderíamos viver sequer um dia, se não tratássemos o incalculável como se fora calculável; se não confiássemos à nossa força o que ela não pode produzir sozinha, mas apenas em sua enigmática atuação conjunta como as forças do destino. Os conteúdos de nossa vida são continuamente compreendidas por formas que se misturam e que deste modo realizam sua totalidade unitária: há por toda parte formação artística, concepção religiosa, coloração de valores morais e reciprocidade de sujeito e objeto. Talvez não haja nenhuma dimensão da corrente deste rio, na qual cada um destes tipos de configuração, e muitos outros ainda, não formariam pelo menos uma gota de suas ondas. Porém, somente quanto elas, a partir da escala e da situação fragmentária e misturada nas quais a vida mediana as deixa submergir e emergir, alcançam um domínio sobre a matéria da vida, elas se tomam formações puras, correspondendo então às denominações da linguagem. Assim que a atmosfera religiosa cria puramente de si sua formação, o Deus, ela vem a ser “religião”; assim que a forma estética faz de seu conteúdo algo de importância secundária, com o que ela vive sua vida baseada somente em si, ela se toma “arte”; somente quando o dever moral é cumprido apenas porque ele é um dever – não importando quão cambiante sejam os conteúdos com os quais ele se preenche e que antes, por seu lado, determinaram a vontade – ele se toma “moralidade”.
Com a aventura não é diferente. Somos os aventureiros da Terra, nossa vida é perpassada a cada passo pelas tensões que constituem a aventura. Apenas quando estas tensões ficam de tal modo violentas, que elas passam a dominar a matéria na qual se perfazem, surge a “aventura”, pois ela não se baseia nos conteúdos, que com ela são ganhos ou perdidos, desfrutados ou sofridos: tudo isto nos é acessível também em outras formas de vida. Antes, o fato de o radicalismo estar ali, radicalismo pelo qual ela é sentida como tensão da vida, mudança de ritmo do processo de vida, independente de sua matéria e de suas diferenças; o fato de a quantidade destas tensões ser grande o suficiente para a vida arrancar-se daquela matéria – isto faz da mera experiência uma aventura. Ela é decerto apenas uma parte da existência, paralela a tantas outras, pertencente porém àquelas formas que – além de sua mera participação na vida e além de toda casualidade de seus conteúdos específicos – possuem a força misteriosa de deixar a totalidade da vida ser sentida em um instante. Instante no qual a vida se perfaz e que constitui um suporte que estaria ali apenas para sua realização.

Georg Simmel