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A revolta


trechos de Albert Camus


“A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar. (…) Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual é o significado deste ‘não’?
Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não’; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você quer ultrapassar’. (…) Encontra-se a mesma idéia de limite no sentimento do revoltado de que o outro ‘exagera’, que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o delimita. Desta forma, o movimento de revolta apóia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele ‘tem o direito de…’. A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão. (…) Ele [o revoltado] demonstra, com obstinação, que traz em si algo que ‘vale a pena’ e que deve ser levado em conta. De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito de não ser oprimido além daquilo que pode admitir.
O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é preferível ao que não o é. Nem todo valor acarreta a revolta, mas todo movimento de revolta invoca tacitamente um valor. (…) Segundo os bons autores, o valor ‘representa, na maioria das vezes, uma passagem do fato ao direito, do desejado ao desejável (em geral, por meio do geralmente desejado)’ (Lalande, Vocabulário Filosófico). A revolta passa do ‘seria necessário que assim fosse’ ao ‘quero que assim seja’, mas talvez, mais ainda, a essa noção de superação do indivíduo para um bem doravante comum. O surgimento do Tudo ou Nada mostra que a revolta, contrariamente à voz corrente, e apesar de oriunda daquilo que o homem tem de mais estritamente individual, questiona a própria noção de indivíduo. Se com efeito o indivíduo aceita morrer, e morre quando surge a ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isso que se sacrifica em prol de um bem que julga transcender o seu próprio destino.”
Nunca é demais insistir na afirmação apaixonada subjacente ao movimento de revolta e que o distingue do ressentimento. Aparentemente negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva, porque revela aquilo que no homem sempre deve ser defendido. (…) Um escravo grego, um vassalo, um condottiere do Renascimento, um burguês parisiente da Regência, um intelectual russo de 1900 e um operário contemporâneo, mesmo divergindo quanto às razões da revolta, concordariam, sem dúvida, quanto à sua legitimidade.“A revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é um outro. Existe portanto, neste caso, identificação com outro indivíduo. E é necessário deixar claro que não se trata de uma identificação psicológica, subterfúgio pelo qual o indivíduo sentiria na imaginação que é a ele que se dirige a ofensa. Pode ocorrer, pelo contrário, que não se consiga ver infligir a outros ofensas que nós mesmos temos sofrido sem revolta. Os suicídios de protesto, no cárcere, entre os terroristas russos cujos companheiros eram chicoteados ilustram esse grande movimento. Não se trata tampouco do sentimento da comunhão de interesses. Na verdade, podemos achar revoltante a injustiça imposta a homens que consideramos adversários. (…) Na revolta, o homem se transcende no outro.
Poder-se-ia ainda ser mais explícito e observar, com Scheler, que o espírito de revolta dificilmente se exprime nas sociedades em que as desigualdades são muito grandes (regime hindu de castas) ou, pelo contrário, naquelas em que a igualdade é absoluta (certas sociedades primitivas). Em sociedade, o espírito de revolta só é possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encontra grandes desigualdades de fato. (…) A revolta é o ato do homem informado, que tem consciência de seus direitos. Mas nada nos autoriza a dizer que se trata apenas dos direitos do indivíduo. Pelo contrário, parece que, pela solidariedade, trata-se de uma consciência cada vez mais ampla que a espécie humana toma de si mesma ao longo de sua aventura.
O homem revoltado é o homem situado antes ou depois do sagrado e dedicado a reivindicar uma ordem humana em que todas as respostas sejam humanas, isto é, formuladas racionalmente. A partir desse momento, qualquer pergunta, qualquer palavra é revolta, enquanto, no mundo do sagrado, toda palavra é ação de graças. (…) A atualidade do problema da revolta depende apenas do fato de sociedades inteiras desejarem manter hoje em dia uma distância em relação ao sagrado. Vivemos em uma sociedade dessacralizada. (…) A história atual, por suas contestações, obriga-nos a dizer que a revolta é uma das dimensões essenciais do homem. Ela é a nossa realidade histórica. (…) Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta? Esta é a pergunta formulada pela revolta.
Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do momento da revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. (…) O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos.”



A Hipótese Comunista (trechos)



por Alain Badiou 
O que é decisivo, em 1º lugar, é manter a hipótese histórica de um mundo livre da lei do lucro e do interesse privado. Enquanto estivermos sujeitos, na ordem das representações intelectuais, à convicção de que não podemos acabar com isso, que essa é a lei do mundo, nenhuma política de emancipação será possível. (…) É exatamente isso que o mundo exige de nós hoje: aceitar a corrupção generalizada dos espíritos, sob o jugo da mercadoria e do dinheiro. Contra isso, a principal virtude política hoje é a coragem. Devemos ter convicção de que ter uma grande ideia não é nem ridículo nem criminoso. [...] Hoje, pessoas demais acreditam que viver para elas mesmas, para seus próprios interesses, é inelutável. Devemos ter a coragem de nos distinguir dessas pessoas. (pg. 39-41)
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A crise planetária das finanças, tal como apresentada, parece um desses filmes porcarias inventados pela fábrica de sucessos pré-moldados que hoje se chama “cinema”. (…) Em toda parte, o mesmo incêndio nos mesmos bancos… tudo desmorona, tudo vai desmoronar… Mas ainda há uma esperança: na frente do palco, assustados e consternados como num filme catástrofe, o pequeno esquadrão de poderosos, os bombeiros do incêndio monetário, injetam no Buraco Central milhares de milhões. Mais tarde, todos se perguntarão (isso é para futuras novelas) de onde saiu todo esse dinheiro, já que, ao menor pedido dos pobres, eles reviram os bolsos e respondem há anos que não têm um tostão furado.
“SALVAR OS BANCOS!” – esse nobre brado humanista e democrático brota de todos os peitos políticos e midiáticos. Números astronômicos – “1.400 bilhões de euros…” – são injetados por governos para resgatar os banqueiros. Os espectadores desse show, a multidão atordoada que, vagamente preocupada, compreendendo pouca coisa, totalmente desconectada de qualquer engajamento ativo nessas circunstâncias, entende como uma algazarra distante o grito dos bancos em situação desesperada. Vê passar os números astronômicos e obscuros, e mecanicamente os compara a seus próprios recursos – ou, no caso de parte considerável da humanidade, à pura e simples falta de recursos que é o fundo amargo e corajoso de sua vida.
O capitalismo financeiro é – desde sempre, o que nesse caso quer dizer cinco séculos – uma peça constitutiva, central, do capitalismo em geral. (…) O capitalismo é apenas banditismo, irracional em sua essência e devastador em seu devir. Sempre nos fez pagar umas poucas décadas de prosperidade ferozmente desigualitária com crises em que quantidades astronômicas de dinheiro desaparecem, com expedições punitivas sangrentas em todas as zonas que ele considera estratégicas ou ameaçadoras e com guerras mundiais com que ele refaz as energias.
Ainda ousam nos gabar um sistema que remete a organização da vida coletiva às pulsões mais baixas, à ganância, à rivalidade, ao egoísmo mecânico? Querem que elogiemos uma “democracia” em que os dirigentes são impunemente os empregados da apropriação financeira privada que surpreenderiam até mesmo Marx, que há 160 anos já chamava os governos de “fundos de poder do capital”? Querem a todo custo que o cidadão comum “compreenda” que é impossível tapar o buraco da Previdência, mas que eles devem tapar o buraco dos bancos sem contar os bilhões?
De onde vem toda essa fantasmagoria financeira? Simplesmente do fato de que venderam à força, acenando com créditos milagrosos, casas encantadoras a pessoas que não tinham absolutamente nenhum recurso para comprá-las. Em seguida, venderam promessas de reembolso a essas mesmas pessoas… Bastou que o mercado imobiliário mudasse, e os credores querendo mais, os compradores conseguissem cada vez menos pagar suas dívidas. À primeira vista, o jogo empatou: o especulador perdeu a aposta e os compradores perderam suas casas, das quais foram gentilmente expulsos. Contudo, como sempre, o real desse empate está do lado do coletivo, da vida do dia a dia: tudo procede do fato de que existem milhões de pessoas cujo salário, ou ausência de salário, faz com que elas não tenham mais onde morar. A essência real da crise financeira é uma crise de moradia. E aqueles que não tem mais onde morar não são os banqueiros… ( pg. 57-58)
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É preciso derrubar o velho veredito que diz que chegamos ao “fim das ideologias”. Ao espetáculo pernicioso do capitalismo, opomos o real dos povos. A razão para a emancipação da humanidade não perdeu sua força. A palavra “comunismo”, que durante muito tempo deu nome a essa força, foi aviltada e prostituída. Mas hoje seu desaparecimento serve apenas aos detentores da ordem, aos atores febris do filme catástrofe. Vamos ressuscitá-la em sua nova clareza. Que é também sua antiga virtude, quando Marx diz que o comunismo é a ruptura, “do modo mais radical, com as ideais tradicionais” e faz surgir “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (MARX & ENGELS, Manifesto Comunista, Boitempo, 1999, p. 57 e 59)
O comunismo: uma promessa de emancipação universal que se sustenta em três séculos de filosofia crítica, internacionalista e laica, empenha os recursos da ciência e mobiliza, em pleno coração das metrópoles industriais, tanto o entusiasmo dos operários quanto o dos intelectuais.
Aliás, os genocídios e matanças coloniais, os milhões de mortos das guerras civis e mundiais pelos quais nosso Ocidente forjou seu poder, não poderiam muito bem desqualificar os regimes parlamentares da Europa e da América, eles, que só vaticinam contra o totalitarismo acocorados sobre montanhas de vítimas? (pg. 8)

A imposição do modelo americano e seus efeitos




por Pierre Bourdieu
“As políticas econômicas aplicadas em todos os países da Europa, e que as grandes instâncias internacionais – Banco Mundial, OMC e FMI – impõe por toda a parte no mundo, invocam a autoridade da ciência econômica. De fato, elas se baseiam em um conjunto de pressupostos ético-políticos inscritos em uma tradição histórica particular, encarnada atualmente pelos Estados Unidos da América. (…) A economia que o discurso neoliberal constitui como modelo deve um certo número de suas características, pretensamente universais, ao fato de que está incrustada em uma sociedade particular.
 Não se pode criticar esse modelo [neoliberal] sem criticar os Estados Unidos, que são sua forma prototípica, paradigmática: [Os EUA é uma] sociedade paradoxal que, muito avançada econômica e cientificamente, é bastante atrasada social e politicamente. Mencionaria, entre outros indícios, um conjunto de fatos convergentes:
O monopólio da violência física é muito mal gerido em razão da ampla difusão de armas de fogo: a existência de um lobby dos defensores do direito a possuir armas, a National Rifle Association – NRA – assim como o contingente de detentores de armas de fogo – 70 milhões – e de mortos a bala – 30.000 por ano em média – são indícios de uma tolerância instituída da violência privada sem equivalente nos países avançados.
 O Estado desertou de qualquer função econômica, vendendo as empresas que possuía, convertendo seus bens públicos como a saúde, a habitação, a segurança, a educação e a cultura (livros, filmes, televisão e rádio) em bens comerciais, e os usuários em clientes, renunciando a seu poder de fazer a desigualdade recuar (ela tende a crescer de maneira descontrolada).
 Tudo isso em nome da velha tradição liberal de self help (herdada da crença calvinista de que Deus ajuda aqueles que ajudam a si próprios) e da exaltação conservadora da responsabilidade individual – que leva por exemplo a imputar o desemprego ou o fracasso econômico em primeiro lugar aos próprios indivíduos, e não à ordem social. Através da noção equívoca de employability, exige de cada agente individual, como observa Franz Schultheis, que se coloque ele próprio no mercado, fazendo-se de certa maneira empresário de si mesmo, tratado como capital humano, o que tem como consequência redobrar, por uma espécie de culpa, a miséria daqueles rejeitados pelo mercado…
 O culto do indivíduo e do “individualismo”, fundamento de todo o pensamento econômico neoliberal… não quer e não pode conhecer senão as ações ciente e conscientemente calculadas de agentes isolados, visandos fins individuais e egoístas. Quanto às ações coletivas, como as organizadas pelas instâncias de representação (partidos, sindicatos ou associações), e também pelo Estado, instância encarregada de elaborar e impor a consciência e a vontade coletivas e de contribuir para favorecer o fortalecimento da solidariedade, [a doutrina neoliberal] tende a reduzi-las a simples agregações de ações individuais isoladas. Ao fazer isso, ela exclui de fato a política, reduzida a uma soma de atos individuais que, realizados, como o voto, no isolamento e no segredo da cabine, são o equivalente exato do ato solitário da compra em um supermercado.”

Considerações em torno do ato de estudar



    por Paulo Freire
 Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então a intenção fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Essa intenção fundamental de quem faz a bibliografia exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere, deve saber o que está sugerido e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não só a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica sistemática. Exige disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”[1] não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda.
Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:
a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticamente”, procurando apenas memorizas as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões do conhecimento. Estudar é uma forma de uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quando, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em sua interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve-se separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.
b) Que o ato de estudar, no fundo é uma atitude frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a pratica é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro das idéias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”.[2]
Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem as registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas idéias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.
c) Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude.
d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.
e) Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, as vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.

Aforismos



“No fundo, todo homem sabe muito bem que ele, como unicum (único), está no mundo apenas uma vez, e que nenhum acaso tão curioso misturará pela segunda vez, numa unidade como ele, tão admirável e colorida variedade.”
“Ninguém pode construir para ti a ponte sobre a qual precisamente tu tens de passar sobre o rio da vida, ninguém além de ti mesmo. Decerto que há inumeráveis atalhos e pontes e semideuses que te querem carregar através do rio; mas apenas ao preço de ti mesmo; tu te darias em penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho que ninguém pode trilhar além de ti: para onde conduz ele? Não perguntes, prossegue. Um homem jamais se eleva mais alto do que quando não sabe para onde seu caminho ainda o pode conduzir.”
“O que, até agora, verdadeiramente amaste, o que atraiu tua alma, o que a dominou e ao mesmo tempo a felicitou? Coloca diante de ti a série desse venerados objetos, e talvez eles te proporcionem, por sua essência e sucessão, uma lei fundamental própria de ti mesmo. Compara esses objetos, vê como um complementa, alarga, sobrepuja, transfigura o outro, como eles formam uma escada, sobre a qual tu agora te elevaste para ti mesmo; pois tua verdadeira essência não jaz profundamente oculta em ti, mas imensamente acima de ti…”
F. NIETZSCHE (1844-1900)

Praxis



Nessas circunstancias, deveríamos ser especialmente cuidadosos para nao confundir a ideologia dominante com a ideologia que parece dominar. Mais do que nunca, deveríamos ter em mente o lembrete de Walter Benjamin de que nao basta perguntar como uma certa teoria ( ou arte) se posiciona perante as lutas sociais - deveríamos perguntar também como, na pratica, ela funcionas dentro dessas lutas. 

Realmente, como o funcionamento "normal" do capitalismo envolve algum tipo de negacao do principio basico de seu funcionamento ( o capitalista-modelo atual eh alguem que, apos implacavelmente gerar lucro, generosamente o compartilha, fazendo grandes doações a igrejas, a vitimas de abuso etnico ou sxual, etc., posando de humanitario), o mais alto gesto de transgressão eh afirmar esse principio diretamente, privando-o de sua mascara humanitária  Estou, portanto, tentando inverter a tese 11 de Marx: a primeira tarefa da atualidade e precisamente nao sucumbir a tentação de agir, de intervir diretamente e mudar as coisas (que inevitavelmente termina num beco sem saida de debilitante impossibilidade: " Que podemos fazem contra o capital global ?") mas questionar as coordenadas ideologias hegemônicas. Em suma, nosso momento histórico eh ainda o de Adorno:

A questão "o que fazer?", quase sempre so posso responder com certeza que "nao sei". Apenas posso tentar analisar rigorosamente o que existe. Nesse sentido, alguns me contestam: quando você pratica a critica, esta também obrigando a dizer como fazer melhor. Para mim isso eh sem duvida um preconceito burguês  Muitas vezes, na historia, obras que buscavam objetivos puramente teóricos transformaram a consciência, e, consequentemente, também a realidade social. (Theodor Adorno, Vermischte Schriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1997, p. 404)

A história secreta da renúncia de Bento XVI



Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama “uma continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um informe elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de dinheiro. O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas. 


Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno. 

O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da verdade”. Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha ideia é trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica. 

A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar. 

Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo. 

Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual. 

Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época. 

João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus. 

Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por supostas “irregularidades” em sua gestão. Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários, construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas. 

Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa. 

Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema. 

Depois da “formação” - Cultura e política da nova modernização



por Marcos Nobre
Tinha um caminho no meio da pedra. Ou pelo menos assim se pensou e agiu durante muito tempo, dos anos 30 à década de 80. As dúvidas ficaram no mais das vezes por conta da poesia.
A engenharia que traçou esse caminho pode ser resumida mais ou menos assim: desde 1822, o país tinha conquistado sua independência formal, mas não tinha se constituído efetivamente em nação – em unidade de território, população e soberania que se expressa em uma cultura própria e autêntica. O déficit teria se agravado ainda mais com a continuada exclusão de quem legitimamente reivindicava cidadania plena, quer dizer, depois da abolição da escravatura, das sucessivas ondas imigratórias em massa (especialmente relevantes no período entre 1890 e 1930), da visibilidade inédita dos povos indígenas (cujos “direitos” apareceram na Constituição de 1934), e de uma população e de um proletariado urbanos de importância. Nesse diagnóstico, a Primeira República – não obstante as greves gerais, as ações da vanguarda modernista e os levantes tenentistas – não tinha sido mais do que um acordo de elites, sem nenhum interesse efetivo na realização desse projeto nacional.
Entre muitas razões, também porque a produção da nacionalidade dependia fundamentalmente de um desenvolvimento o quanto possível autônomo, da criação de um mercado interno de relevo, capaz de mitigar e eventualmente superar a condição de completa subordinação que caracteriza um país cuja economia está fundada unicamente na exportação de bens primários. Coisa que era justamente o ganha-pão da política do café com leite da Primeira República. Política esta, para completar o quadro de crise generalizada, que tinha sido minada em suas bases pela depressão iniciada em 1929 e nem precisou aguardar os bloqueios de circulação de mercadorias impostos pela Segunda Guerra Mundial para receber seu golpe de misericórdia.
 Ao longo dos anos 30, foi se firmando (por variadas razões) um modelo de desenvolvimento e de construção da nacionalidade que, durante décadas, foi sinônimo de “moderno” e de “modernidade”; um projeto de moderni-zação do país que se convencionou chamar de “nacional-desenvolvimentismo”. Nesse projeto, “modernização” significava, de um lado, o combate às diferentes formas de “arcaísmo” e, de outro, a criação das condições para a emergência da nação em sentido autêntico. Foi longa a hegemonia da oposição entre “arcaico” e “moderno”, e ela moldou como nenhuma outra a autocompreensão do país.
Publicados depois de pelo menos vinte anos de vigência do nacional--desenvolvimentismo e em ambiente de incipiente mas existente democracia, Formação da Literatura Brasileira (1957), de Antonio Candido, e Formação Econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, já apresentavam um grau de complexidade muito superior ao fornecido pelo par antitético original “arcaico” e “moderno”. Tratava-se, ali, de recolocar os problemas em termos de um vínculo interno entre “nacional-desenvolvimentismo” e “democracia”, entre modernização e justiça social. Sua característica marcante foi reconstruir a história do país como estações de um processo de formação em curso, já parcialmente realizado, cujo sentido permitiria, por sua vez, delinear tendências de desenvolvimento e mesmo de continuidade. É assim que, nesses dois livros, a ênfase recai não sobre o diagnóstico dos “arcaísmos”, mas sobre a lenta, porém progressiva, cristalização de instituições sociais que representavam realizações, mesmo que parciais e incompletas, do “moderno brasileiro” (numa palavra: o “sistema literário”, para  Candido; o “mercado interno”, para  Furtado).
Uma tal positividade e progressividade não poderia mais ser sustentada nesses termos depois do golpe militar de 1964, muito menos em pleno “milagre econômico” da década de 70. A partir daí, passou a ser necessário entender como era possível que a acelerada modernização de então fosse realizada por forças políticas autoritárias. É certo que, segundo o paradigma da “formação”, a “modernização” dos militares não era uma autêntica modernização. Mas, não obstante, era preciso entender em sua estrutura o sentido de uma modernização capaz de suprimir o vínculo com a democracia. Em outros termos: era necessário abandonar a perspectiva por demais “positiva” dos pensadores de referência do paradigma da “formação” e produzir um novo diagnóstico, ainda mais complexo e, sobretudo, permeado por uma “negatividade” que ficou em segundo plano nos modelos originais de Candido e Furtado.

oi justamente nesse seu momento de “autocrítica”, nesse seu momento “reflexivo”, em que se volta sobre si mesmo, que o paradigma da “formação” firmou sua hegemonia intelectual no campo do nacional-desenvolvimentismo democrático. Teve nisso grande destaque o grupo reunido em torno do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado em 1969 e sediado em São Paulo. O destaque se deve, em grande medida, ao fato de o Cebrap ter sido provavelmente o único consórcio intelectual que a ditadura militar não conseguiu desmantelar, razão pela qual acorreram para lá jovens pensadores de todas as partes do país. Incluindo aquele que produziu o texto emblemático desse “momento reflexivo” do paradigma da “formação”: Francisco de Oliveira e seu Crítica à Razão Dualista (ensaio de 1972, publicado em livro em 1981).

Fernando Henrique Cardoso já tinha mostrado cinco anos antes (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de 1967, escrito em parceria com Enzo Faletto) que a opção por um desenvolvimento “dependente associado” se apresentava como um entrave estrutural, impondo severas limitações às pretensões do projeto de desenvolvimento autônomo e soberano do nacional-desenvolvimentismo (a não ser na hipótese de uma revolução socialista). Francisco de Oliveira foi além: mostrou que esse é apenas um caso de uma gramática do desenvolvimento em que “arcaico” e “moderno” não estão em oposição, mas amalgamados: longe de se oporem, imbricam-se de maneira necessária, o que, não por último, mostra o caráter ideológico da sua própria lógica dualista.
Coube, ao que se chama burocraticamente de crítica literária, a Roberto Schwarz, em seu breve ensaio “As ideias fora do lugar” (de 1973, recolhido no livro Ao Vencedor as Batatas, de 1977), dar indicações de como o movimento ideológico identificado por Francisco de Oliveira poderia ser pensado em um quadro sistemático ainda mais amplo. Tratava-se ainda apenas de indicações, já que o texto tinha marcado caráter de esboço. Mas era certeiro ao indicar que não apenas “moderno” e “arcaico” se encontram amalgamados, que não apenas o dualismo desse par conceitual é ideológico: indicava que o “moderno”, ele mesmo, serve de legitimação ideológica para o “atraso”,ao qual se imbrica necessariamente. Ou seja, o “moderno”, tal como se apre-senta no abstrato e etéreo modelo europeu importado, não é efetiva alavanca de progresso, não serve à modernização autêntica que o paradigma da formação tem em vista. Entretanto, essas modernas “ideias fora do lugar” cumprem papel fundamental na lógica de dominação periférica, isto é, estão, de fato, em seu devido lugar. O “moderno” sanciona uma forma de dominação na qual sua promessa de realização é uma quimera e, no limite, deboche.
Mas esse momento de maturidade intelectual, expresso nas obras de Oliveira e Schwarz, coincidiu, também, com mudanças estruturais do capitalismo que simplesmente inviabilizaram a continuidade de qualquer projeto de tipo nacional-desenvolvimentista. Entre outras coisas, porque esse projeto político dependia de um padrão tecnológico de produção relativamente estável nos países centrais e do poderio de um Estado indutor do desenvolvimento, dois pilares minados pela revolução da microeletrônica e pela crise de crédito de fins da década de 70, respectivamente.
Um projeto de desenvolvimento em situação de subdesenvolvimento não afastava a necessidade de atualização tecnológica permanente, mesmo que fosse uma atualização retardada, na comparação com os países centrais. O que garantia essa atualização retardada era, de um lado, o fato de que ela se dava em patamares meramente incrementais de inovação, e, de outro, na capacidade de financiamento e de investimento do Estado. Foram essas condições que desapareceram já no início dos anos 80.
Mais do que isso, essas mudanças estruturais coincidem, no caso do Brasil, com a saída da ditadura e a redemocratização do país. A conjunção desses dois movimentos tectônicos tornou caduco não apenas o paradigma da “formação”: tornou inviável qualquer ideia de “projeto de país” nos termos em que o nacional-desenvolvimentismo (em suas variadas formas) cunhou a expressão. Pois, em condições democráticas, um “projeto de país” – ou um padrão de desenvolvimento – é o resultado de uma ampla luta social e política, travada ao longo de décadas, dentro e fora do poder de Estado, conflito moldado por diferentes correlações de forças e por diferentes constelações hegemônicas.
 Não obstante, apesar de seu longo declínio, o paradigma da “formação” produziu obras tardias de impacto, como foi o caso de Um Mestre na Periferia do Capitalismo (1990), de Roberto Schwarz. A partir dos anos 90, o paradigma passou a ter em Paulo Arantes seu teórico de referência e encontrou em O Ornitorrinco( 2003), de Francisco de Oliveira, aquele que talvez seja o caso exemplar de sua configuração atual.

ajuste às novas condições mundiais veio definitivamente com o Plano Real – destinado não apenas a controlar a inflação e produzir estabilidade econômica em sentido amplo, mas também a estabelecer um bloco hegemônico no poder, capaz de superar a paralisia do sistema político. Um dos primeiros movimentos de então foi a significativa abertura econômica, tanto para consumo como para investimento. O Plano Real, entretanto, não foi um “projeto de país” nos moldes do anterior, nacional-desenvolvimentista. Foi antes, e em primeira linha, o desmonte das instituições nacional-desenvolvimentistas e, paulatinamente, a produção de instituições “flexíveis”, capazes de se ajustar às condições cambiantes do novo sistema econômico mundial.

A partir de meados da década de 90, os sucessivos governos se empenharam na construção de estratégias defensivas em momentos de crise econômica e no aproveitamento de oportunidades de crescimento em momentos favoráveis do cenário internacional. A nova lógica da integração econômica já não segue o padrão inter-nacional: os Estados Nacionais são “atores” decisivos, certamente; mas o mero fato de passarem a ser designados como “atores” (entre outros, portanto) já mostra muito da mudança estrutural ocorrida, dificilmente pensável até a década de 80. Se a conversa de que “não há mais centro nem periferia” desempenha papel ideológico nada desprezível, também ela, como todo dispositivo ideológico, tem seu momento de verdade: a subordinação já não se organiza mais primordialmente em termos de nações, países ou Estados.
Essa reviravolta estrutural foi registrada em primeira mão em termos teóricos em dois dos mais instigantes livros da segunda metade da década de 90. Em A Forma Difícil: Ensaios sobre Arte Brasileira (1996), Rodrigo Naves dá pistas importantes sobre o esgotamento do paradigma da “formação”. E faz isso, significativamente, em terreno explorado até então de maneira apenas episódica e irregular: o da crítica e da história da arte. Ou seja, naquela que é, talvez, a mais tardia das disciplinas universitárias a se consolidar no país, surge uma constelação que não apenas escapa ao paradigma da formação, mas produz algo como a sua crítica interna. O que é, por sua vez, compatível com uma produção em artes plásticas que “ao menos até meados da década de 70 – talvez com exceção do período do barroco mineiro – foi de fato irregular e esparsa, dificultando por ela mesma a constituição de um meio mais rigoroso e enriquecedor”, como registra Naves.
Nesse livro, é a própria “forma” – aquela mesma da “formação” – que se tornou “difícil”. Traduzindo as análises de Naves para a periodização apresentada aqui, é possível dizer que toda a arte moderna brasileira até a década de 80 reproduz, de variadas maneiras, o desafio nacional-desenvolvimentista segundo uma gramática artística da “dificuldade de forma” – que pode ser um “ideal meigo”, em artistas como Volpi e Guignard, ou uma “plenitude drástica”, como em Hélio Oiticica e Lygia Clark. Ou seja, mesmo se a melhor arte nunca se joga sem reservas no projeto da “formação”, é ele o seu pano de fundo incontornável. Não é acaso, portanto, que Naves tenha visto nos quadros de Iberê Camargo da década de 80, no momento de crise estrutural do nacional-desenvolvimentismo, o ponto de transição fundamental entre a “relutância formal” própria do modernismo brasileiro e sua já nova condição – a da “forma difícil”, transição gravada no “expressionismo paradoxal” desse artista e que encontrou seu emblema na escultura de Amílcar de Castro.
Essa mudança estrutural ficou gravada também em outro livro de exceção, que pertence, ao contrário do primeiro, a uma das disciplinas universitárias de consolidação mais antiga: a história. Em O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul (2000), Luiz Felipe de Alencastro desliga a ideia de formação da ideia-força da “nacionalidade”, com seu vínculo pretensamente intrínseco a um determinado território, a uma determinada população e a uma forma específica e exclusiva de soberania. Se a “formação” está ainda estampada no subtítulo do livro, Alencastro nos mostra, entretanto, que “o Brasil se formou fora do Brasil”, em um espaço transcontinental, sul-atlântico. Não por acaso, a variável determinante dessa formação fora do espaço territorial – a reprodução ampliada da força de trabalho – só passa a ocorrer “inteiramente no interior do território nacional”, segundo Alencastro, nos “anos 30-40”. Ou, nos termos da interpretação que se propõe aqui, coincide com o momento em que se cristalizou o “nacional-desenvolvimentismo”. Na situação de hoje, a relação umbilical entre o “dentro” e o “fora” volta a se mostrar, sob nova configuração, como determinante da formação do país. Ou seja, como quer se tome a partir de agora a “formação”, ela já não pode ter o sentido que lhe deram Antonio Candido ou Celso Furtado.
Entretanto, a longa hegemonia do nacional-desenvolvimentismo – e, no seu interior, do paradigma da “formação” em particular – produziu algo como um “carecimento de um projeto de país” exposto em seu conjunto; e o não preenchimento dessa falta não faz senão reforçar a própria lógica do carecimento. Dito em uma frase, no momento em que as condições para a produção de um sucedâneo do nacional-desenvolvimentismo estão inteiramente ausentes, a continuidade da defesa (implícita ou explícita) do paradigma da “formação” cumpre uma função primordialmente ideológica – e retrógrada.

sobrevida do paradigma da “formação” é solidária, por outro lado, de sua necessária contrapartida ideológica “neomoderna”, consubstanciada nos novos paradigmas que se infiltraram pela “abertura teórica” que correspondeu à abertura econômica de meados dos anos 90. Também aqui, mais uma vez a conjunção de linhas de força históricas não foi favorável, já que o momento de estabilização e de abertura da economia brasileira coincide com um dos mais poderosos massacres ideológicos de que se tem notícia, um vagalhão que se costuma chamar de “neoliberal” e que varreu o planeta de cabo a rabo.

O momento de “abertura teórica” brasileiro na segunda metade dos anos 90 coincide com a esmagadora hegemonia de um aggiornamento das teorias tradicionais da modernização segundo o metro neoliberal. Em um período em que instituições como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial tiveram enorme protagonismo, variados cardápios de “reformas estruturais” foram propostos e impostos sob forma de “teorias da globalização”, incluindo receitas de desregulação de mercados, desenvolvimento de “vocações regionais”, currency board e mesmo caricaturas sintomáticas, como foi o caso do então chamado “Consenso de Washington”. A face mais “elevada” desse movimento se materializou na hegemonia de um determinado “cosmopolitismo” que, não por acaso, encontrou naquele momento a sua expressão mais saliente no projeto de uma “ampla reforma da ONU” e na ideia da “terceira via”.
As tentativas de contra-arrestar esse novo alinhamento ideológico não ficaram atrás em termos de crueza e superficialidade. Variaram do voluntarismo pop-bolchevique de Žižek ao esquerdismo filológico de Agamben. Encontraram seu ápice ao longo (e por causa) do sinistro governo de George W. Bush e com ele declinaram – da mesma forma, aliás, como o próprio “cosmopolitismo”, que perdeu o lustro dos anos 90. Ainda assim, prolongamentos dessas posições encontram até hoje ressonância e público. E, como não são poucos os paradoxos nacionais, são posições que costumam ser reivindicadas pelo caduco, mas ainda vivo paradigma da “formação”.

mbos os lados da medalha ideológica respondem também a uma nova “lógica de redes” que se impôs a partir daí como princípio organizador da produção cultural em geral e do conhecimento acadêmico universitário em particular. Sem prejuízo da sua perfeita compatibilidade ideológica com a imposição de uma agenda externa aceita de maneira quase sempre acrítica, essa reorganização não é passageira. Ou seja, mesmo que a agenda teórica conservadora dos anos 90 tenha perdido força após a crise econômica mundial iniciada em 2007-2008, a lógica de redes veio para ficar.

A rede se compõe de pontos que podem estar em qualquer parte do planeta ou do mundo virtual. Pontos que podem ser movimentos sociais, empresas, Estados, indivíduos, e que são tanto mais ricos quanto mais numerosas forem suas conexões. São pontos que não estão em uma cultura específica, em uma universidade, em um país, em uma nação; estão em algum lugar de uma rede que eles têm de construir por si mesmos para alcançar consagração. Não constroem um país à medida que produzem bens, cultura, ações, conhecimento; estão construindo uma rede.
A partir da década de 90, o debate brasileiro passa a se estruturar segundo a alternativa entre um paradigma da “formação” caduco e um neomodernismo internacional acrítico, sendo que ambos os termos da alternativa se organizam hoje segundo a específica “lógica de redes” em vigor. Trata-se de uma alternativa que esteriliza e emperra o debate público. Destravar o debate e deixar para trás essa alternativa estéril significa hoje formar redes que não fiquem à mercê de pautas teóricas e políticas provenientes de uma agenda neomodernizadora que perdeu sua hegemonia nem se aferrem ao saudosismo do que não foi, a um “projeto de país” que não tem mais qualquer base real para se efetivar.
Mas, se já não é mais da “formação da nação”, com sua unidade e homogeneidade, que se trata, é do sedimento virtuoso de seus desenvolvimentos intelectuais e políticos a partir da década de 50 que se deve alimentar essa nova prática crítica de compreensão do momento atual. E esse sedimento virtuoso não pode ser outro senão o da união dos dois momentos fundamentais do paradigma da “formação” em novo patamar. Não se constrói um país decente fazendo terra arrasada, mas reconhecendo uma série de pequenos avanços ao longo de décadas. O projeto da “formação” se ancorou em processos sociais e históricos reais, e não na tábula rasa das pranchetas planejadoras.
Ao mesmo tempo, sem deixar de lado a positividade e o sentido progressista próprios dessas primeiras formulações, o momento “reflexivo” do paradigma da “formação”, nos anos 60 e 70, insistiu na negatividade que também deve necessariamente lhe pertencer, afiando o gume crítico. E, como no caso do momento anterior, com uma originalidade de amplas conse-quências: formulou esse “negativo” e essa “negatividade” não como faltaou como carência, mas em termos de elementos constitutivos de uma modernização forçada em condições de subdesenvolvimento.
O fato de a situação atual não ser mais, nem de longe, aquela da regulação internacional que prevaleceu até os anos 80, abre justamente as brechas por onde podem se infiltrar redes de tipo inteiramente novo, capazes de preservar o potencial crítico que um dia teve o paradigma da “formação”. Um capitalismo hoje pela primeira vez planetário ainda parece longe de encontrar (se é que encontrará) um novo ponto de equilíbrio (mesmo que instável) entre economia e política, como se viu em pelo menos dois distintos momentos do cenário mundial pós-1945. Ao mesmo tempo, e ao contrário da década de 90, estão vigorosamente abalados os padrões de modernização que, em situações de relativo equilíbrio, são impostos sem mais aos países periféricos. Por último, mas não menos importante, o desequilíbrio do momento atual se reflete também em uma correlação de forças nova, na qual o vínculo tradicional entre “centro” e “periferia” mudou de caráter.

sse é o momento de reconhecer que o Brasil é hoje uma combinação de subordinação (a um capitalismo mundial bastante instável e desorganizado) e de inédita autonomia decisória (em que ao menos a margem de manobra é a mais ampla de que já se dispôs). De certa maneira, não somos a realização nem do sonho nem do pesadelo do projeto “nacional--desenvolvimentista”, mas uma combinação de ambos. Entretanto – e isso é o decisivo –, a proporção em que se dá a cada vez a composição dos dois elementos não é mais obra primordial de Estados, mas de alianças de diferentes forças políticas e econômicas que se organizam em rede, nas quais Estados são um dos componentes. Dependem, portanto, de correlações de forças mais amplas e mais capilarizadas, que não se explicam sem mais nem por um determinismo econômico nem por uma primazia da política.

Com a crise das receitas tradicionais de modernização, em um ambiente de relativo desequilíbrio do capitalismo mundial, um certo padrão de modernização está sendo efetivamente gestado e implementado à brasileira – e não somente dentro do território e das fronteiras nacionais, basta olhar para alguns países da África e da América Latina. E essa nova “realidade brasileira” – exemplarmente presente nos debates sobre a chamada “nova classe média” – está sendo produzida sem discussão pública e sem elaboração teórica minimamente satisfatórias. As explicações disponíveis não conseguem alcançar esse novo padrão de modernização, limitadas que estão por paradigmas obsoletos, fixados seja na construção da “nacionalidade”, seja em modelos de sociedade a copiar, que existem apenas nos manuais.
Enquanto não formos capazes de deixar para trás velhos fantasmas teóricos e práticos, os processos reais vão continuar opacos, bloqueando tanto o efetivo exercício da inteligência e da crítica em relação à nova modernização como o conflito aberto e produtivo em torno da maneira mais progressista de utilizar a margem de manobra inédita de que dispomos. O destravamento da inteligência e da crítica só virá com o reconhecimento de que um processo de “formação” se encerrou – ainda que não tenha se completado da maneira como esperava o paradigma. Iniciar uma nova etapa significa reconhecer que não mudou apenas o caminho. Mudou a pedra.