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O mundo - Eduardo Galeano



Um homem na aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. 
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas. 
- O mundo é isso, revelou -. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. 
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam, nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tanta vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. 

Eduardo Galeano

Democracia - Arthur Rimbaud

''A bandeira vai bem com a paisagem imunda, e nosso
patoá ensurdece o tambor.
''Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas lógicas.
''Aos países licenciosos e dissolutos! - a serviço das mais monstruosas explorações industriais ou militares.
''Adeus ao aqui, ou seja onde for. Recrutas de boa vontade, nossa filosofia será feroz; ignorantes da ciência, pervertidos pelo conforto; que se arrebente o mundo que lá está. É a verdadeira marcha. Em frente, vamos!''



Arthur Rimbaud Prosa poética - edição bilíngüe
Tradução, prefácio e notas de Ivo Barroso
Editora Topbooks - edição 1998




Moral e Ordem Cronológica

 
 
A literatura já abordou todos os tipos psicológicos de conflitos eróticos, porém o mais simples dos motivos externos de conflito não foi considerado por causa de sua obviedade. Trata-se do fênomeno de já estar envolvido, a situação em que a pessoa amada se recusa a nós, não em virtude de inibições e antagonismos internos, nem por excesso de frieza ou de ardor reprimido, mas porque já existe uma relação, que exclui uma nova. N verdade, a ordem cronológica abstrata desempenha um papel que se gostaria de conferir à hierarquia dos sentimentos. No fato de estar comprometido, fora a liberdade de escolha e decisão, há ainda algo inteiramente contingente que parece contradizer por completo a exigência de liberdade. Até mesmo numa sociedade livre da anarquia da produção para o mercado, e com mais razão ainda em semelhante sociedade, dificilmente haveria regras que presidissem à ordem na qual as pessoas travariam conhecimento. Se fosse de outro modo, um tal dispositivo equivaleria necessariamente ao mais insuportável atentado à liberdade. Por isso mesmo a prioridade dessa casualidade tem fortes razões do seu lado: quando se dá preferência a uma nova pessoa, faz-se sempre mal à outram na medida em que todo um passado de vida em comum é anulado, toda uma experiência é riscada. A irreversibilidade do tempo fornece um critério moral objetivo. Este, porém, está intimamente relacionado com o mito, como o próprio tempo abstrato. A exclusividade contida no tempo desenvolve, de acordo com seu próprio conceito, no sentido de uma dominação excludente de grupos herméticamente estanquese, em definitivo, da grande indústria. Nada mais comovente que o medo da mulher que ama, de que uma outra possa atrair para si amor e carinho - suas melhores posses, pelo fato mesmo de que eles não podem ser possuídos - precisamente por meio daquele novidade que é produzida pelo privilégio do mais antigo. Mas, a partir desse sentimento comovente - sem o qual desapareceriam todo calor e toda a proteção - , um caminho irresistível, passando pela aversão do irmão caçula pelo desprezo dos estudantes das corporações pelos calouros, conduz às leis de imigração impedindo a entrada de todos os não-caucasianos na Austrália social-democrata e à erradicação das minorias raciais pelo fascismo, com o que, de fato, todo calor e proteção se desintegram no nada. Não somente como Nietzsche bem sabia, todas as coisas boas foram más uma vez; as coisas mais delicadas, abandonadas à prórpia inércia, tendem a culminar numa brutalidade inimaginável.

Seria ocioso pretender indicar uma saída para esse emaranhado. Não obstante, é possivel designar o aspecto fatal que põe em jogo toda aquela dialética. Trata-se do caráter excludente do que é cronológicamente primeiro. A relação inicial, em sua pura imediatidade, já pressupõe aquela ordem cronológica abstrata. Históricamente, o prórpio conceito de tempo formou-se tendo por base a ordenação da propriedade. Mas a vontade de possuir reflete o tempo como angústia diante da perda, diante do irrecuperável. Fazemos a experiência do que é em relação a possibilidade de seu não-ser. Com isso, é aí qie ele se torna mesmo uma posse, e é trocado por outra posse equivalente. Uma vez transformada por completo em uma posse, a pessoa amada, a rigor, não é olhada mais com atenção. A abstração no amor é o compleme4nto da exclusividade, que se manifesta de maneira ilusória como o contrário da abstração, como o apego a este ente único. Essa fixação deixa escapar seu objeto precisamente por fazer dele um objeto, deixando de alcançar a pessoa que, ela reduz à condição de uma "pessoa minha". Se as pessoas não fossem mais uma posse, também não poderiam mais ser trocadas. A verdadeira inclinação seria a que se dirige de maneira específica ao outro, que se prende aos aspectos que se ama, e não ao ídolo de personalidade, esse reflexo da posse. O específico não é exclusivo: falta-lhe a tendência à tonalidade. Mas, num outro sentido, ele é exclusivo: na medida em que, se não proíbe a substituição da experiência ligada indissoluvelmente a ele, por seu mero conceito impede que ela advenha. O que protege o que é totalmente determinado é o fato de que ele não pode ser repetido, e é justamente por isso que ele tolera o outro. A relação de posse entre as pessoas, ao direito exclusivo de prioridade, pertence exatamente a seguinte sabedoria: meu Deus, afinal são apenas seres humanos, e de qual deles se trata não é o mais importante. Uma afeição que nada soubesse dessa sabedoria não precisaria temer a infidelidade, porque estaria imune à falta de fidelidade.

Theodor Adorno - Minima Moralia