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Direito à cidade



No dia 29 de janeiro o geógrafo David Harvey fez a palestra inaugural do seminário “Lutas pela reforma urbana: o direito à cidade como alternativa ao neoliberalismo”, organizado pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana. Leia abaixo a transcrição de sua palestra, na íntegra. A tradução foi feita por Fernando Alves Gomes.
Palestra:
Para mim, é um imenso prazer estar aqui, mas em primeiro lugar eu gostaria de me desculpar por falar em inglês, que é a língua do imperialismo internacional. Eu espero que o que eu vá dizer seja suficientemente antiimperialista para que vocês me perdoem por isso.

Eu estou muito grato pelo convite que me fizeram, porque eu aprendo muito com os movimentos sociais. Eu vim aqui para aprender e para ouvir, e, portanto, eu já considero esta uma grande experiência educacional, pois, como disse Karl Marx certa vez, sempre há a grande questão acerca de quem vai educar os educadores.
Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a idéia de um direito à cidade. Eu entendo que o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é o direito de ter – e eu vou usar uma expressão do inglês – as migalhas que caem da mesa dos ricos.Todos devemos ter os mesmos direitos de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam.
O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital.
Eu quero agora falar um pouco sobre a história da relação entre o capital e a construção de cidades, fazendo uma pergunta: Por que o capital consegue exercer tantos direitos sobre a cidade? E por que as forças populares são relativamente fracas contra aquele poder? Eu também gostaria de falar sobre como, na verdade, a forma com que o capital opera nas cidades é uma de suas fraquezas. Assim, eu acredito que, dessa vez, a luta pelo direito à cidade está no centro da luta contra o capital. Nós estamos vivendo agora, como todos sabem, uma crise financeira do capitalismo. Se nós olharmos para a história recente, nós descobriremos que ao longo dos últimos 30 anos houve muitas crises financeiras. Alguém fez os cálculos e disse que desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve apenas 56 crises financeiras. Portanto, o capital tem produzido muitas crises financeiras nos últimos 30 ou 40 anos. E o que é interessante é que muitas dessas crises financeiras têm origem na urbanização. No fim da década de 1980, a economia japonesa quebrou, e quebrou por conta da especulação da propriedade e da terra. Em 1987, nos Estados Unidos, houve uma enorme crise, na qual centenas de bancos foram à falência, e tudo se deveu à especulação sobre a habitação e o desenvolvimento de propriedade imobiliária. Nos anos de 1970 houve uma grande crise mundial nos mercados imobiliários. E eu poderia continuar indefinidamente, dando-lhes exemplos de crises financeiras com origens urbanas. Meu cálculo é que metade das crises financeiras dos últimos 30 anos teve origem na propriedade urbana. As origens dessa crise nos Estados Unidos estão em algo chamado crise das hipotecas sub prime. Mas eu chamo esta crise não de crise das hipotecas sub prime, e sim de crise urbana.
O que aconteceu foi que nos anos de 1990 surgiu o problema de um excedente de dinheiro sem destinação – o capitalismo é um sistema que sempre produz excedentes. Nós podemos pensar a coisa da seguinte forma: o capitalismo acorda certa manhã e vai ao mercado com certa quantidade de dinheiro e compra trabalho e meios de produção. Ele põe estes elementos para trabalhar e produz certo bem, para vendê-lo por mais dinheiro do que ele tinha no começo. Assim, no fim do dia o capitalista tem mais dinheiro do que ele tinha no começo do dia. E a grande pergunta é: o que é que ele faz com aquele extra que conseguiu? Bem, se ele fosse como você e eu, ele provavelmente sairia e se divertiria gastando o dinheiro. Mas o capitalismo não é assim. Há forças competitivas que o impelem a reinvestir parte de seu capital em novos desenvolvimentos. Na história do capitalismo, tem havido uma taxa de crescimento de 3% desde 1750. Uma taxa de crescimento de 3% significa que é preciso encontrar saídas para o capital. Desse modo, o capitalismo sempre se confronta com aquilo que eu chamo de problema da absorção do excedente do capital: onde eu posso encontrar uma saída lucrativa em que aplicar o meu capital? Em 1750, o mundo inteiro estava aberto para essa questão. E, àquela época, o valor total da economia global era de 135 bilhões de dólares em bens e serviços. Quando se chega a 1950, há 4 trilhões de dólares em circulação, e você tem que encontrar saídas para 3% de 4 trilhões. E quando se chega ao ano 2000, tem-se 42 trilhões de dólares em circulação. Hoje, provavelmente, este valor chega a cerca de 50 trilhões. Em 25 anos, a uma taxa de crescimento de 3%, ele será de 100 trilhões. Isso significa que há uma crescente dificuldade em encontrar saídas rentáveis para o excedente de capital.
Essa situação pode ser apresentada de outra forma. Quando o capitalismo era essencialmente o que acontecia em Manchester e em outros poucos lugares do mundo, uma taxa de crescimento de 3% não representava um problema. Agora nos temos que colocar uma taxa de 3% em tudo que acontece na China, no Leste e no Sudeste asiáticos, na Europa, em grande parte da América Latina e na América do Norte, e aí nós temos um imenso, gigantesco problema. Os capitalistas, quando têm dinheiro, têm também a escolha de como reinvesti-lo. Você pode investir em nova produção. Um dos argumentos para tornar os ricos ainda mais ricos é que eles reinvestirão na produção, e que isso gerará mais emprego e melhores padrões de vida para o povo. Mas desde 1970 eles têm investido cada vez menos em novas produções. Eles têm investido na compra de ativos, ações, direitos de propriedade, inclusive intelectual, e, é claro, em propriedade imobiliária. Portanto, desde 1970, cada vez mais dinheiro tem sido destinado a ativos financeiros, e quando a classe capitalista começa a comprar ativos, o valor destes aumenta. Assim eles começam a fazer dinheiro com o crescimento no valor de seus ativos.
Com isso, os preços da propriedade imobiliária aumentam mais e mais. E isso não torna uma cidade melhor, e sim a torna mais cara. Além disso, na medida em que eles querem construir condomínios de luxo e casas exclusivas, eles têm que empurrar os pobres para fora de suas terras – eles têm que tirar o nosso direito à cidade. Em Nova York, eu acho muito difícil viver em Manhattan, e vejam que eu sou um professor universitário razoavelmente bem pago. A massa da população que de fato trabalha na cidade não tem condições de viver na cidade porque o preço dos imóveis subiu exageradamente. Em outras palavras, o direito das pessoas à cidade foi subtraído. Às vezes ele é subtraído por meio de ações do Mercado, às vezes por meio de ações do governo, que expulsa as pessoas de onde elas vivem, às vezes ele é subtraído por meios ilegais, violentos, ateando- se fogo a um prédio. Houve um período em que parte de Nova York sofreu incêndio após incêndio.
O que isso faz é criar uma situação em que os ricos podem cada vez mais exercer seu domínio sobre toda a cidade, e eles têm que fazer isso, porque essa é a única forma de usar seu excedente de capital. E em algum momento, entretanto, há também incentivos para que esse processo de construção da cidade alcance as pessoas mais pobres. As instituições financeiras concedem empréstimos aos empreendedores imobiliários para que eles desenvolvam grandes áreas da cidade. Você tem os empreendedores que promovem o desenvolvimento, mas o problema é: para quem eles vendem os imóveis? Se a renda da classe trabalhadora estivesse crescendo, então talvez eles poderiam vendê-los para os trabalhadores. Mas desde os anos de 1970 as políticas do neoliberalismo têm implicado reduções salariais. Nos EUA, os salários reais não têm aumentado desde 1970, de tal modo que se tem uma situação em que os salários reais são constantes, mas os preços dos imóveis estão subindo. E de onde vem a demanda por habitação? A resposta consistia em conduzir as classes trabalhadoras a uma situação de débito. E o que nós vemos é que o débito com habitação nos EUA passou de cerca de 40.000 dólares por família para mais de 120.000 dólares por família nos últimos 20 anos. As instituições financeiras batem nas portas dos trabalhadores e dizem “Nós temos um bom negócio para você. Nós lhe emprestamos dinheiro e você pode ter sua casa própria. E não se preocupe se mais adiante você não conseguir pagar sua dívida, porque os preços dos imóveis estão subindo, então tudo está bem”.
Assim, mais e mais pessoas de baixa renda foram levadas a contrair dívidas. Mas cerca de dois anos atrás, os preços dos imóveis começaram a cair. A distância entre o que os trabalhadores podiam pagar e o tamanho da dívida tornou-se grande demais. De repente houve uma onda de execuções de hipotecas em muitas cidades americanas. Mas como geralmente acontece com algo desse tipo, há um desenvolvimento geográfico desigual de tal onda. A primeira onda atingiu comunidades de baixíssima renda em muitas das cidades mais antigas dos Estados Unidos. Há um maravilhoso mapa que pode ser visto na página eletrônica da BBC das execuções hipotecárias na cidade de Cleveland. O que se vê é um mapa pontilhado das execuções, que é altamente concentrado em certas áreas da cidade. Há do lado deste um outro mapa, que mostra a distribuição da população afro-americana, e os dois mapas correspondem entre si. O que isso significa é que ocorreu um roubo à população afro-americana de baixa renda. Esta foi a maior perda de ativos de populações de baixa renda nos EUA de todos os tempos: dois milhões de pessoas perderam suas casas. E naquele mesmo momento o pagamento de bônus em Wall Street ultrapassava a casa dos 30 bilhões de dólares – que é o dinheiro extra pago aos banqueiros pelo seu trabalho. Assim, os 30 bilhões pagos em Wall Street foram efetivamente retirados das populações dos bairros de baixa renda. Fala-se sobre isso nos Estados Unidos como um “Katrina financeiro”, porque, como vocês se lembram que o furacão Katrina atingiu particularmente Nova Orleans, e foi a população negra de baixa renda que foi deixada para trás, sendo que muitos morreram. Os ricos protegeram seu direito à cidade, mas os pobres essencialmente perderam o deles.
Na Flórida, na Califórnia e no Sudoeste americano, o padrão foi diferente. Ele se mostrou muito mais nas periferias das cidades. Lá, muito dinheiro estava sendo emprestado a grupos de construtoras e incorporadoras. Eles estavam construindo casas fora da cidade, 45km fora de Tuscon e de Los Angeles, e não conseguiam encontrar para quem vendê-las. Então eles buscaram a população branca que não gostava de viver perto de imigrantes e de negros nas cidades centrais. Isso levou a uma situação que se revelou há um ano, quando os altos preços da gasolina tornaram as coisas muito difíceis para aquelas comunidades. Muitas pessoas não conseguiam pagar suas dívidas, de modo que aconteceu uma onda de execuções hipotecárias que está se dando nos subúrbios, e atinge principalmente os brancos, em lugares como a Flórida, o Arizona e a Califórnia. Enquanto isso, o que Wall Street fez foi pegar todas aquelas hipotecas de risco e embrulhá- las em estranhos instrumentos financeiros. Eles pegavam todas as hipotecas de um determinado lugar e colocavam-nas num pacote, e então vendiam partes daquele pacote para outras pessoas. O resultado é que todo o mercado financeiro de hipotecas se globalizou, e o que se vê são pedaços de propriedade hipotecária sendo vendidas para pessoas na Noruega, na Alemanha, no Golfo e em qualquer lugar. Todos foram convencidos de que essas hipotecas e esses instrumentos financeiros eram tão seguros quanto casas. Acabou que eles não se mostraram seguros, e então sobreveio a grande crise, que segue sem parar. Meu argumento é que se essa crise é basicamente uma crise de urbanização, então a solução deve ser uma urbanização diferente, e é aí que a luta pelo direito à cidade se torna crucial, porque nós temos a oportunidade de fazer algo diferente.
Mas sempre me perguntam se essa crise é o fim do neoliberalismo. Minha resposta é “não”, se se olha para o que está sendo proposto em Washington e em Londres. Um dos princípios básicos que foram estabelecidos na década de 70 é que o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a qualquer preço. Se há um conflito entre o bem estar das instituições financeiras e o bem estar do povo, opta-se pelo bem estar das instituições financeiras. Este é o princípio que foi desenvolvido na cidade de Nova York City em meados dos anos 70, e que foi definido internacionalmente pela primeira vez quando houve a ameaça de falência do México em 1982. Se o México tivesse ido à falência, isso teria destruído os bancos de investimentos de Nova York. Assim, o Banco Central dos Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional combinaram esforços para ajudar o México a não entrar em falência. Em outras palavras, eles emprestaram o dinheiro que o México precisava para pagar os banqueiros de Nova York. Mas, ao fazê-lo, eles impuseram austeridade à população mexicana. Ou seja, eles protegeram os bancos e destruíram as pessoas. Essa tem sido a prática padrão do FMI desde então. Agora, se olharmos para a resposta dada à crise pelos Estados Unidos e a Inglaterra, nós veremos que o que eles efetivamente fizeram foi salvar os bancos ? são 700 bilhões de dólares para os bancos nos EUA. Eles não fizeram absolutamente nada para proteger os proprietários de imóveis que perderam suas casas. Então, é este exatamente o mesmo princípio que agora vemos em funcionamento: proteger as instituições financeiras e foda-se o povo. O que nós deveríamos ter feito era pegar os 700 bilhões e criar um banco de re-desenvolvimento urbano, para salvarmos todas as comunidades que estavam sendo destruídas e reconstruir as cidades a partir das demandas populares. O interessante é que, se nós tivéssemos feito isso antes, muito da crise teria simplesmente desaparecido, porque não haveria a execução das hipotecas. Nesse meio tempo, nós precisamos organizar um movimento antidespejo – e temos visto isso acontecer em Boston e em algumas outras cidades. Mas, nesse momento da história nos EUA, há um sentimento de que a mobilização popular está restrita porque a eleição de Obama era a prioridade. Muitas pessoas esperam que Obama faça algo diferente, mas infelizmente os seus consultores econômicos são exatamente os mesmos que criaram o problema. Eu duvido que Obama venha a ser tão progressista quanto Lula. Eu acho que nós teremos que esperar um pouco antes que os movimentos sociais comecem a agir. Nós precisamos de um movimento nacional pela reforma urbana como o que vocês têm aqui. Nós temos que construir uma militância do mesmo tipo que vocês construíram aqui. Nós temos que, de fato, começar a exercer nosso direito à cidade. E em algum momento nós teremos que reverter o modo como as instituições financeiras são priorizadas em detrimento do povo. Nós temos que nos questionar o que é mais importante, o valor dos bancos ou o valor da humanidade. O sistema bancário deveria servir às pessoas, e não viver à custa das pessoas. A única forma que temos de, em algum momento, nos tornarmos capazes de exercer nosso direito à cidade é controlando o problema da absorção do excedente capitalista. Nós temos que socializar o excedente do capital. Nós temos que usá-lo para atender necessidades sociais. Nós temos que nos livrar do problema da acumulação constante dos 3%. Nós chegamos a um ponto em que uma taxa de crescimento constante de 3% irá impor custos ambientais tão imensos, irá exercer uma pressão tão grande sobre as questões sociais, que nós viveremos em perpétua crise financeira. Se nós sairmos dessa crise financeira do modo que eles querem, haverá uma outra crise financeira dentro de cinco anos.Chegamos a um ponto em que não podemos mais de aceitar o que disse Margaret Thatcher, que “não há alternativa”, e que devemos dizer que deve haver uma alternativa. Deve haver uma alternativa para o capitalismo em geral. E nós podemos começar a nos aproximarmos dessa alternativa percebendo o direito à cidade como uma exigência popular internacional, e eu espero que possamos todos nos unir nessa missão.
Muito obrigado.

A filosofia latino-americana como expoente de uma cultura autônoma

Cada etapa na evolução da consciência continental da América Latina esteve em relação com uma das diversas e sucessivas filosofias ou orientações doutrinárias dominantes no desenvolvimento do pensamento europeu. Tal nexo foi mais pronunciado na época da formação da auto-consciência nacional dos povos latino-americanos, dedicados à tarefa de cimentar suas instituições políticas e sociais.

Este esforço formador e auto-constitutivo do espírito nacional dos povos do continente se reflete na história das idéias filosóficas européias em solo americano. Ainda que esta história das idéias não configure uma filosofia, ela esclarece, sem embargo, o caráter do pensamento latino-americano e a aptidão deste para estruturar uma concepção filosófica conforme com o ser do homem americano e sua disposição temperamental. Uma história das idéias filosóficas européias e seu influxo na vida das nações sul-americanas é um ponto de partida para a reflexão filosófica acerca das necessidades vernáculas, tanto no espiritual, quanto no que diz respeito às formas da convivência social. O material – doutrinas e sugestões – que tal reflexão supõe mobiliza-se por uma idéia central: a realização da liberdade no político e no social.

O pensamento americano, inspirando-se na própria realidade histórica e na exigência de satisfazer às necessidades emergentes desta, acudiu, no passado, à filosofia européia, valorando-a não como uma atividade pura, mas sim como um meio para abordar e solucionar os problemas que se referem ao homem de nosso meio, a sua vida, as suas urgências políticas e pedagógicas. Em nossa época, o interesse da América Latina pela filosofia e seu aporte formativo é muito mais acentuado e definido no que se refere a tendências, doutrinas e sobretudo no que diz respeito a um processo de assimilação e adaptação de idéias e métodos estrangeiros, processo no qual desponta já a possibilidade de uma etapa de criação, de concepções originais, expressivas de sua idiossincrasia e espiritual e adequadas a um módulo autônomo de vida e de pensamento.


  É evidente que na reflexão filosófica e na cultura dos povos latino-americanos predomina o fator autóctone sobre o genérico, diferenciando-se por isso das culturas européias, nas quais predomina o último. Além disso, a América Latina, por uma tendência imanente ao seu espírito, resultante de sua situação histórica, aspira a prolongar na prática, no terreno das realizações sociais e econômicas, as postulações teóricas das filosofias européias que até agora influíram em seu desenvolvimento cultural. Daqui o caráter essencialmente instrumentalista de seu pensamento.  O que não impede que este, proprietário, na atualidade, de um critério técnico-filosófico mais maduro, se afinque nos problemas que inquietam a especulação européia, e  também nos pontos de vista suscitados nela como resposta aos próprios problemas.

O pensamento americano, desde o primeiro estágio de seu desenvolvimento, e movido por necessidades de seu ambiente histórico, mostrou, naturalmente, preferência pelas filosofias orientadas, em maior ou menor medida, rumo ao concreto, com acento nos problemas antropológicos e sociais. É assim que das orientações filosóficas européias (racionalismo iluminista, romantismo, historicismo, positivismo, vitalismo, existencialismo) com as quais se relacionou, desde a independência política dos povos do continente,  tratando de extrair delas um ensinamento, as que o influenciaram de modo mais eficiente foram, no passado, o historicismo (influência ainda hoje manifesta), o positivismo e o vitalismo. Na atualidade,  predomina sobre todas as demais direções filosóficas o influxo do existencialismo. Vale notar, como exemplo, que a reflexão filosófica vernácula atualiza e apura as hipóteses metodológicas e heurísticas das últimas filosofias européias, com vistas à derivação dos mesmos na direção de um enfoque integral dos fatos e, também, a uma práxis humanista. Isso acontece com o lema metódico da fenomenologia: “as coisas mesmas”, e com a “analítica doDasein” como hermenêutica, como via de acesso ao núcleo ontológico da existência americana e seus módulos expressivos.

As considerações precedentes nos aproximam do terreno no qual podemos delinear em sua verdadeira dimensão o problema da tarefa peculiar e do destino da filosofia na América Latina. Tal dimensão não se deixa entrever, desde logo, na tendência e no esforço assimilatório e adaptativo de doutrinas e métodos europeus. Em primeiro lugar, se há de afirmar a sua autonomia, o pensamento americano não poderá cumprir a tarefa que lhe concerne atendo-se literalmente às categorias próprias da filosofia européia, as que surgiram em função de conteúdos de uma realidade histórica distinta da nossa.

Cabe ilustrar essa asserção aportando algumas precisões mediante exemplificação. Não é por acaso, nem por uma reação epidérmica que o espírito americano evidencie mais interesse e inquietude pela última filosofia européia, a da existência; pelo contrário, isso se deve, precisamente, ao caráter emocional desta, e ao fato de que sua problemática se impregne nas estruturas concretas da historicidade. Entre essa filosofia e o temperamento americano há pontos de contato, uma afinidade graças à primazia que o fator emocional e intuitivo possui neste, que o orienta preferencialmente em direção ao concreto, ao vivente e histórico.

A “analítica do Dasein”, instaurada por Heidegger – o último grande filósofo europeu – é, sem dúvida, um valioso aporte instrumental para a elucidação do modo existencial peculiar do homem americano. De fato, se, para levá-lo a cabo, nos ativéssemos à categoria do “existencial” básico da ontologia da existência, frustraríamos nosso labor hermenêutico, pois tal “existencial” – a angústia – não é o fundamental para o homem americano. Uma breve consideração nos convencerá disto. A suposição da “analítica do Dasein” é haver obtido e definido, de modo exemplar, a estrutura antropológica fundamental tomando um único e determinado estado de ânimo, o da angústiaAté agora, a antropologia filosófica – para a qual o homem é um compositum de corpo, alma e espírito – pretendia obtê-la através da determinação do conjunto dos fenômenos vitais em sua pluralidade e diversidade, no que se refere a seu conteúdo. Porém, dos estados de ânimo (que são um encontrar-se animicamente disposto, Befindlichkeiten), a analítica doDasein elege um que considera apropriado, e mesmo privilegiado pela sua originalidade, que é o da angústia, e pensa ter encontrado nele a estrutura essencial dos estados de ânimo. 


É desse modo que ela chegaria a estabelecer a estrutura essencial e universal do homem. Porém, é tão universal esta estrutura – o estado de ânimo da angústia – que sua primazia também se acuse no homem americano? Duvidamos disso. A existência européia talvez se angustie pelo seu poder ser porque ela chegou ao limite de suas possibilidades históricas, além do qual se insinua sua decadência e desagregação. Nós não estamos incluídos em tal situação. O estado de ânimo essencial do homem americano não é o da angústia, estado de ânimo depressivo, mas sim um que, na atual etapa de nossa evolução social e cultural, podemos considerar levantado, eufórico – ainda que com súbitas transições à perplexidade e ao desassossego – diante das enormes possibilidades que se lhe oferecem para plasmar um peculiar estilo de existência. É natural, portanto, que se preocupe em encontrar a forma, o módulo nos quais a existência história alcançará a plenitude, em um novo Ecúmeno.

Os estados de ânimo que se centram na angústia e no desespero operam o isolamento do homem da comunidade dos coetâneos, sua singularização. O estado de ânimo depressivo faz com que o existente se feche em si mesmo, apartando-se dos contatos da convivência. Isto pode acontecer, e acontece, no homem de comunidades que, no que toca à forma de vida e ao sistema social que imperou nelas, estejam em declive e careçam já de metas e tarefas históricas. O homem americano, imantado por um desideratum formativo e expressivo que transcende sua existência individual, aspira, pelo contrário à convivência, a se integrar vitalmente em sua comunidade. Esta, por sua vez, encontrando-se em processo de gestação, reclama o aporte do indivíduo para a programação de suas tarefas históricas. Daí que se venha perfilando na América Latina, com caracteres bem nítidos, um humanismo que é instrumental no que diz respeito à modalidade social e troquel estatal da convivência. É, pois, um humanismo de cunho propriamente americano.

Talvez nosso homem chegue a se concentrar um dia na estrutura, que para ele será essencial, de um estado de ânimo levantado, de alegria empreendedora, que o levará a consubstanciar-se cada vez mais com sua terra e sua natureza para a obtenção de uma original expressão cultural. (Toda cultura, quando é autêntica, é o resultado de um módulo expressivo indivisível do telúrico, de sua paisagem originária). É tal estado de ânimo levantado, de alegria matinal, o que o levará a apropriar-se triunfalmente das realidades de seu âmbito circundante e dos conteúdos de seu mundo histórico, aos quais imprimirá a forma de um estilo de vida americano.

Nosso homem não apenas leva seu olhar inquisitivo à cultura européia, cuja técnica assimilou, adaptando-a as suas necessidades, para lançar as bases de seu desenvolvimento industriar e explorar as riquezas de seu solo. Também sua inquietude – suficientemente justificada nesse caso – se polariza (com o mesmo impulso com que as raízes da árvore buscam o húmus profundo para se nutrir) com as culturas milenárias que floresceram em seu solo. É que sente a necessidade de restabelecer a relação, instaurada desde as bases de seu paideuma, com o telúrico e o cósmico, reencontrando-se na unidade de uma cultura da qual foi violentamente arrancado pela empresa da transculturação. Aspira, assim, a refazer, em função de seu habitat, sua concepção de mundo, integrada, sem dúvida, com os elementos resultantes do contato com a cultura ocidental e da nova situação histórica universal. Essa atitude será cada vez mais um fator integrador de nossa cultura, ao qual a filosofia latino-americana há de levar em conta para aceder à verdadeira dimensão de seu problema.

A conquista (e nos referimos à espanhola, pois a portuguesa, pelo seu caráter, é uma exceção no quadro dado por aquela) destrói as estruturas e os valores das civilizações pré-colombianas. Considerou a sobrevivência das culturas ameríndias como um obstáculo para a empresa de exploração e aproveitamento das grandes riquezas minerais que a América entesourava. Estas culturas (a azteca e a incaica), que constituem o húmus, o embasamento vivo, sobre o qual se instala precariamente a transculturação, ao cabo de quatro séculos tendem a unificar seu estrato desintegrado para afirmar-se como um todo original e distinto das estruturas e formas da cultura européia. Quando estas etnias soterradas, e os grupos sociais delas provenientes, aflorarem à superfície histórica, a fisionomia cultural da América Latina experimentará, sem dúvida, um câmbio, cujo alcance e significado precisos não é possível prever, mas que já é denotado pela tendência à afirmação de seu paideuma originário, da autonomia de seu âmbito anímico.

Sob à superestrutura da transculturação européia se agitam correntes poderosas e temporalmente remotas. Como nota o antropólogo norte-americano Ruediger Bilden (citado por Gilberto Freyre – Casa grande y Senzala, I, p. 201, Biblioteca de Autores Brasileños, Buenos Aires, 1942), estas correntes acabarão absorvendo a “débil e anêmica superestrutura transmutando-lhe os valores de origem europeus”. É hoje um indício eloqüente que o pensamento latino-americano, em seus núcleos mais representativos, comece a voltar-se contra o colonialismo cultural. O domínio dos conquistadores e colonizadores foi um fenômeno transitório, estranho à índole e tendências da alma americana.


Não nos tocou profundamente, sem dúvida, a visão de Hegel quando, em seusVorlesungen über die Philosophie des Geschichte, nos disse que a conquista e a colonização espanholas acarretaram a extinção das raças aborígenes do continente americano e de sua cultura. Segundo Hegel, “esta (menciona a incaica e a azteca) tinha que sucumbir logo se aproximasse dela o Espírito”, o qual ele faz o personagem principal da história universal. Mas o Espírito – este avatar europeu ocidental do logos – livre de toda sujeição à terra às potências da vida histórica, não foi nem podia ser um princípio determinante na cultura que vem se gestando na América Latina, cujo paideuma está dominado pelo telúrico e pelo alento imponderável do milenário passado cultural ameríndio. Do encontro destes fatores condicionantes com os valores da cultura ocidental surgirá uma Weltanschauungprópria, como expressão de uma modalidade vital e existencial distinta da ocidental.

Um produto novo e, ao mesmo tempo, muito velho, o medular do cultural remoto, que sobrevive latente, será possivelmente a resultante da conjugação da ratiodiscursiva, da atividade da consciência intelectual européia com um pensar intuitivo, de inspiração arcaica, gravitando cada vez mais em direção a formas autóctones. Nem a ratio, nem o Espírito, em seu formato hegeliano, tiveram até agora verdadeira vigência na mente da América Latina. As manifestações espirituais de cunho exclusivamente europeu – rápidas e sugestiva florações parasitárias – estarão sempre condenadas a uma vida fugaz, privadas do suporte do telúrico e de todo entroncamento vital no paideuma originário. 


O homem americano não pode existir no casulo de expressões culturais para cuja criação ele não contribuiu, e cujas raízes lhes são estranhas. Se no mundo ocidental, em que as categorias da ratio estão perdendo a validez universal que lhe outorgaram, o Espírito não pôde descrever com necessidade inelutável a órbita que Hegel lhe assinalou e supôs que lhe fosse própria, na nossa América ele foi tão somente um cometa errático apenas avistável, um personagem de todo estrangeiro e mesmo antinômico com relação aos próprios embriões culturais.

Afirmada a independência nacional dos povos latino-americanos, estes advêm, no domínio da ciência e da filosofia, à cultura ocidental, mas sem renunciar a seu peculiar modo de ser, e sem se considerarem imitadores nem porta-vozes servis do europeu. Assimilam a técnica européia – a qual já é um bem universal – assinalando-lhe um valor instrumental para a própria liberação no econômico e no social. Não poderia ser de outro modo já que a tendência hegemônica do capitalismo internacional na sua atual etapa imperialista, ao encontrar campo propício para seus empreendimentos nas imensas riquezas do solo americano e mão de obra explorável, interferiu na vida de nossos povos reduzindo-lhes ao colonialismo econômico. 


A atitude reativa ante esta situação há tempo começou a se expressar, no campo doutrinário, no marxismo. As massas exploradas já vêem neste, graças à nucleação de suas minorias conscientes, não apenas o fundamento teórico, mas também o instrumento, o método adequado para a luta pela sua liberação econômica. É assim que aceleradamente se vá formando nas massas da América Latina a consciência de sua situação social e do destino histórico com os quais se deparam. Elas são acessíveis ao influxo do marxismo pela afinidade entre este, a forma de organização social que propugna sua doutrina, e o espírito coletivista que imperava nos povos ameríndios, o qual sobrevive nas comunidades indígenas do Peru e do Altiplano boliviano. A organização agrária – o ayllu – na qual se nucleavam antes da conquista os povos ameríndios, possuía bastante similaridade (e não apenas formal, mas também de conteúdo) com os sistemas organizatórios que o marxismo preconiza, e ensaiou na Rússia e em outros países europeus.

Em síntese, a América Latina – designação que ainda não denota uma unidade étnica nem cultural, e sim o desideratum dessa unidade – recorre à filosofia européia e sua problemática para esclarecer a essência do homem americano, cujo módulo ontológico é expressão de sua mensagem histórica, e está marcado desde sempre pela marca telúrica que carrega em seu sangue. Toma daquela filosofia seu aporte instrumental e hermenêutico. Com seu auxílio, aspirou a estruturar suas instituições políticas e ir criando as formas estatais e de organização econômica adequadas para assegurar a convivência social de acordo com as exigências de seu próprio destino.

A cultura latino-americana não tem uma fisionomia já plasmada, de todo definida, senão uma ainda em processo de configuração, que cada vez mais irá acentuando suas características diferenciais. No quadro que ela há de oferecer ao futuro, fator integrante fundamental será a filosofia, na qual nossa cultura adquirirá consciência de si mesma e de sua orientação vernácula. Se não é possível determinar, de modo preciso e definido, o caráter e as notas constitutivas de uma filosofia latino-americana autônoma, como corpo de doutrinas, cabe, não obstante, assinalar um rumo, que não pode ser outro que o mesmo da cultura que está convocada a integrar e da qual será índice.
A filosofia da América Latina, como expoente da autonomia de uma cultura própria, tenderá cada vez mais a penetrar e expressar as possibilidades histórico-existenciais do homem e da comunidade americanos e de seu modo de ser autóctones.
Como Engels, o proletariado conheceu a crítica da economia política antes de encontrar Marx. E o fez, contudo, não em esboços teóricos, mas práticos. Afinal, toda prática viva, sempre, não passa de esboços.


Barricada da Rue Soufflot
Revolução de junho de 1848

Carta às esquerdas

Livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação de algumas ideias. A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. 

Não ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte importante. 

Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As principais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação? 

As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de violentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros atores e linguagens que as esquerdas não puderam entender. 

Entretanto, livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias:

Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo. 

Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, ele a reduz à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. 

Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas). 

Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente. 

Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito. 

Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar). 

Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um patrimônio das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar. 

Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas. 

Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca. 

Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima. 

A filosofia entre-nós

Roberto Gomes é um dos poucos filósofos brasileiros que fizeram a abordagem do tema sobre a existência de filosofia brasileira (não confundir com filosofia escrita por filósofo brasileiro), questinando se a temos ou não, como discorre na sua obra CRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUIM, 8ª ed. editada pela Edições Criar, Curitiba, 1986, no seguinte trecho - pags. 55-57:


“Creio que possamos admitir pacificamente a existência de filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo. Há filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entre-nós, manifestando sua presença. Talvez um corpo estranho, mas presente. Não só contamos com documentos a respeito, documentos com data marcada, como encontramos revistas e livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se congressos, encontros, debates, e nos currículos universitários a filosofia consta obviamente – cada vez menos, mas consta. Tudo isso indica que a filosofia está entre nós. Como um parente distante, uma tia talvez, que chega e vai ficando – mas, seja como for, entre nós.

(...) Introjetou-se aqui – prossegue Gomes – a função do dependente: compreender as idéias alheias e, curiosamente, reduzir a história da filosofia no Brasil à narrativa de nossa “capacidade de assimilação”e de nosso “quociente de sensibilidade espiritual”, quando, numa adequada compreensão histórica, caberia, isto sim, extrair desta constatação o significado mais profundo: os modos de falsificação dos quais temos sido vítimas e co-autores. “O simples fato da questão (como ser original) – nota Antonio Candido – nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas da criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressivos) sempre reconhecemos como natural a nossa inevitável dependência”.

Com a naturalidade com que esquecemos de ser originais – enfatiza Gomes - , deixamos de de observar que um pensamento alheio se enraíza e tem em mira uma situação histórica diversa daquela na qual nos encontramos. O que se evidencia pela preocupação de Luís W. Vita com nosso “grau de compreensão” do pensamento alheio. Esquecemos igualmente que idéias vitais para um europeu ou norte-americano poderão ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibrados e mambembes.

Seja como for – ressalta Gomes -, há filosofia entre nós. Lembro, no entanto, que isso não esgota a problemática a respeito de uma filosofia brasileira, propondo, no mais das vezes, seu avesso: os sinais de seu esquecimento. Carentes de melhor distinção entre estas duas questões – "filosofia entre-nós" e "filosofia nossa" – encontramos em nossos historiadores de idéias uma marca constante: a quase totalidade do que se escreveu sobre o tema baseia-se num equívoco primário. Este: confundir o valor ou existência de livros de filosofia escritos por brasileiros, com o valor ou existência de uma filosofia brasileira”.

Nem tudo que é sólido desmancha no ar



COMO A MAIS ABSOLUTA dominação sobre os homens continua a ser exercida por meio de processos econômicos de exploração – mesmo sobre a crescente parcela da humanidade que está sendo rifada precisamente porque deixou de ser economicamente rentável –, o Manifesto Comunistaainda cruzará o milênio como uma mensagem na garrafa. Muito mais atual inclusive do que há 150 anos, quando a proletarização dos pobres e demais expropriados ainda não parecia irreversível, a ponto de considerável número deles procurar escapar à danação do assalariamento – só viver se encontrar trabalho, e só encontrar trabalho se este incrementar o valor do capital – reagrupando-se à margem da ordem burguesa nascente na forma de comunidades cooperativas, por meio das quais sonhavam recuperar a antiga independência econômica perdida. Porém a Modernidade anunciada pelo Manifesto viera também para abortar o não-lugar dessa utopia. Com a atual mundialização do capital enfim, ninguém mais está fora, sobretudo as grandes massas precarizadas e desconectadas na corrida ao corte de custos: em tempos de pressões competitivas globalizadas, literalmente não têm mais para onde ir. Nunca estiveram tão irremediavelmente incluídas.

Continuamos portanto na mesma, a mesma desgraça econômica de sempre, desde que a terra, o trabalho dos homens e a moeda de troca entre eles foram transformados em mercadoria, como qualquer outro artigo de comércio. Mas também continuamos na mesma numa outra acepção igualmente sombria da expressão, por assim dizer mítica. Era o que Marx e Engels queriam dizer, no momento mesmo em que chamavam a moderna exploração econômica pelo nome, ao declarar que a história de todas as sociedade tinha sido até então a história da luta de classes. Pois bem: se toda a história é história da luta de classes é porque a história sempre foi a mesma coisa, numa palavra, pré-história. Como de resto se pode ler num dos rascunhos preparatórios doManifesto: "assim como a forma mais recente da injustiça lança luz sobre todas as demais, a crítica da economia é urna crítica da história no seu todo, de cuja imobilidade a classe dos capitalistas, como outrora seus antepassados senhor de escravos, patrício romano, barão feudal –, deriva o seu privilégio (...) 


O silêncio arcaico das pirâmides repercute o barulho infernal do sistema de fábricas". Não por acaso – numa conhecida interpretação – para o poeta das Flores do mal (livro rigorosamente contemporâneo do Manifesto Comunista), essa mesma e famigerada Modernidade era a cifra de um mundo sempre-igual de ruínas recorrentes, as destruições criativas, no vocabulário da apologética mais recente, próprias de um sistema que não pode subsistir sem a morte precoce de seus instrumentos de reprodução. Assim, no suposto auge renascentista que estaríamos atravessando – a chamada globalização, na opinião apoteótica de um varão sabedor local –, no rumo sabe-se lá de que apogeu econômico futurista, não se achará muito mais do que outro espasmo pré-histórico do sistema tautológico a que se resume a absurda e interminável acumulação de capital comandada pelo único e exclusivo fim de se acumular mais capital.

* * *

Tudo isso, não obstante, é fato que Marx e Engels não resistiram à tentação progressista da época, deixando-se impressionar pela nova prosa modernista do mundo, pela irresistível escalada dos preços baratos da mercadoria burguesa tomando de assalto quantas muralhas da China lhe surgissem pela frente. E como poderiam, naqueles tempos de legitimação revolucionária dos acumuladores de dinheiro e poder? Mas ocorre que deslizando pelo plano inclinado da modernolatria deram com a plataforma de uma outra humanidade, a qual corresponderia enfim verdadeiramente ao seu conceito. É que entreviram naquela novidade avassaladora do capitalismo com relação às civilizações anteriores a chance providencial de quebrar o feitiço pré-histórico da alienação.


Nunca será demais evocar o essencial dessa reviravolta. E para realçar a nota dissonante do Manifesto neste final de século de harmonia extorquida, por que não evocá-lo nos termos mesmos das teorias sistêmicas em voga? Com efeito, não é muito difícil admitir que a evolução histórica da espécie humana sempre se deu por uma adaptação passiva do quadro institucional da sociedade à pressão das forças produtivas. A ser assim, a inovação da modernidade capitalista reside na circunstância, sem dúvida, inédita de que pela primeira vez essa pressão material não só é auto-impulsionada pelo imperativo da acumulação infindável mas solapa, também em permanência, as formas culturais de legitimação social herdadas, provocando por sua vez novas rodadas de adaptações passivas. 


Ora, ao contrário de uma solene declaração burguesa de reconhecimento e sanção de tendências históricas consumadas, o contradiscurso do Manifesto simplesmente demonstra que contra tais fatos há argumentos, além do mais fornecidos por eles mesmos, a saber: esse mecanismo de reprodução social em que a iniciativa cabe apenas à inovação econômica define justamente a pré-história da humanidade e, portanto, o capitalismo ele mesmo é pré-histórico, não espantando que nele ainda se apresente como um destino o cego movimento da economia; e tal engrenagem não saltará dos trilhos enquanto uma rotação ciclópica de eixo não passar o controle prático das transformações estruturais da sociedade para as mãos de indivíduos autônomos e cooperativos, encerrando assim a idade mítica de submissão absoluta do metabolismo social às suas condições materiais de reprodução. (E pensar que hoje quem se ajusta, e não por acaso mediante sucessivas e infinitesimais adaptações passivas, acredita que nesse último enunciado jurássico da causalidade sistêmica se concentra a quintessência do materialismo histórico, em nome do qual de alma leve pede a benção aos vencedores.)


Está claro, porém, o encanto não se romperia por simples decreto emancipatório; não basta apontar para a fantasmagoria para que ela se dissipe. Além de ser materialmente tangível, a peça subversiva que faria girar a porta de saída da pré-história precisaria pertencer, ela mesma, ao encadeamento arcaico que mandaria pelos ares. Estava assim designado o lugar a ser ocupado pela luta de classes: à mola perpetuadora da eterna recaída na barbárie seria delegada a tarefa de encaixar a alavanca numa muralha aparentemente sem brecha, se é fato que haveria mesmo um grão de transcendência na assimetria brutal de poder social entre as classes em luta. Nesse entorse da pré-história, Marx e Engels apostaram todas as fichas da emancipação. Ou quase todas: é bom não esquecer a ressalva acerca da ruína comum que também espreita o conflito de morte nessa guerra social por onde corre ainda a pré-história da humanidade. 


Como se essa reviravolta não bastasse, Marx e Engels repetiram uma segunda vez, naquele mesmo Manifesto, a prova do caráter pré-histórico do capitalismo: sacudida por crises periódicas em que o capital torna redundante sua própria fonte de valorização queimando força produtiva, a sociedade burguesa "vê-se subitamente reconduzida a um certo estado de barbárie" que se abate sobre os indivíduos como outrora a fome e as guerras de extermínio, só que agora na forma invisível de poderes subterrâneos autônomos e incontroláveis.


Nessa segunda prova dos nove – a experiência da impotência social máxima no confronto com as forças anônimas da exploração – ressaltava novamente a novidade histórica do capitalismo: sob o invólucro ultramoderno do progresso, a derradeira sociedade primitiva, mergulhada na inconsciência coletiva do desastre que se avizinha. Digamos então que o essencial do Manifesto reside na figuração contemporânea do nexo entre essas duas formas pré-históricas da opressão: a primeira, contrapondo campos sociais antagônicos e visivelmente personificados; a segunda, a dominação, sem sujeito designado, exercida sobre o conjunto da sociedade pela economia de mercado autonomizada, a ponto de transformar os seus beneficiários diretos em meras funções de seu próprio aparelho de produção. Uma dimensão não vai sem a outra, assim como o proletariado do Manifesto se exaure enfrentando ora a burguesia, ora o capital, do qual a primeira é "portadora involuntária e incapaz de reação", na fórmula do Manifesto, mas nem por isso desprovida de vontade e do poder de disposição sobre os homens que lhe confere um sistema que, por sua vez, a sujeita se não quiser perecer, como aliás se pode ler noutro rascunho famoso redigido dez anos depois, os Elementos fundamentais para uma crítica da economia política: "na redução dos homens a simples agentes do mercado se esconde a dominação de homens sobre homens. Porém a classe dominante não é apenas dominada pelo sistema, domina através do sistema. 


A tendência objetiva do sistema é redobrada e sancionada pela vontade constante daqueles que o servem. Como é cego, o sistema é a própria dominação, e por isso mesmo funciona sempre a favor dos dominantes, mesmo quando os ameaça de ruína; os trabalhos de parto a que eles se entregam nos momentos de crise atestam o pleno conhecimento desse fato".

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Estando assim entrelaçadas as duas dimensões desse diagnóstico do capitalismo como derradeira sociedade pré-histórica – ele mesmo cifra de uma ruptura de época tanto mais paradoxal por implicar um momento de auto-reflexão da espécie humana sob o mais espesso invólucro de uma segunda natureza –, compreende-se que nenhuma das duas pode sobreviver à morte da outra. Os 30 anos de calmaria que sucederam à última grande guerra – efeito anestésico da Guerra Fria, do Welfare europeu e da industrialização consentida da periferia –, varreram da memória o abismo entreaberto pelo apocalipse nazista, na verdade cavado pela mítica espiral da normalidade burguesa, o envolvimento pré-histórico da luta de classes na engrenagem da exploração econômica. Há menos de duas décadas rompeu-se o dique novamente. Como um sinal de alarme entre duas catástrofes, o Manifesto Comunista ainda contínua soando, ontem como hoje, para despertar a humanidade do mesmo pesadelo ancestral da dominação.