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Manifesto

As relações são frágeis? Quais? As amorosas, sociais, lógicas?

Necessárias e condicionais.

A poesia, em cada e em todo poeta, só confirma raciocínios. Estatística ou probabilidade? Tudo é matemática. Qualitativo ou quantitativo? Tudo é metodologia. 

Simples e complexo.

E lá vai o meu manifesto existencial em relação a epistemologização da vida:

. O holismo é a forma mais acabada de formalismo;

. A lógica dialética é tão formal quanto a lógica formal propriamente dita;

. A idéia de imanência é tão metafísica quanto a de transcendência;

. Nem tudo o que sobe converge, pois nem tudo é passível de síntese;

. Capitalismo, socialismo e comunismo são oriundos de um único e tão somente universo de possibilidades;

. A existência não é mera subjetividade, pois ela não é o mero contrário lógico de qualquer coisa que seja;

> Não reproduza,
> Não seja mera oposição,
> Não seja mera superação;

. O anarquismo é um aborto;

. Existir é resistir a ordem e ao devir.

Cartão de Visitas

"Hei, o seu coração é um músculo do tamanho de um punho.

...mas a ditadura autoritária do ódio - continua a fazer tantas vitimas sexuais, que tudo que eu posso fazer por nós dois é me libertar.

…É, será que eu posso só te dar - meu cartão de visita?!

…É que o amor ao mesmo tempo que nutre, deixa-nos fracos, agonizantes e cansados. É que o amor é um movimento de dar e receber num caminho de duas vias, um movimento de contração e dilatação, fluxo e refluxo.

O grande problema entre os amantes é quando há discrepância entre um movimento e outro. Se dou demais e não recebo, torno-me seco, triste e me canso. Se recebo demais e não dou nada, me torno um filho-da-puta inchado e egoísta. E no final de contas os amantes sempre apontam o dedo na cara uns dos outros, exigindo igualdade entre aquilo que dão e aquilo que querem receber.

Eu não quero saber de nada disso.
Eu quero todas as vias possíveis.

Me doar sem esperar que ninguém me responda da mesma forma, receber sem que ninguém exija de mim uma reação com a mesma força da sua ação. Eu quero é enfiar a cabeça e confundir aquilo que eu faço com aquilo que me é feito, sem distinção. Eu quero é amor e afirmação, e não o ego que espera pra poder agir. Se ninguém me escreve, eu cá estou me afirmando e me derramando ainda que outras pessoas estejam dormindo, ou trepando, ou na estação de metrô com a cabeça na lua.
Pra mim bastam as aberturas: o conteúdo e a forma de amar é a gente que determina. Eu quero é a paixão que me permite o extravasamento da mesma forma que o recolhimento, sem que isso signifique uma diferença na intensidade.

Eu quero é poder me calar e explorar outras formas além do verbo sem que isso signifique falta de diálogo. Eu quero é poder tirar a roupa e pisar em cima de raiva e desespero, sem me envergonhar da minha insensatez e insanidade. Eu quero é jogar na fogueira toda norma, toda teoria estéril e viver aos braços alheios. Jogado! A máxima consciência do outro, sair de mim e pairar leve no espaço que comporta todos os meus amores, eu que me apaixono todos os dias, pelos mesmos, pelos outros.

Não exigir nada de ninguém. Quero é comer as vírgulas e escrever e falar como as coisas me aparecem sem filtro sem máscaras sem medo. Se digo,”serei fiel a você”, estou demarcando um espaço silencioso além do alcance de outros desejos. Porque ninguém pode legislar o amor, ele não pode receber ordens ou ser intimado para o serviço.

O amor pertence a si mesmo, surdo a suplícios e imóvel à violência. E não algo que você possa negociar. É que o amor deveria ser uma carta de alforria ao invés de mais um contrato que nos costura exclusivamente ao outro e ao mundo do outro. Estamos amarrados um ao outro numa linha que criamos e não numa linha gasta e falida que a convenção nos concedeu, e isso é tão maior, porque além de amar a pessoa amada, amo também o amor. De que adianta amar um outro, se odeio, se detesto a forma com que o nosso amor é conduzido e enquadrado?

Quero viver dias onde eu me sinta tão pleno e tão completo eternizando dentro da minha cabeça todos os instantes, todos os ângulos que meus amores e a minha visão me permitirem. E que cada noite, ainda que mortos de sono ou de tesão, ainda que em movimentos bruscos ou na calmaria dos corpos e mentes já cansados, cada noite dessas eu me derreta pra depois me recolher maior, mais vivo e mais forte, mesmo sem demonstrar, mesmo sem ser percebido.

E saindo de casa com as olheiras fundas e um sorriso incontrolável no rosto. Na minha cabeça as velhinhas na rua com seus poodles e os comerciantes abrindo suas lojas se sentirão agredidos pelo meu transbordante sentimento cheirando e irradiando a violência que acompanha toda paixão. Violência no sentido mais elementar do termo, de não sair ileso, de estar pra sempre marcado, de ter sido fortemente violado. Ir andando com o sangue correndo apressado pelas minhas veias, meu coração se contraindo e dilatando numa velocidade nova e imensa. Daí as vontades de dar voltas correndo pelo quarteirão, igualar a velocidade do meu corpo com a
velocidade que corre aqui dentro de mim. O que vai ser agora?

Eu não sou daqueles que tem respostas prontas, tão objetivas assim, mas procuro uma intensidade que só é suprida quando puder pensar sem medo que “mañana es otro día”, sem todo aquele peso de responsabilidade esmagando nossas cabeças e nossas possibilidades. Ainda temos tanto… sinto que existem incontáveis potências a serem convertidas em atos, e a chama que eu tanto preciso pra me manter aquecido até que alcance o desejado estado de fervura. O estado radical da fervura, que se estende à todas as esferas da vida, desde a violência de uma mordida no pescoço, até o ódio ativo e construtivo à esse mundo insano e arruinado.

É que me sinto vivo de verdade quando posso desejar sem limites.
E sentir-se vivo de verdade é o passo crucial ainda que não se saiba o caminho…

A partir daqui e até o infinito possível..."

Comunidade




Co-mu-ni-da-de – s. 1. um corpo de pessoas com os mesmos interesses. 2. [Ecol.] um agregado de organismos com relações de mutualismo. 3. um conceito invocado para estabelecer solidariedade, geralmente quando a base para tal afiliação está ausente ou quando o conteúdo atual dessa afiliação contradiz o objetivo político da solidariedade. 

Comunidade, palavra que obviamente significa mais que, digamos, vizinhança, é um termo muito enganoso, mas um critério contínuo de valor radical. De fato, todos os tipos de pessoas recorrem a ele, de acampamentos pacifistas próximos de áreas de testes nucleares até esquerdistas do tipo “servir ao povo” com seu direcionamento de sacrifício-e-manipulação aos colonizadores africanos proto-fascistas. É invocado por uma variedade de propósitos e objetivos, mas como uma noção libertadora é uma ficção. Todos sentem a falta da comunidade, porque a irmandade humana deve lutar, até para remotamente existir, contra o que a “comunidade” é na realidade. A família nuclear, a religião, a nacionalidade, o trabalho, a escola, a propriedade, a especialidade de papéis – algumas combinações dessas coisas parecem comprometer toda comunidade sobrevivente desde a imposição da civilização. Então estamos lidando com uma ilusão, e argumentar que alguma forma qualitativamente superior de comunidade é permitida dentro da civilização é afirmar a civilização. A positividade promove a mentira de que o autenticamente social pode co-existir com a domesticação. A respeito disso, o que realmente acompanha a dominação, como comunidade, é no máximo o protesto de classe-média de “respeite o sistema”. 

Fifth Estate, por exemplo, recorta sua crítica (parcial) da civilização sustentando a comunidade e amarrando ela em cada uma de suas outras sentenças. Às vezes parece que um ocasional filme de Hollywood (e.g. Emerald forest, Dança com lobos) ultrapassa nossos jornais anti-autoritários mostrando que a solidariedade surge da não-civilização e seu combate com a “comunidade” da modernidade industrial. 

Jacques Camatte discutiu o movimento do capital de um estágio de dominação formal para um de dominação real. Mas parece haver terrenos significantes onde projetar a erosão contínua do apoio para a comunidade existente e o desejo genuíno de solidariedade e liberdade. Como Fredy Perlman colocou, próximo do fim do seu excepcional Against His-Story, Against Leviathan!: “O que se sabe é que o Leviatã, o grande artifício, simples e global pela primeira vez, na Sua-estória, está decompondo-se... É uma boa hora para as pessoas deixarem sua sanidade, suas máscaras e armaduras, e ficarem loucas, pois elas já estão sendo ejetadas de suas belas polis”. 

A recusa da comunidade pode ser considerada um isolamento auto-destrutivo, mas parece preferível, mais saudável, a declarar nossa submissão a fabrica diária de um crescente mundo auto-destrutivo. Alienação aumentada não é uma condição escolhida por aqueles que insistem no verdadeiramente social sobre o falsamente comunal. Está presente em qualquer caso, pelo conteúdo da comunidade. Oposição ao estranhamento da existência civilizada, pacificada, deve pelo menos chegar a nomear este estranhamento ao invés de celebrá-lo chamando-o de comunidade. 

A defesa da comunidade é um gesto conservador que se afasta da ruptura radical necessária. Por que defender aquilo para o qual somos reféns? Na verdade, não há comunidade. E só abandonando aquilo que é passado com este nome podemos nos mover para resgatar a visão da comunidade e a vibrante conectividade num mundo que não carrega nenhuma semelhança com este. Só uma “comunidade” negativa, baseada explicitamente no desprezo pelas categorias da comunidade existente, é legítima e apropriada para nossas intenções.

A civilização é um esquema de pirâmide





A floresta é tão fechada que você entra na cidade sem saber que ela está lá. Então assombras se aprofundam e, olhando pelas folhas, você vê uma torre de pedra queimando no sol. Os prédios poderiam ser montes ou encostas, a não ser por uma escada coberta de raízes, uma estátua com musgos, uma inscrição. Você anda o dia todo, e nunca deixa a floresta ou a cidade. Uma parece crescer da outra – árvores dos prédios, prédios das árvores – como se sempre estiveram juntas, como se as pedras fossem cortadas e erguidas pelos jaguares, que fazem suas tocas nos vãos, como se as inscrições contassem os épicos dos morcegos. 


            As pessoas de nosso tempo vieram e cavaram por baixo das ruas e pisos, perguntando, o que aconteceu aqui? Onde foram os construtores? O que silenciou os escritores? Por que os astrônomos, que podiam traçar a trajetória dos planetas no passado e no futuro, estavam cegos para sua própria catástrofe? Senão cegos, por que impotentes? 



            A queda da civilização maia clássica no século nove por muito tem intrigado os arqueólogos. Agora respostas estão surgindo que devem preocupar todos nós. Tikal, a maior cidade, parece uma Manhattan de pirâmides em arte deco (a arquitetura maia influenciou o estilo moderno) presidindo sobre uma área urbanizada de 120 quilômetros quadrados. Levou 1500 anos para atingir esse tamanho, ainda assim todos os arranha-céus de Tikal foram construídos em seu século final, um extravagante florescimento na véspera do colapso. 



            Copan é menos grandiosa, com uma escultura intrincada, as estátuas de seus reis radiando ordem e refinamento. Mas escavações mostraram que esta cidade, pelos séculos, arruinou o solo rico em que cresceu. A melhor terra foi pavimentada, os montes foram achatados para fazer fazendas. A classe governante (revelada por seus ossos) cresceu alta e gorda; os camponeses ficaram magros. O fim foi uma agonia de caos ecológico e social, uma luta por recursos num mundo lotado. Escavações em Dos Pilas mostraram um momento finais. As pessoas se juntando no centro da cidade, tirando as pedras dos templos para fazer barricadas. 



            A Terra é cheia de cidades mortas. Civilizações, como indivíduos, nascem, crescem e morrem. Exceto a nossa. A nossa, acreditamos, é diferente. A beneficiária de todo o resto. A tarde ensolarada em que estamos vai se estender para sempre. Nesta crença, nós estendemos nossas vidas contra a evidência do tempo. 



            A civilização (eu uso o termo no sentido antropológico, significando sociedades complexas e populosas) é, para ser direto, um experimento de 10000 anos de começa com a invenção da agricultura e áreas chave, no leste próximo, sudoeste da Ásia, Meso-américa e Peru. A agricultura levou às cidades, aos especialistas e aos sacerdotes, ao governo de muitos por poucos. Com isso vieram coisas maravilhosas: arte, literatura, música, ciência. A civilização também retirou outras formas de vida, geralmente forçosamente. Agora não há alternativas viáveis, nenhum espaço branco no mapa. Não há retorno sem desastre. Enquanto subimos as escadas do progresso, as chutamos para baixo. 



            Dez mil anos pode parecer tempo bastante para declarar um sucesso irreversível. Mas é menos que 1 por cento da nossa carreira na Terra. Até nossa subespécie moderna, homo sapiens, existiu 10 vezes mais tempo que a civilização. O modo de vida sedentário que tratamos como normal hoje em dia não é o modo de vida em que, e para o qual, nós evoluímos. Então porque não havia civilizações em qualquer lugar até 10000 anos atrás, quando elas surgiram independentemente em quase todos os continentes? 



            A data é significante, e possivelmente a própria explicação. Estudos do clima antigo mostram que o clima do mundo tem estado estranhamente estável desde o fim da última era do gelo. Não poderíamos ter inventado a agricultura antes, mesmo que tentássemos. Agora encaramos a evidência de que a civilização por si mesma está desestabilizando o longo período de clima bom no qual cresceu. 



            Civilizações se erguem porque elas encontram novas formas de explorar os recursos humanos e naturais, para forçar a balança entre cultura e natureza. Elas se alimentam da ecologia local até que se degrade, prosperando apenas enquanto cresce. Quando não podem mais se expandir, caem vítimas do seu próprio sucesso. A civilização é um esquema de pirâmide. 



            O espaço entre ascensão e queda é uma questão de escala, de demanda superando os limites naturais. Bandos nômades de caçadores coletores poderiam viver nos pântanos e planícies do leste próximo indefinidamente. Seu impacto era leve, seus números cresciam e diminuíam de acordo com a abundância de presas e vegetação. Então, lentamente, eles começaram a plantar e colher. Tudo foi bem por um bom tempo, trazendo excesso e estabilidade para o suprimento de comida. Em terras onde alguns antes andavam, milhares agora trabalhavam em campos de trigo. Em tempos vagarosos do ano, ficavam ocupados com trabalhos públicos e monumentos. Este foi o fim do Éden, o começo do nosso mundo. 



            Mas havia um custo, um débito com a natureza acontecendo tão gradualmente que mal foi observado, quanto mais compreendido. Florestas diminuíam e retrocediam, a terra desnuda trazia secas e inundações (incluindo, talvez, o Dilúvio), campos irrigados se ficaram gastos. As cidades da planície transformaram seus arredores em desertos. O deserto em que suas ruínas estão são desertos criados por elas. 



            No passado, esses ciclos eram regionais. Enquanto Roma caía no mediterrâneo, os Maias ascendiam na América Central, e assim por diante; as perdas eram locais, o experimento como um todo continuou. Mas agora as apostas de 10000 anos todas recaem num único lance. Temos uma grande civilização, se alimentando da Terra inteira numa taxa em que podemos observar a exaustão de capital natural em nossos períodos de vida, seja a perda de vida selvagem, água, recifes de corais ou florestas. Estamos devastando florestas em todo lugar, estamos irrigando em todo lugar, estamos pescando em todo lugar, e nenhum canto da biosfera escapa da nossa hemorragia de lixo. Mesmo que parássemos nesse minuto, nosso domínio sobre a Terra ainda apareceria nos vestígios fósseis tão feio quanto o impacto de um asteróide. 



            Há um ditado na Argentina que diz que toda noite Deus limpa a bagunça que os argentinos fazem durante o dia. Isto parece ser o que todos nós estamos esperando. Durante apenas o século XX nossa população multiplicou-se por quatro, enquanto o consumo cresceu por 40. Ainda assim o número de pessoas em pobreza abjeta é tão grande quanto de toda humanidade em 1900. Isto é progresso? Pode o mercado ser confiável para governar o mundo? Ou nossa explosão consumista é a riqueza ilusória de herdeiros gastando sua herança – e de forma alguma apenas a deles. É a promessa de prosperidade para seis bilhões a maior mentira de nosso tempo? 



            A história logo vai responder a grande questão: O experimento de 10000 anos acabará sendo uma falha? Na minha sátira distópica, Um Romance Científico, eu imaginei o veredicto que podemos ouvir. Nossas cidades atarefadas caem tão silenciosas quanto Tikal. Espero estar errado. O que é certo é que temos uma última chance, no máximo, para nos equilibrar direito. Na há mais espaço para erros, nem sequer espaço para não fazer nada. Se falharmos em limitar nosso número e impacto, se não trocarmos nossa economia sedenta por ouro por um compartilhamento racional do que a terra pode suportar este novo século não vai ficar velho antes de entrarmos numa era de caos e colapso que irá ultrapassar todas as idades das trevas do nosso passado. 



            A história mostra que tal reforma é improvável. Assim como os eventos correntes. De acordo com os cálculos das Nações Unidas, os três indivíduos mais ricos têm uma riqueza total igual aos 48 países mais pobres. Enquanto escrevo, o maior poder que já existiu está planejando gastar 60 bilhões de dólares numa nova corrida armamentista, uma quantia que pode prover o mundo com água potável segura e deixar 20 bilhões de troco. A típica resposta do poder é continuar construindo pirâmides mais altas enquanto as nuvens de tempestade se acumulam; como aqueles reis maias mortos.

DESOBEDIÊNCIA – A virtude original do homem



Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres sao gratos a caridade.Alguns o sao, sem duvida, mas os melhores entre eles jamais o serao. Sao ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes - e tem razao. Consideram que a caridade e uma forma inadequada e ridicula de restituicao parcial, uma esmola, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidao pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebe-lo. 

Quanto ao descontentamento, qualquer homem que nao se sentisse descontente com o pessimo ambiente e o baixo nivel de vida que lhe sao reservados seria realmente muito estupido. Qualquer pessoa que tenha lido a historia da humanidade aprendeu que a desobediencia e a virtude original do homem. O
progresso e uma consequencia da desobediencia e da rebeliao.

 Muitas vezes elogiamos os pobres por serem economicos. Mas recomendar aos pobres que poupem e algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que esta morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve - o que para muitos e uma forma de roubo.  

Quanto a mendicancia, e muito mais seguro mendigar do que roubar, mas e melhor roubar do que mendigar. Nao! Um pobre que e ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar tera, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representara uma saudavel forma de protesto. 

Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles mas jamais
admira-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preco muito baixo. Devem ser tambem extraordinariamente estupidos. Posso entender um homem que aceita as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar
alguma forma de atividade intelectual sob tais condicoes. 

Mas nao consigo entender como alguem que tem uma vida medonha gracas a essas leis possa ainda concordar com a sua continuidade. Entretanto, a explicacao nao e dificil, pelo contrario. A miseria e a pobreza sao de tal modo degradantes e exercem um efeito tao paralizante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciencia do seu proprio sofrimento. E preciso que outras pessoas venham aponta-lo e mesmo assim muitas vezes nao acreditam nelas. O que os patroes dizem sobre os agitadores e totalmente verdadeiro. Os agitadores sao um bando de pessoas intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situacao em que vivem e semeiam o descontentamento nele. 

E por isso que os agitadores sao necessarios. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilizacao nao avancaria. A abolicao da escravatura na America nao foi uma consequencia da acao direta dos escravos nem uma expressao do seu desejo de liberdade. 

A escravidao foi abolida gracas a conduta totalmente ilegal de
agitadores vindos de Boston e de outros lugares, que nao eram escravos, nao tinham escravos nem qualquer relacao direta com o problema. Foram eles, sem duvida, que comecaram tudo. E curiosos lembrar que dos proprios escravos eles recebiam pouquissima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tao livres que podiam ate morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situacao. Para o pensador, o fato mais tragico da revolucao francesa nao foi o de que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendee tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.

A Violencia das Leis



Muitas constituições foram criadas - a começar pela inglesa e a estadunidense, terminando com a japonesa e a turca - de modo a fazer com que as pessoas acreditassem que todas as leis estabelecidas atendiam a desejos expressos pelo povo. Mas a verdade é que não só nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres - como a Inglaterra, os EUA, a França e outros - as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles que detêm o poder. Portanto elas serão sempre, e em toda parte, aqueles que mas vantagens possam trazer à classe dominante e aos poderosos. Em toda a parte e sempre, as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas, perda da liberdade e assassinato. Não há outro meio. 

Nem poderia ser de outro modo, já que as leis são uma forma de exigir que determinadas regras sejam cumpridas e de obrigar determinadas pessoas a cumpri-las (ou seja, fazer o que outras pessoas querem que elas façam) e isso só pode ser obtido com pancadas, com a perda da liberdade e com a morte. Se as leis existem, é necessário que haja uma força capaz de fazer com que alguns seres se submetam à vontade de outros e esta força é a violência. Não a violência simples, que alguns homens usam contra seus semelhantes em momento de paixão, mas uma violência organizada, usada por aqueles que têm o poder nas mãos para fazer com que os outros obedeçam à sua vontade. 

Assim, a essência da Legislação não está no Sujeito, no Objeto, no Direito, na idéia do domínio da vontade coletiva do povo ou em qualquer outra condição tão confusa e indefinida, mas sim no fato de que aqueles que controlam a violência organizada dispõe de poderes para forçar os outros a obedecê-los, fazendo aquilo que eles querem que seja feito 

Assim, uma definição exata e irrefutável para legislação, que pode ser entendida por todos, é esta: "As leis são regras feitas por pessoas que governam por meio da violência organizada que, quando não acatamos, podem fazer com que aqueles que se recusam a obedecê-las sofram pancadas, a perda da liberdade e até mesmo a morte".

Não matem o mensageiro por revelar verdades incómodas

  

Em 1958 o jovem Rupert Murdoch, então proprietário e editor do jornal The News, de Adelaide, escreveu: "Na corrida entre o segredo e a verdade, parece inevitável que a venda sempre vença".

A sua observação talvez reflicta o desmascaramento feito pelo seu pai, Keith Murdoch, de que tropas australianas estavam a ser sacrificadas inutilmente nas praias de Galipoli por comandantes britânicos incompetentes. Os britânicos tentaram calá-lo mas Keith Murdoch não foi silenciado e os seus esforços levaram ao término da desastrosa campanha de Galipoli.

Aproximadamente um século depois, WikiLeaks está também a publicar destemidamente factos que precisam ser tornados públicos.

Criei-me numa cidade rural em Queensland onde as pessoas falavam dos seus pensamentos directamente. Elas desconfiavam do governo como de algo que podia ser corrompido se não fosse vigiado cuidadosamente. Os dias negros de corrupção no governo de Queensland antes do inquérito Fitzgerald testemunham do que acontece quando políticos amordaçam os media que informam a verdade.

Estas coisas ficaram em mim. WikiLeaks foi criado em torno destes valores centrais. A ideia, concebida na Austrália, era utilizar tecnologias da Internet de novas maneiras a fim de relatar a verdade.

WikiLeaks cunhou um novo tipo de jornalismo: jornalismo científico. Trabalhamos com outros media para levar notícias às pessoas, assim como para provar que são verdadeiras. O jornalismo científico permite-lhe ler um artigo e então clicar online para ver o documento original em que se baseia. Esse é o modo como pode julgar por si próprio: Será verdadeiro este artigo? Será que o jornalista informou com rigor?

Sociedades democráticas precisam de meios de comunicação fortes e WikiLeaks faz parte desses media. Os media ajudam a manter o governo honesto. WikiLeaks revelou algumas verdades duras acerca das guerras do Iraque e Afeganistão, e desvendou notícias acerca da corrupção corporativa.

Há quem diga que sou anti-guerra: para que conste, não sou. Por vezes os países precisam ir à guerra e há guerras justas. Mas não há nada mais errado do que um governo mentir ao seu povo acerca daquelas guerras, pedindo então a estes mesmos cidadãos para porem as suas vidas e os seus impostos ao serviço daquelas mentiras. Se uma guerra é justificada, então digam a verdade e o povo decidirá se a apoia.

Se já leu algum dos registos da guerra do Afeganistão ou do Iraque, algum dos telegramas da embaixada dos EUA ou algumas das histórias acerca das coisas que WikiLeaks informou, considere quão importante é para todos os media ter capacidade para relatar estas coisas livremente.

WikLeaks não é o único divulgador dos telegramas de embaixadas dos EUA. Outros media, incluindo The Guardian britânico, The New York Times, El Pais na Espanha e Der Spiegel na Alemanha publicaram os mesmos telegramas.

Mas é o WikiLeaks, como coordenador destes outros grupos, que tem enfrentado os ataques e acusações mais brutais do governo dos EUA e dos seus acólitos. Fui acusado de traição, embora eu seja australiano e não cidadão dos EUA. Houve dúzias de apelos graves nos EUA para eu ser "removido" pelas forças especiais estado-unidenses. Sarah Palin diz que eu deveria ser "perseguido e capturado como Osama bin Laden", um projecto de republicano no Senado dos EUA procura declarar-me uma "ameaça transnacional" e desfazer-se de mim em conformidade. Um conselheiro do gabinete do primeiro-ministro do Canadá apelou na televisão nacional ao meu assassinato. Um bloguista americano apelou a que o meu filho de 20 anos, aqui na Austrália, fosse sequestrado e espancado por nenhuma outra razão senão a de atingir-me.

E os australianos deveriam observar com nenhum orgulho o deplorável estímulo a estes sentimentos por parte de Julia Gillard e seu governo. Os poderes do governo australiano parecem estar à plena disposição dos EUA quer para cancelar meu passaporte australiano ou espionar ou perseguir apoiantes do WikiLeaks. O procurador-geral australiano está a fazer tudo o que pode para ajudar uma investigação estado-unidense destinada claramente a enquadrar cidadãos australianos e despachá-los para os EUA.

O primeiro-ministro Gillard e a secretária de Estado Hillary Clinton não tiveram uma palavra de crítica para com as outras organizações de media. Isto acontece porque The Guardian, The New York Times e Der Spiegel são antigos e grandes, ao passo que WikiLeaks ainda é jovem e pequeno.

Nós somos os perdedores. O governo Gillard está a tentar matar o mensageiro porque não quer que a verdade seja revelada, incluindo informação acerca do seu próprio comportamento diplomático e político.

Terá havido alguma resposta do governo australiano às numerosas ameaças públicas de violência contra mim e outros colaboradores do WîkLeaks? Alguém poderia pensar que um primeiro-ministro australiano defendesse os seus cidadãos contra tais coisas, mas houve apenas afirmações de ilegalidade completamente não fundamentadas. O primeiro-ministro e especialmente o procurador-geral pretendem cumprir seus deveres com dignidade e acima da perturbação. Fique tranquilo, aqueles dois pretendem salvar as suas próprias peles. Eles não conseguirão.

Todas as vezes que WikiLeaks publica a verdade acerca de abusos cometidos por agências dos EUA, políticos australianos cantam um coro comprovadamente falso com o Departamento de Estado: "Você arriscará vidas! Segurança nacional! Você põe tropas em perigo!" Mas a seguir dizem que não há nada de importante no que WikiLeaks publica. Não pode ser ambas as coisas, uma ou outra. Qual é?

Nenhuma delas. WikiLeaks tem um historial de publicação quatro anos. Durante esse tempo mudámos governos, mas nem uma única pessoa, que se saiba, foi prejudicada. Mas os EUA, com a conivência do governo australiano, mataram milhares de pessoas só nestes últimos meses.

O secretário da Defesa dos EUA, Robert Gates, admitiu numa carta ao congresso estado-unidense que nenhumas fontes de inteligência ou métodos sensíveis haviam sido comprometidos pela revelação dos registos de guerra afegãos. O Pentágono declarou que não havia evidência de que as informações do WikiLeaks tivessem levado qualquer pessoa a ser prejudicada no Afeganistão. A NATO em Cabul disse à CNN que não podia encontrar uma única pessoa que precisasse de proteger. O Departamento da Defesa australiano disse o mesmo. Nenhuma tropa ou fonte australiana foi prejudicada por qualquer coisa que tivéssemos publicado.

Mas as nossas publicações estavam longe de serem não importantes. Os telegramas diplomáticos dos EUA revelam alguns factos estarrecedores:
  • Os EUA pediram aos seus diplomatas para roubar material humano pessoal e informação de responsáveis da ONU e de grupos de direitos humanos, incluindo DNA, impressões digitais, escanerização de íris, números de cartão de crédito, passwords de Internet e fotos de identificação, violando tratados internacionais. Presumivelmente, diplomatas australianos na ONU também podem ser atacados.

  • O rei Abdula da Arábia Saudita pediu que os EUA atacassem o Irão.

  • Responsáveis na Jordânia e no Bahrain querem que o programa nuclear do Irão seja travado por quaisquer meios disponíveis.

  • O inquérito do Iraque na Grã-Bretanha foi viciado para proteger "US interests".

  • A Suécia é um membro encoberto da NATO e a partilha da inteligência dos EUA é resguardada do parlamento.

  • Os EUA estão a agir de forma agressiva para conseguir que outros países recebam detidos libertados da Baia de Guantanamo. Barack Obama só concordou em encontrar-se com o presidente esloveno se a Eslovénia recebesse um prisioneiro. Ao nosso vizinho do Pacífico, Kiribati, foram oferecidos milhões de dólares para aceitar detidos.
Na sua memorável decisão no caso dos Pentagon Papers, o Supremo Tribunal dos EUA declarou: "só uma imprensa livre e sem restrições pode efectivamente revelar fraude no governo". Hoje, a tempestade vertiginosa em torno do WikiLeaks reforça a necessidade de defender o direito de todos os media revelarem a verdade.
08/Dezembro/2010

Do capitalismo como ‘sistema parasitário’



Tal como o recente “tsunami financeiro” demonstrou a milhões de pessoas que acreditavam nos mercados capitalistas e na banca capitalista como métodos evidentes para a resolução exitosa de problemas, o capitalismo se especializa na criação de problemas, não em sua resolução.
Assim como os sistemas dos números naturais do famoso teorema de Kurt Gödel, o capitalismo não pode ser ao mesmo tempo coerente e completo. Se é coerente com seus próprios princípios, surgem problemas que não pode abordar; e se trata de resolvê-los, não pode fazê-lo sem cair na falta de coerência com suas próprias premissas. Muito antes que Gödel escrevesse seu teorema, Rosa Luxemburgo publicou seu estudo sobre a “acumulação capitalista” em que sugeria que o capitalismo não pode sobreviver sem economias “não capitalistas”; pode proceder de acordo com os seus princípios sempre que tiver “territórios virgens” abertos à expansão e à exploração. Mesmo quando os conquista com finalidades de exploração, o capitalismo os priva de sua virgindade pré-capitalista e dessa forma esgota as reservas que o nutrem. Em boa medida, é como uma serpente que devora o seu próprio rabo: num primeiro momento os alimentos são abundantes, mas logo se torna cada vez mais difícil comê-los, e pouco depois não resta mais nada para comer nem quem os coma…
O capitalismo é, na essência, um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante algum tempo uma vez que encontra o organismo ainda não explorado do qual pode se alimentar, mas não pode fazê-lo sem prejudicar o hospedeiro nem sem destruir cedo ou tarde as condições de sua prosperidade ou até de sua própria sobrevivência.
Rosa Luxemburgo, que escreveu em uma era de imperialismo ascendente e conquista territorial, não foi capaz de prever que as terras pré-modernas de continentes exóticos não eram os únicos possíveis “hospedeiros” dos quais o capitalismo poderia se alimentar para prolongar a sua vida e iniciar sucessivos ciclos de prosperidade. O capitalismo revelou desde então seu incrível talento para buscar e encontrar novas espécies de hospedeiro cada vez que a espécie explorada anteriormente diminuía em número. Uma vez que anexou todas as terras virgens “pré-capitalistas”, o capitalismo inventou a “virgindade secundária”. Milhões de homens e mulheres que se dedicavam a economizar em vez de viver do crédito foram transformados com astúcia em um desses territórios virgens ainda não explorados.
A introdução dos cartões de crédito foi o indício do que se avizinhava. Os cartões de crédito apareceram no mercado com uma consigna eloquente e sedutora: “Elimine a espera para concretizar o desejo”. Deseja algo, mas não economizou o suficiente para comprá-lo? Bom, nos velhos tempos, que felizmente já ficaram para trás, era preciso postergar as satisfações (esse adiamento, segundo Max Weber, um dos pais da sociologia moderna, era o princípio que tornou possível o advento do capitalismo moderno): apertar o cinto, negar outros prazeres, gastar de maneira prudente e frugal e economizar o dinheiro que se podia separar com a esperança de que com o devido cuidado e paciência se reuniria o suficiente para concretizar os sonhos.
Graças a Deus e à benevolência dos bancos, já não é mais assim. Com um cartão de crédito, essa ordem pode ser invertida: desfrute agora, pague depois! O cartão de crédito nos dá a liberdade de manipular as próprias satisfações, de obter as coisas quando as queremos, não quando as ganhamos e podemos pagar.
Com a finalidade de evitar reduzir o efeito dos cartões de crédito e do crédito fácil a só um lucro extraordinário para aqueles que emprestam, a dívida teria que (e o fez com grande rapidez!) transformar-se em um atrativo permanente de geração de lucros. Não consegue pagar a dívida? Não se preocupe: ao contrário dos antigos emprestadores, ansiosos para recuperar o que haviam emprestado no prazo fixado de antemão, nós, os modernos emprestadores amistosos, não pedimos o reembolso de nosso dinheiro, mas lhe oferecemos ainda mais crédito para devolver a dívida anterior e ficar com algum dinheiro adicional (quer dizer, dívida) para pagar novos prazeres. Somos os bancos de quem gosta de dizer “sim”. Os bancos amistosos. Os bancos sorridentes, como afirmava um dos comerciais mais criativos.
A armadilha do crédito
O que nenhum dos comerciais declarava abertamente era que na realidade os bancos não queriam que seus devedores quitassem os empréstimos. Se os devedores devolvessem pontualmente os empréstimos, já não estariam endividados. É sua dívida (o juro mensal que se paga sobre a mesma) que os emprestadores modernos amistosos (e de uma notável sagacidade) decidiram e conseguiram reformular como a fonte principal de seu lucro ininterrupto. Os clientes que devolvem com rapidez o dinheiro que pegaram emprestado são o pesadelo dos emprestadores. As pessoas que se negam a gastar o dinheiro que não ganharam e se abstêm de pedi-lo emprestado não são úteis aos emprestadores, assim como também as pessoas que (motivadas pela prudência ou por um sentido antiquado de honra) se apressam a pagar suas dívidas a tempo. Para benefício seu e de seus acionistas, os bancos e provedores de cartões de crédito dependem agora de um “serviço” ininterrupto de dívidas e não do rápido reembolso das mesmas. Pelo que a eles concerne, um “devedor ideal” é que aquele que nunca paga completamente o crédito. Pagam-se multas se se quer quitar a totalidade de um crédito hipotecário antes do prazo estabelecido… Até a recente “crise do crédito”, os bancos e emissores de cartões de crédito se mostravam mais que dispostos a oferecer novos empréstimos a devedores insolventes para cobrir os juros não pagos de créditos anteriores. Uma das principais companhias de cartões de crédito da Grã-Bretanha se negou, há pouco tempo, a renovar os cartões dos clientes que pagavam a totalidade de sua dívida cada mês e, portanto, não incorriam em juro punitivo algum.
Para resumir, a “crise do crédito” não foi resultado do fracasso dos bancos. Pelo contrário, foi um resultado completamente previsível, se bem que inesperado, o fruto de seu notável sucesso: sucesso no relativo a transformar a enorme maioria dos homens e mulheres, velhos e jovens, em um exército de devedores. Obtiveram o que queriam conseguir: um exército de devedores eternos, a autoperpetuação da situação de “endividamento”, ao passo que se buscam mais dívidas como única instância realista de economia a partir das dívidas em que já se incorreu.
Ingressar nessa situação ficou mais fácil do que nunca na história da humanidade, ao passo que sair da mesma nunca foi tão difícil. Já se tentou, seduziu e endividou todos aqueles que podiam se converter em devedores, assim como a milhões de outros aos quais não se podia nem devia incitar a pedir empréstimos.
Como em todas as mutações anteriores do capitalismo, também desta vez o Estado assistiu ao estabelecimento de novos terrenos férteis para a exploração capitalista: foi por iniciativa do presidente Clinton que se introduziram nos Estados Unidos as hipotecas subprime patrocinadas pelo governo para oferecer crédito para a compra de casas a pessoas que não tinham meios para reembolsar esses empréstimos, e para transformar assim em devedores setores da população que até o momento haviam sido inacessíveis à exploração mediante o crédito…
Contudo, assim como o desaparecimento das pessoas descalças significa problemas para a indústria do calçado, o desaparecimento das pessoas não endividadas anuncia um desastre para o setor do crédito. A famosa profecia de Rosa Luxemburgo se cumpriu uma vez mais: outra vez o capitalismo esteve perigosamente próximo do suicídio ao conseguir esgotar a reserva de novos territórios virgens para a exploração…
Até agora, a reação à “crise do crédito”, por mais impressionante e até revolucionária que possa parecer, uma vez processada nas manchetes dos meios de comunicação e nas declarações dos políticos, foi “mais do mesmo”, com a vã esperança de que as possibilidades revigoradas de lucro e consumo dessa etapa ainda não se tenham esgotado por completo: uma tentativa de recapitalizar os emprestadores de dinheiro e de fazer que seus devedores voltem a ser dignos de crédito, de modo tal que o negócio de emprestar e tomar emprestado, de se endividar e permanecer nesse estado, possa retornar ao “habitual”.
O Estado de Bem-estar social para os ricos (que, ao contrário de seu homônimo para os pobres, nunca viu questionada a sua racionalidade, e muito menos interrompidas as suas operações) voltou aos salões de exposição após abandonar as dependências de serviço para onde seus escritórios haviam sido transferidos de forma temporária para evitar comparações invejosas.
O que os bancos não podiam obter – por meio de suas habituais táticas de tentação e sedução –, o fez o Estado mediante a aplicação de sua capacidade coercitiva, ao obrigar a população a incorrer de forma coletiva em dívidas de proporções sem precedentes: hipotecando o nível de vida de gerações que ainda não haviam nascido…
Os músculos do Estado, que fazia muito tempo que não eram usados com essas finalidades, voltaram a se flexionar em público, desta vez em prol da continuação do jogo cujos participantes fazem com que esta flexão seja considerada indigna, mas inevitável; um jogo que, curiosamente, não pode suportar que o Estado exercite seus músculos, mas não pode sobreviver sem ele.
Agora, centenas de anos depois que Rosa Luxemburgo tornou pública a sua intuição, sabemos que a força do capitalismo reside em seu incrível talento de buscar e encontrar novas espécies de hospedeiros toda vez que as espécies exploradas anteriormente diminuem de número ou se extinguem e no oportunismo e na velocidade, semelhante aos de um vírus, com as quais se adapta às idiossincrasias das suas novas pastagens. No número de novembro de 2008 do The New York Review of Books (no artigo “A crise e o que fazer a respeito”), o brilhante analista e mestre da arte do marketing George Soros apresentou o itinerário das empresas capitalistas como uma sucessão de “bolhas” que se expandiam para além de sua própria capacidade e extouravam com rapidez uma vez que atingiam o limite de sua resistência.
A “crise do crédito” não marca o fim do capitalismo; apenas o esgotamento de uma de suas sucessivas pastagens… A busca de uma nova relva começará logo, alimentada, assim como no passado, pelo Estado capitalista mediante a mobilização compulsiva de recursos públicos (usando os impostos em vez do poder de sedução, deficitário e temporariamente não operativo, do mercado). Buscar-se-ão novas “terras virgens” e se tentará, de um modo ou de outro, abri-las à exploração até que suas possibilidades de aumentar os lucros de acionistas e as bonificações dos dirigentes fique por sua vez esgotada.
Como sempre (como também aprendemos no século XX a partir de uma longa série de descobrimentos matemáticos desde Henri Poincaré até Edward Lorenz) um mínimo passo em falso pode levar a um precipício e terminar em uma catástrofe. Até minúsculos passos em frente podem desencadear inundações e terminar em dilúvio…
Os anúncios de outro “descobrimento” de uma ilha desconhecida atraem multidões de aventureiros que ultrapassam em muito as dimensões do território virgem, multidões que num abrir e fechar de olhos teriam que voltar correndo às suas embarcações para fugir do iminente desastre, esperando contra toda esperança que as embarcações sigam aí, intactas, protegidas…
A grande questão é em que momento a lista de terras disponíveis para uma “virginização secundária” se esgotará, e as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam, deixarão de gerar respiros temporários. Os mercados, que estão dominados pela “mentalidade caçadora” líquida moderna que substituiu a atitude de guarda-florestal pré-moderna e a clássica postura moderna de jardineiro, seguramente não vão se incomodar em colocar essa pergunta, dado que vivem de uma alegre escapada de caça a outra como outra oportunidade para adiar o momento da verdade, não importa se por um momento breve nem a que preço.
Ainda não começamos a pensar com seriedade na sustentabilidade da nossa sociedade movida a crédito e consumo. “A volta à normalidade” prognostica uma volta a vias sempre mais perigosas. A intenção de fazê-lo é alarmante: indica que nem os dirigentes das instituições financeiras, nem os nossos governos, chegaram ao fundo do problema com seus diagnósticos, e muito menos com seus atos.
Parafraseando Héctor Sants, diretor da Autoridade de Serviços Financeiros, que há pouco confessou a existência de “modelos empresariais mal equipados para sobreviver ao estresse (…), algo que lamentamos”, Simon Jenkins, um analista do The Guardian de extraordinária perspicácia, observou que “foi como se um piloto protestasse porque seu avião funciona bem com exceção dos motores”.

Da Miséria no meio estudantil



Após um longo período de sono letárgico e de contra-revolução permanente, esboça-se, desde há alguns anos, um novo período de contestação de que parece ser portadora a juventude. Mas a sociedade do espectáculo, na representação que faz de si mesma e dos seus inimigos, impõe as suas categorias ideológicas para a compreensão do mundo e da história. Ela conduz tudo quanto aí se desenrola à ordem natural das coisas, encerrando as verdadeiras novidades que anunciam a sua superação no contexto restrito da sua ilusória novidade. A revolta da juventude contra o modo de vida que se lhe impõe não é, na realidade, mais do que o sinal precursor duma vasta subversão que englobará o conjunto dos indivíduos que sentem cada vez mais a impossibilidade de viver; não é mais do que o prelúdio da próxima época revolucionária. Só que a ideologia dominante e os seus órgãos diários, segundo mecanismos experimentados de inversão da realidade, não podem deixar de reduzir este movimento histórico real a uma pseudocategoria socio-natural: a Ideia de Juventude (cuja essência consistiria na revolta). Reduzindo, deste modo, uma nova juventude da revolta à eterna revolta da juventude - que renasceria em cada geração para se apagar quando o "jovem é tomado pela seriedade da produção e pela actividade com vista a fins concretos e verdadeiros". A "revolta dos jovens" foi e é ainda objecto duma verdadeira praga jornalística, que dela faz o espectáculo duma "revolta" possível oferecida à contemplação para impedir que se a viva, como esfera aberrante -já integrada- necessária ao funcionamento do sistema social; esta revolta contra a sociedade tranquiliza a sociedade porque se a imagina como coisa parcial, e como coisa parcial que como tal se mantenha, no apartheid das "questões da juventude" -do mesmo modo que haveria um problema feminino ou um problema negro -, supondo-se, assim, que haverá de durar apenas uma parte da vida. Na realidade, porém, se de facto existe um "problema da juventude" no interior da sociedade moderna é porque a crise profunda desta sociedade é ressentida com a acuidade maior pela juventude (1). Produto por excelência desta sociedade moderna, ela própria é moderna, quer para nela se integrar sem reservas, quer para a recusar radicalmente. O que é digno de admiração não é tanto que a juventude seja revoltada, mas sim que os "adultos" se mostrem tão resignados. Coisa aliás que não tem uma explicação mitológica, mas outrossim histórica: a geração precedente conheceu todas as derrotas e consumiu todas as mentiras do período de desagregação do movimento revolucionário.

Considerada em si mesma, a "juventude" constitui um mito publicitário já profundamente ligado ao modo de produção capitalista, como expressão do seu dinamismo. Esta ilusória primazia da juventude tornou-se possível com a nova arrancada da economia, após a Segunda Guerra Mundial, na sequência da introdução maciça no mercado de toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, papel este que assegura um diploma de integração na sociedade do espectáculo. Mas a explicação dominante do mundo encontra-se de novo em contradição com a realidade socio-económica (porque atrasada em relação a esta), e é justamente a juventude que começa por afirmar um irresistível furor de viver, insurgindo-se espontaneamente contra a chatice quotidiana e o tempo morto que o velho mundo continua a segregar através das suas diferentes modernizações. A fracção revoltada da juventude exprime a pura recusa, sem a consciência duma perspectiva de superação; exprime a sua recusa niilista. Esta perspectiva busca-se e constitui-se por toda a parte do mundo. Do que precisa é de atingir a coerência da crítica teórica e a organização prática duma tal coerência.


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A sociedade dominante, que se gaba da sua permanente modernização, tem agora de encontrar a quem falar, isto é, à negação modernizada que ela própria produz (8): "Deixemos agora aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos e de os chorar". As desmistificações práticas do movimento histórico desembaraçam a consciência revolucionária dos fantasmas que a perseguiam; a revolução da vida quotidiana encontra-se perante as tarefas imensas que tem de realizar. A revolução, tal como a vida que anuncia, precisa de ser reinventada. Se o projecto revolucionário continua fundamentalmente o mesmo (a abolição da sociedade de classes), isso acontece porque em nenhures as condições em que se forma foram radicalmente transformadas. Trata-se de o retomar, tal projecto, com um radicalismo e uma coerência ampliados pela experimentada falência dos seus antigos portadores, a fim de evitar que a sua realização fragmentária conduza a uma nova divisão da sociedade.

A luta entre o poder e o novo proletariado só se pode manifestar com base na totalidade; é por isso que o futuro movimento revolucionário precisa de abolir, no seu seio, tudo quanto tenda a reproduzir os produtos alienados do sistema mercantil (9). Ele precisa de ser, simultaneamente, a sua crítica viva e a negação que em si mesma contém todos os elementos da superação possível. Tal como bem o entendeu Lukács (para o aplicar, porém, a um objecto que disso não era digno, o partido bolchevista), a organização revolucionária é uma mediação necessária entre a teoria e a prática, entre o homem e a história, entre a massa dos trabalhadores e o proletariado constituído em classe. As tendências e divergências "teóricas" ,precisam de se transformar imediatamente numa questão de organização se pretendem mostrar a via da sua realização. A questão da organização constituirá a sentença final do novo movimento revolucionário, o tribunal perante o qual será julgada a coerência do seu .projecto essencial: a realização internacional do poder absoluto dos Conselhos Operários, tal como .foi esboçado pela experiência das revoluções proletárias deste século. Uma tal organização tem de salientar a critica radical de tudo aquilo que alicerceia a sociedade que combate, a saber: a produção mercantil, a ideologia sob todos os seus disfarces, o Estado e as separações por ele impostas.

A cisão entre teoria e .prática constitui o escolho em .que tropeçou o velho movimento revolucionário. Só os momentos mais altos das lutas proletárias superaram esta cisão e depararam com a sua verdade. Nenhuma organização conseguiu ainda saltar por sobre este Rodes. A ideologia, por mais "revolucionária" que se apresente, está sempre ao serviço dos chefes, e é o sinal de alarme que designa o inimigo dissimulado. É a razão por que a critica da ideologia tem de constituir, em última análise, o problema central da organização revolucionária. Só o mundo alienado produz a impostura; e a impostura não poderia reaparecer no interior do que pretende conter a verdade social sem que esta organização deixasse de se transformar, ela própria, numa nova impostura, num mundo fundamentalmente impostor.


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A história moderna só pode ser libertada e as suas inumeráveis aquisições livremente utilizadas pelas forças que recalca e expulsa: os trabalhadores sem qualquer poder sobre as condições, o sentido e o produto das suas actividades. No século XIX, o proletariado era já o herdeiro da filosofia; ele tornou-se agora o herdeiro da arte moderna e da primeira critica consciente da vida quotidiana. Não poderá suprimir-se sem realizar, ao mesmo tempo, a arte e a filosofia. Transformar o mundo e alterar a vida são para ele uma única e a mesma coisa, as inseparáveis palavras de ordem que acompanharão a sua supressão enquanto classe, a dissolução da sociedade presente enquanto reino da necessidade, e o acesso por fim possível ao reino da liberdade. A crítica radical e a reconstrução livre de todos os procedimentos e valores impostos pela realidade alienada são o seu programa máximo, e a criatividade liberta na construção de todos os momentos e acontecimentos da vida constitui a única poesia que poderá reconhecer, a poesia feita por todos, o iniciar da festa revolucionária. As revoluções proletárias serão festas ou não serão coisíssima nenhuma, porque a vida que anunciam será ela também criada sob o signo da festa. O jogo é a racionalidade última desta festa; viver sem tempos mortos e gozar sem impedimentos são as únicas regras que poderá reconhecer. 

Por que temer o espírito revolucionário árabe?



O que não pode deixar de saltar aos olhos nas revoltas Tunísia e Egito é a notável ausência do fundamentalismo islâmico. Na melhor tradição democrática secular, as pessoas simplesmente se revoltaram contra um regime opressivo, sua corrupção e pobreza, e demandaram liberdade e esperança econômica. A sabedoria cínica dos liberais ocidentais - de acordo com os quais, nos países árabes, o genuíno senso democrático é limitado a estreitas elites liberais enquanto que a vasta maioria só pode ser mobilizada através do fundamentalismo religioso ou do nacionalismo - se provou errada.

Quando um novo governo provisório foi nomeado na Tunísia, ele excluiu os islâmicos e a esquerda mais radical. A reação dos liberais presunçosos foi: bom, eles são basicamente a mesma coisa; dois extremos totalitários - mas as coisas são simples assim? O verdadeiro antagonismo de longa data não é precisamente entre islâmicos e a esquerda? Ainda que eles estejam momentaneamente unidos contra o regime, uma vez que se aproximam da vitória, a sua unidade se parte e eles se engajam numa luta mortal, frequentemente mais cruel do que aquela travada contra o inimigo comum.

Nós não testemunhamos precisamente tal luta depois das eleições no Irã? As centenas de milhares de apoiadores de Mousavi lutavam pelo sonho popular que sustentou a revolução de Khomeini: liberdade e justiça. Ainda que esse sonho tenha sido utópico, ele levou a uma explosão de criatividade política e social de tirar o fôlego, experiências de organização e debates entre estudantes e pessoas comuns. Essa abertura genuína, que liberou forças de transformação social então desconhecidas, um momento no qual tudo pareceu possível, foi então gradualmente sufocada pela dominação do controle político e do establishment islâmico.

Mesmo no caso de movimentos claramente fundamentalistas, é preciso ser cuidadoso para não perder de vista o componente social. O Talibã é usualmente apresentado como um grupo fundamentalista islâmico que impõe suas leis pelo terror. No entanto, quando, na primavera de 2009, eles tomaram o Vale de Swat no Paquistão, o The New York Times noticiou que eles arquitetaram "uma revolta de classe que explora profundas fissuras entre um pequeno grupo de ricos donos de terra e seus inquilinos desprovidos de um chão". Se, ao "se aproveitar" dos apuros dos agricultores, o Talibã estava criando, nas palavras do New York Times, "um alerta sobre os riscos ao Paquistão, que permanece sendo largamente feudal", o quê impediu os democratas liberais do Paquistão e dos Estados Unidos de, da mesma forma, "se aproveitarem" desses apuros e de tentarem ajudar os agricultores sem terra? Ocorre de as forças feudais no Paquistão serem aliados naturais da democracia liberal?

A conclusão inevitável a ser delineada é que a ascensão do islamismo radical sempre foi o outro lado do desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos. Quando o Afeganistão é retratado como sendo o exemplo máximo de um país fundamentalista islâmico, quem ainda se lembra que, há quarenta anos atrás, ele era um país com uma forte tradição secular, incluindo um poderoso partido comunista que havia tomado o poder lá sem dependência da União Soviética? Para onde essa tradição secular foi?

É crucial analisar os eventos em andamento na Tunísia e no Egito (e no Iémen e ... talvez, com esperança, até na Arábia Saudita) em contraste com esse pano de fundo. Se a situação for eventualmente estabilizada de modo ao antigo regime sobreviver, apenas passando por alguma cirurgia cosmética liberal, isso irá gerar um intransponível retrocesso fundamentalista. Para que o legado chave do liberalismo sobreviva, os liberais precisam da ajuda fraternal da esquerda radical. De volta ao Egito, a mais vergonhosa e perigosamente oportunista reação foi aquela de Tony Blair noticiada na CNN: mudança se necessário, mas deverá ser uma mudança estável. Mudança estável no Egito, hoje, só pode significar um compromisso com as forças de Mubarak na forma de ligeiramente alargar o círculo do poder. Este é o motivo pelo qual é uma obscenidade falar em transição pacífica agora: pelo esmagamento da oposição, o próprio Mubarak tornou isso impossível. Depois de Mubarak enviar o exército contra os protestantes, a escolha se tornou clara: ou uma mudança cosmética na qual alguma coisa muda para que tudo continue na mesma, ou uma verdadeira ruptura.

Aqui, portanto, é o momento da verdade: ninguém pode arguir, como no caso da Argélia uma década atrás, que permitir eleições verdadeiramente livres equivale a entregar o poder para fundamentalistas islâmicos. Outra preocupação liberal é de que não existe poder político organizado para tomar o poder caso Mubarak parta. É claro que não existe; Mubarak se assegurou disso ao reduzir a oposição a ornamentos marginais, de forma que o resultado acaba sendo como o título do famoso romance de Agatha Christie, "E Então Não Havia Ninguém". O argumento de Mubarak - é ele ou o caos - é um argumento contra ele.

A hipocrisia dos liberais ocidentais é de tirar o fôlego: eles publicamente defendem a democracia e agora, quando o povo se rebela contra os tiranos em nome de liberdade e justiça seculares, não em nome da religião, eles estão todos profundamente preocupados. Por que aflição, por que não alegria pelo fato de que se está dando uma chance à liberdade? Hoje, mais do que nunca, o antigo lema de Mao Tsé-Tung é pertinente: "Existe um grande caos abaixo do céu - a situação é excelente".

Para onde, então, Mubarak deve ir? Aqui, a resposta também é clara: para Haia. Se existe um líder que merece sentar lá, é ele.