Páginas

Luta, que Cura! (Aspectos terapêuticos das lutas de massa e alguns desafios para o trabalho de base contemporâneo.)



No beabá da luta de classes, costumamos valorizar as mobilizações de massa por pelo menos dois motivos principais. Primeiro, porque sem greves, piquetes, trancamentos de pistas, ocupações de terra ou de prédios públicos etc., já aprendemos com a história, não somos capazes de garantir a conquista de direitos para a classe trabalhadora ou a melhoria nas condições de trabalho e de vida de determinado setor do proletariado; que dirá, então, promover transformações mais profundas na estrutura de uma sociedade.
r001-004Segundo, porque também aprendemos que são, principalmente, as lutas da classe que nos formam como militantes, num duplo sentido, político e organizativo: por um lado, politicamente, pois nos deparamos o tempo inteiro com as contradições do sistema capitalista, com o papel do Estado como “comitê executivo dos negócios da burguesia” e, não raro, sofremos literalmente na pele o peso de nos revoltarmos contra os interesses das classes dominantes da sociedade, ficando evidente que os “nossos interesses” não se conciliam com os “interesses deles”; e, por outro lado, organizativamente, pois qualquer luta massiva é um aprendizado da capacidade de analisar a conjuntura, de elaboração de táticas, planejamento coletivo, divisão de tarefas, capacidade de avaliação e de resposta ao contra-ataque dos proprietários e governantes. Mesmo uma simples marcha cumpre um papel formativo para todos que dela participam. E sem tal capacidade organizativa, não há mobilização de massa que se sustente até atingir seus objetivos, dos mais imediatos aos mais ambiciosos.
No entanto, há um terceiro aspecto das lutas de massa, ao qual não costumamos dar tanta importância, e sobre o qual eu gostaria de propor uma reflexão nas páginas seguintes. Trata-se da dimensão terapêuticaenvolvida em grande parte dos processos de mobilização massiva, desde lutas específicas e localizadas (como uma ocupação de terreno dos que buscam pressionar o governo por seu direito à moradia digna) até processos mais amplos e radicais, de todo um povo lutando por sua independência frente a um Estado invasor, ou da classe trabalhadora de um país buscando modificar o modo de produção através de um processo revolucionário.
332513As virtudes terapêuticas de uma mobilização popular costumam surgir a despeito da intenção, ou mesmo da consciência, de suas lideranças políticas, o que não diminui a sua importância, muito pelo contrário. Mas a hipótese que eu gostaria de lançar aqui é que: assim como no plano das análises de conjuntura, ou da escolha do momento correto de se lançar numa mobilização, é necessário um conhecimento profundo das relações de forças políticas e econômicas de uma determinada sociedade, bem como dasdemandas materiais que nos movem à luta (como terra, teto ou melhores salários), também haveremos de avançar política e organizativamente se formos capazes de atinar para as “relações de forças subjetivas” envolvidas na arena da luta de classes, se soubermos interpretar as nossas demandas simbólicas e dar coletivamente respostas eficientes a tais demandas. Em suma, estou tentando sugerir que o conhecimento sobre os elementos imaginários, simbólicos, e até mesmo inconscientes de um povo, ou seja, tudo aquilo que diz respeito aos aspectos subjetivos – ou psicossociais – envolvidos nas lutas populares – e que muitos de nós chamamos simplesmente de “mística” –, pode servir como um poderoso instrumento capaz de potencializar nossa capacidade mobilizatória e, por consequência, aumentar nossa força política e social.
reich
Wilhelm Reich (1897-1957)
Não se trata de nenhum princípio original. Há uma certa tradição marxista que se debruçou sobre essa preocupação desde princípios do século XX. Seus autores, em geral, souberam aliar o inestimável conhecimento trazido pelo materialismo histórico e dialético com a teoria psicanalítica elaborada por Freud e seus colaboradores. Desde que, em 1934, Wilhelm Reich (1897-1957), psicanalista e militante do Partido Comunista Alemão, publicou a Psicologia de massas do fascismo, primeira obra de fôlego que se propôs a analisar um fenômeno de massa – a ascensão do nazismo no interior da classe trabalhadora alemã – a partir da síntese teórica entre o marxismo e a psicanálise, abriu-se uma importante vereda para a teoria e a prática da esquerda. Seus passos foram logo seguidos, na Alemanha, pelos pensadores da chamada Escola de Frankfurt, como Erich Fromm, outro psicanalista de formação marxista, bem como seus colegas “frankfurtianos” Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Max Horkheimer, filósofos que tão bem transitaram entre as teorias de Marx e Freud, a fim de analisarem as formas pelas quais o fetiche da mercadoria se consolidava no interior da subjetividade do indivíduo contemporâneo.
riviere
Enrique Pichòn-Rivière (1907-77)
No caso do nosso “terceiro mundo”, há o exemplo de Enrique Pichòn-Rivière (1907-77), fundador da Psicologia Social argentina, que também se propunha a formular uma síntese teórica e prática entre marxismo e psicanálise, e sustentava que a visão de mundo e as práticas dos seres humanos estão diretamente relacionadas com as formas pelas quais sua existência material se produz e reproduz ou, em suas palavras, “a psicologia social que postulamos tem como objeto o estudo do desenvolvimento e transformação de uma realidade dialética entre a formação social e a fantasia inconsciente do sujeito, sustentada sobre suas relações de necessidade” (Psicologia da vida cotidiana, Martins Fontes, 1998). Além disso, Pichón inaugurou uma tradição de “terapia de grupos operativos” que representou um importante avanço político nas técnicas terapêuticas.
Podemos lembrar ainda da tentativa radical de Frantz Fanon (1925-61) – sobre o qual voltarei a falar adiante – psiquiatra marxista, negro da Martinica, que se tornou militante da Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia e empreendeu o esforço de construir uma análise econômica, política e psicossocial do processo de colonização do terceiro mundo, de subjugação dos povos originários (negros e árabes, no caso africano) e, especificamente, do processo de libertação da nação argelina.
Apesar desta razoável tradição teórica e prática, de origem marxista – que é formada por muito mais do que a meia dúzia de nomes que mencionei –, infelizmente constatamos que o potencial político de tal conhecimento, acumulado ao longo de décadas, ainda está longe de ter sido incorporado por nossas organizações na esquerda, seja no centro ou na periferia do sistema. Bom, quando digo “esquerda”, genericamente penso nas organizações que lutam, ou pretendem lutar, pela superação do modo de produção capitalista. Os mais antigos chamavam de “revolução”, para que fique bem claro.
Mas antes que pareça que tento reivindicar uma espécie de “teoria geral da subjetividade, de raiz marxista” – o que não seria má idéia, mas eu não ousaria dar tal passo megalomaníaco – é preciso que fique claro que parto de uma necessidade posta para nós em um momento e em um lugar historicamente determinados. Falo desde a experiência da militância dos movimentos sociais (sem terra, sem teto, sindicais etc.) no Brasil contemporâneo, sobretudo refletindo a partir da realidade das grandes metrópoles do país. Mas não duvido que algumas das hipóteses que iremos debater sirvam, igualmente, para discutir a realidade das periferias de outras grandes cidades da América Latina, quiçá de todo o velho terceiro mundo.
É patente que vivemos, no Brasil, e em muitos outros países da América Latina, um momento histórico de refluxo de mobilizações populares. As razões são muitas e mais ou menos consensuais no interior da esquerda, e não é minha intenção debatê-las aqui, mas, em parte, elas se devem ao modo como o neoliberalismo se implementou de forma avassaladora nas últimas décadas, sobretudo por seu reflexo na total precarização do mundo do trabalho. Por outro lado, no caso brasileiro, isso também se explica por opções políticas do núcleo dirigente do partido que ocupa a presidência do país, feitas há anos.
Por exemplo, desde que, no começo dos anos 90, o núcleo duro do PT [Partido dos Trabalhadores] optou pela centralidade do processo eleitoral em sua estratégia política e dissolveu – com uma “medida administrativa” do Diretório Nacional – os “núcleos de base” por local de trabalho e moradia, que representaram um grande avanço organizativo na história da esquerda brasileira, aquilo a que chamamos de “trabalho de base” foi deixando cada vez mais de ser uma prática comum em nossas organizações.
Hoje em dia, é gritante a falta de influência das organizações combativas sobre a vida cotidiana, sobre os valores e as idéias da maioria esmagadora da classe trabalhadora, bem como é nítida a insuficiência de nossas atuais organizações em servir como instrumento político e de mobilização populares massivas com o objetivo de pressionar o Estado e os patrões a atenderem ao menos nossas reivindicações mais básicas (como a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma política, a moratória do pagamento de extorsivos juros da dívida pública etc.), para não falar das transformações estruturais. Evidentemente, não há como imaginar um avanço da hegemonia política e cultural da esquerda – no sentido que Gramsci nos ensinou – nem mesmo a longo prazo, sem que haja uma retomada consistente do trabalho de base nos locais onde a classe convive, sejam estes de trabalho, moradia ou estudo.
É diante desse desafio que me parece crucial atentarmos para algumas demandas subjetivas do nosso povo. Como este texto é, no fundo, uma prosa entre militantes que se identificam com esse desafio, pretendo ilustrar com dois exemplos concretos (pois o espaço é limitado) o tema que estou propondo: começaremos dando voz ao velho militante da FLN, já mencionado, que há exatos 50 anos nos chamou atenção para este mesmo problema. Em seguida, baseado nas experiências de acampamentos massivos de sem teto que tive a oportunidade de participar como militante e, sobretudo, em narrativas de companheiras e companheiros que viveram intensamente estas lutas, gostaria de destacar alguns aspectos da dimensão terapêutica envolvidos numa ocupação urbana massiva, que intuo sejam importantes para o avanço do nosso trabalho de base no atual momento histórico.
Fanon e a terapia da luta armada popular
fanon
Frantz Fanon (1925-61)
“Esses desempregados e esses sub-homens se reabilitam para si mesmos e para a história. (…) todos aqueles e aquelas que evoluem entre a loucura e o suicídio vão se reequilibrar, retomar o caminho e participar de modo decisivo da grande procissão da nação despertada” (Frantz Fanon, Os condenados da terra).
Frantz Fanon foi um dos primeiros pensadores da tradição marxista a atinar para aquilo que estamos chamando de dimensão terapêutica das lutas populares. Não por acaso. Formado em psiquiatria na França, em 1953, aos 28 anos de idade, é nomeado para um cargo de chefia no Hospital Psiquiátrico em Blida-Joinville, na Argélia – então colônia francesa. Pouco tempo depois, presencia o início da guerra de libertação nacional argelina e passa a atender em seu consultório os “doentes de guerra”: argelinos torturados pelas forças francesas, bem como os próprios torturadores. A verdade mais íntima da colonização lhe era revelada no cotidiano do consultório, e o horror com o qual se deparava e para o qual tentava dar resposta, sempre insuficiente, o levou à decisão de se engajar na luta, tornando-se – secretamente num primeiro momento – militante da Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia.
Sua experiência no processo de luta contra o colonialismo, bem como sua sólida bagagem teórica, o levaram a redigir a já clássica obra sobre a libertação argelina, Os condenados da terra (1961), que teve carreira meteórica no meio da militância terceiro-mundista nos anos 60 e 70, e cuja ressonância se multiplicou depois que Jean-Paul Sartre lhe escreveu um prefácio no inesquecível ano de 1968.
argelia-guerraTrata-se de um livro ousado, que se propõe a interpretar teoricamente o desenvolvimento político da guerra de libertação nacional, suas idas e vindas, suas virtudes e limitações, além de questionar, sob um ponto de vista marxista – mas formado na periferia do sistema – alguns “dogmas” do marxismo europeu: como o suposto caráter reacionário do campesinato e do “lumpenproletariado” urbano (na Argélia, ambos foram, em momentos distintos, protagonistas das lutas) e o papel de sujeito histórico revolucionário do operariado fabril (que era então o setor mais privilegiado do proletariado argelino e menos propenso a se engajar nas lutas). Fanon nos convencia da necessidade de repensar historicamente alguns conceitos marxistas sob a luz do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Na periferia, o buraco é mais embaixo. Não à toa, fez tanto sucesso entre marxistas terceiro-mundistas não alinhados com a ortodoxia moscovita dos “partidões”. Mas o que nos importa nesta prosa é reconstituir apenas uma de suas teses originais, entre tantas deste livro.
A partir de sua experiência clínica e das diversas andanças pelo país – que lhe eram demandadas por tarefas da FLN – Fanon pôde mergulhar no imaginário popular argelino e, com sua bagagem de psiquiatra e militante político, nos demonstrou que o processo da luta armada de libertação nacional adquiriu um caráter terapêutico para o povo. E mais: a própria violência necessária para expulsar os colonizadores teve papel central neste efeito terapêutico e libertador. Resumo brevemente seus argumentos.
Comecemos pelos diagnósticos. Segundo Fanon, o acúmulo histórico da violência colonial, já sedimentada por gerações, havia criado nos indivíduos alguns sintomas recorrentes, aos quais teve acesso privilegiado como terapeuta. Nos sonhos, por exemplo, era possível vislumbrá-los. Uma vez que o colonizado deve, desde sempre, aprender a “ficar em seu lugar” e que seu corpo está, o tempo todo, cercado por limites impostos pelo colonizador armado, seus sonhos “são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Eu sonho que dou um salto, que nado, que corro, que subo. Sonho que estouro na gargalhada, que transponho o rio com uma pernada, que sou perseguido por bandos de veículos que não me pegam nunca. Durante a colonização, o colonizado não cessa de se libertar entre nove horas da noite e seis horas da manhã” [1]. Como já havia descoberto Freud, nos sonhos realizamos os nossos desejos. Aqui, o desejo é o de possuir um corpo super-poderoso, como projeções de liberdade de um povo subjugado, sonhando em se libertar do colonizador.
Mas os sonhos não bastavam para sublimar essa agressividade represada. Ela se expressaria, nos conta Fanon, num estado de tensão permanente do colonizado, que por não poder descarregar seu ódio contra o invasor europeu, não raro o canalizava contra seus iguais: seu/sua cônjuge, seu vizinho ou seu colega de trabalho, em brigas sangrentas por motivos fúteis, chocando o policial colonizador, que cinicamente se eximia da responsabilidade pela supostamente “inexplicável violência destes bárbaros”.
ritosE nos mitos terrificantes, segundo nosso psiquiatra, tão comuns em sociedades subdesenvolvidas, o colonizado irá projetar as inibições à sua agressividade. Daí que figuras como gênios malvados, homens-leopardo, zumbis, entre outros, apareçam no imaginário popular como interdições mais assustadoras do que o próprio mundo colonialista. Em suma, para Fanon, “esta superestrutura mágica que impregna a sociedade nativa desempenha, no dinamismo da economia libidinal, funções precisas”. Note-se a precisa articulação entre as condições materiais da colônia e suas consequências psíquicas nos indivíduos, manifesta em sonhos e mitos populares, que, por sua vez, dialeticamente, contribuem para garantir, também subjetivamente, a reprodução da condição colonial.
Por fim, um dos principais recursos disponíveis ao colonizado a fim de extravasar a violência, a humilhação e a tortura às quais ele é obrigado a se submeter – se não quiser ser simplesmente exterminado – são os rituais religiosos ancestrais. Por isso, afirma Fanon, “um estudo do mundo colonial deve obrigatoriamente aplicar-se à compreensão do fenômeno da dança e do transe”, onipresentes em tais rituais, nos quais a “agressividade mais aguda, a violência mais imediata são canalizadas, transformadas, escamoteadas”, e onde “a libido acumulada e a agressividade reprimida extravasam vulcanicamente”.
Sobretudo no transe, fenômeno no qual a psique atinge a experiência da catarse, presenciaremos “dissoluções da personalidade”, que “exercem uma função econômica primordial na estabilidade do mundo colonizado. Na ida, os homens e as mulheres estavam impacientes, indóceis, irritados. Na volta, é a calma que retorna à aldeia, a paz, a imobilidade”. No ritual catártico, a tensão acumulada no tecido muscular – reflexo do sofrimento do espírito – pode ser dissolvida, restabelecendo o equilíbrio da mente, relaxando a musculatura. Por um lado, é remédio da alma, pois faz o colonizado suportar o sofrimento do dia de amanhã; por outro, é veneno, pois serve para esfriar o sentimento de revolta contra sua situação insuportável.
Contudo, com o ascenso das mobilizações populares na conflagração da guerra de libertação nacional argelina, aos poucos, a função simbólica dos rituais religiosos seria então desempenhada pela organização da luta armada contra o colonizador, pois, segundo ele, “ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Desembaraça o colonizado de seu complexo de inferioridade, de suas atitudes contemplativas ou desesperadas. Torna-o intrépido, reabilita-o a seus próprios olhos”. Por isso, afirma, ainda que muitos desempenhem um papel simbólico na luta armada, e que com a derrota francesa o povo seja rapidamente desarmado, ele sente que participou da libertação, e que está no mesmo nível dos seus “líderes”. Sentem que chegou, finalmente, o dia da revanche dos humilhados. A descarga de libido presente nos “sonhos de ação” e nos rituais catárticos podia então ser canalizada para a ação da luta. Já os monstros dos mitos populares adquiriam sua verdadeira face: a pele de gente branca, de olhos azuis, do soldado francês assassino. Era ele que deviam combater.
O colossal esforço de unidade popular contra o exército francês invasor será capaz até mesmo de suplantar históricas rivalidades tribais, as quais o colonizador sempre soube manipular para manter o controle da colônia. O surgimento de uma nação em potencial, a combater o inimigo comum, resultou na constituição de fortes vínculos entre aqueles que jamais se reconheceram como vítimas da mesma opressão. Se antes os indivíduos recorriam às danças rituais em busca de seu próprio alívio, proporcionado pelo transe, agora “é o solo nacional, é o conjunto da colônia que entra em transe”, de modo que se assemelha, nas palavras de Fanon, a “uma confraria, uma igreja, uma mística. [Pois] nenhum autóctone pode ficar indiferente ao ritmo que arrasta a nação”.
Não nos enganemos. A metáfora religiosa é milimetricamente calculada por Fanon: diante das lutas populares e massivas, o caráter terapêutico do ritual religioso se tornava cada vez menos necessário. O povo reencontrava, no ritual revolucionário da luta armada, a terapia de que necessitava para se libertar do sofrimento inominável da colonização. Ela atendia pelo nome de luta de libertação nacional, capaz de politizar o sofrimento do colonizado e atacar frontalmente as causas históricas de seus distúrbios psicológicos.
236_296-alt-transe-caboclo
* * *
Por certo, há uma enorme distância entre a dimensão política de um caso histórico como a libertação argelina e as lutas pontuais dos sem teto no Brasil contemporâneo, de que trataremos a seguir. Mas me parece que, em ambos os casos, há elementos comuns presentes em processos de organização de lutas populares, sobretudo no que diz respeito aos efeitos subjetivos que podem ser desencadeados por tais lutas, os quais ficarão mais claros assim que adentrarmos as narrativas dos sem teto.
Creio que o exemplo de Fanon nos ajuda hoje a pensar o problema de uma análise materialista da subjetividade e, principalmente, que consequências políticas e organizativas podemos extrair a partir desta análise. Como veremos adiante, até mesmo sua reflexão sobre o paralelo entre a função terapêutica dos rituais religiosos e seu correlato nos processo de lutas de massa nos serão úteis para refletir sobre o atual panorama das periferias das metrópoles brasileiras, onde as igrejas pentecostais se multiplicam como os pães de Jesus.
Continua…
[*] Militante do Movimento Sem Terra, atuo na Regional Grande São Paulo e como educador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF/MST). Garçom e professor de História e Psicologia Social.
Nota:
[1] cf. Franz Fanon. Os condenados da terra. Juiz de Fora, Editora UFJF, 2006. Todas as citações de Fanon em seguida são da mesma obra.

Socialismo fracassou, capitalismo quebrou: o que vem a seguir?



A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. A prioridade não é o aumento do lucro e do consumo, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Isso significa iniciativa pública não baseada na busca de lucro. Decisões públicas dirigidas a melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal. A análise é do historiador britânico Eric Hobsbawm em artigo publicado no The Guardian e reproduzido pela Carta Maior, 15-04-2009.

Eis o artigo.

Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, o deslocamento do mercado livre para a ação pública deve ser maior do que os políticos imaginam. O século XX já ficou para trás, mas ainda não aprendemos a viver no século XXI, ou ao menos pensá-lo de um modo apropriado. Não deveria ser tão difícil como parece, dado que a idéia básica que dominou a economia e a política no século passado desapareceu, claramente, pelo sumidouro da história. O que tínhamos era um modo de pensar as modernas economias industriais – em realidade todas as economias -, em termos de dois opostos mutuamente excludentes: capitalismo ou socialismo.

Conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos sistemas em sua forma pura: por um lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo global desde a década de 1930. Em alguns aspectos, é uma crise de maior envergadura do que aquela, na medida em que a globalização da economia não estava então tão desenvolvida como hoje e a economia planificada da União Soviética não foi afetada. Não conhecemos a gravidade e a duração da atual crise, mas sem dúvida ela vai marcar o final do tipo de capitalismo de livre mercado iniciado com Margareth Thatcher e Ronald Reagan.

A impotência, por conseguinte, ameaça tanto os que acreditam em um capitalismo de mercado, puro e desestatizado, uma espécie de anarquismo burguês, quanto os que crêem em um socialismo planificado e descontaminado da busca por lucros. Ambos estão quebrados. O futuro, como o presente e o passado, pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Mas como? Este é o problema que está colocado diante de nós hoje, em particular para a gente de esquerda.

Ninguém pensa seriamente em regressar aos sistemas socialistas de tipo soviético, não só por suas deficiências políticas, mas também pela crescente indolência e ineficiência de suas economias, ainda que isso não deva nos levar a subestimar seus impressionantes êxitos sociais e educacionais. Por outro lado, até a implosão do mercado livre global no ano passado, inclusive os partidos social-democratas e moderados de esquerda dos países do capitalismo do Norte e da Australásia estavam comprometidos mais e mais com o êxito do capitalismo de livre mercado.

Efetivamente, desde o momento da queda da URSS até hoje não recordo nenhum partido ou líder que denunciasse o capitalismo como algo inaceitável. E nenhum esteve tão ligado a sua sorte como o New Labour, o novo trabalhismo britânico. Em suas políticas econômicas, tanto Tony Blair como Gordon Brown (este até outubro de 2008) podiam ser qualificados sem nenhum exagero como Thatchers com calças. O mesmo se aplica ao Partido Democrata, nos Estados Unidos.

A idéia básica do novo trabalhismo, desde 1950, era que o socialismo era desnecessário e que se podia confiar no sistema capitalista para fazer florescer e gerar mais riqueza do que em qualquer outro sistema. Tudo o que os socialistas tinham que fazer era garantir uma distribuição eqüitativa. Mas, desde 1970, o acelerado crescimento da globalização dificultou e atingiu fatalmente a base tradicional do Partido Trabalhista britânico e, em realidade, as políticas de ajudas e apoios de qualquer partido social democrata. Muitas pessoas, na década de 1980, consideraram que se o barco do trabalhismo não queria ir a pique, o que era uma possibilidade real, tinha que ser objeto de uma atualização.

Mas não foi. Sob o impacto do que considerou a revitalização econômica thatcherista, o New Labour, a partir de 1997, engoliu inteira a ideologia, ou melhor, a teologia, do fundamentalismo do mercado livre global. O Reino Unido desregulamentou seus mercados, vendeu suas indústrias a quem pagou mais, deixou de fabricar produtos para a exportação (ao contrário do que fizeram Alemanha, França e Suíça) e apostou todo seu dinheiro em sua conversão a centro mundial dos serviços financeiros, tornando-se também um paraíso de bilionários lavadores de dinheiro. Assim, o impacto atual da crise mundial sobre a libra e a economia britânica será provavelmente o mais catastrófico de todas as economias ocidentais e o com a recuperação mais difícil também.

É possível afirmar que tudo isso já são águas passadas. Que somos livres para regressar à economia mista e que a velha caixa de ferramentas trabalhista está aí a nossa disposição – inclusive a nacionalização -, de modo que tudo o que precisamos fazer é utilizar de novo essas ferramentas que o New Labour nunca deixou de usar. No entanto, essa idéia sugere que sabemos o que fazer com as ferramentas. Mas não é assim.

Por um lado, não sabemos como superar a crise atual. Não há ninguém, nem os governos, nem os bancos centrais, nem as instituições financeiras mundiais que saiba o que fazer: todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões na esperança de encontrar o caminho da saída.

Por outro lado, subestimamos o persistente grau de dependência dos governos e dos responsáveis pelas políticas às receitas do livre mercado, que tanto prazer lhes proporcionaram durante décadas. Por acaso se livraram do pressuposto básico de que a empresa privada voltada ao lucro é sempre o melhor e mais eficaz meio de fazer as coisas? Ou de que a organização e a contabilidade empresariais deveriam ser os modelos inclusive da função pública, da educação e da pesquisa? Ou de que o crescente abismo entre os bilionários e o resto da população não é tão importante, uma vez que todos os demais – exceto uma minoria de pobres – estejam um pouquinho melhor? Ou de que o que um país necessita, em qualquer caso, é um máximo de crescimento econômico e de competitividade comercial? Não creio que tenham superado tudo isso.

No entanto, uma política progressista requer algo mais que uma ruptura um pouco maior com os pressupostos econômicos e morais dos últimos 30 anos. Requer um regresso à convicção de que o crescimento econômico e a abundância que comporta são um meio, não um fim. Os fins são os efeitos que têm sobre as vidas, as possibilidades vitais e as expectativas das pessoas.

Tomemos o caso de Londres. É evidente que importa a todos nós que a economia de Londres floresça. Mas a prova de fogo da enorme riqueza gerada em algumas partes da capital não é que tenha contribuído com 20 ou 30% do PIB britânico, mas sim como afetou a vida de milhões de pessoas que ali vivem e trabalham. A que tipo de vida têm direito? Podem se permitir a viver ali? Se não podem, não é nenhuma compensação que Londres seja um paraíso dos muito ricos. Podem conseguir empregos remunerados decentemente ou qualquer tipo de emprego? Se não podem, de que serve jactar-se de ter restaurantes de três estrelas Michelin, com alguns chefs convertidos eles mesmos em estrelas. Podem levar seus filhos à escola? A falta de escolas adequadas não é compensada pelo fato de que as universidades de Londres podem montar uma equipe de futebol com seus professores ganhadores de prêmios Nobel.

A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. Não importa só o aumento do lucro e do consumo dos particulares, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Mas isso significa – ou deveria significar – iniciativa pública não baseada na busca de lucro, sequer para redistribuir a acumulação privada. Decisões públicas dirigidas a conseguir melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.

Em nenhum âmbito isso será mais importante do que na luta contra o maior problema com que nos enfrentamos neste século: a crise do meio ambiente. Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, significará um deslocamento de grande alcance, do livre mercado para a ação pública, uma mudança maior do que a proposta pelo governo britânico. E, levando em conta a gravidade da crise econômica, deveria ser um deslocamento rápido. O tempo não está do nosso lado.

Anarco-Primitivismo


Uma mudança é definitivamente essencial para o que a filosofia da anarquia significa. Em paises como Inglaterra, França e Turquia assim como nos Estados Unidos, existe um crescente interesse em o que é chamado anarco-primitivismo. Publicações americanas como por exemplo, AnarchyFifth State e Feral refletem esta mudança. Assim como Green Anarchist e Do or Die! na Inglaterra.

Aqui está um olhar, de uma perspectiva Americana, sobre o movimento.

1. Existe uma profunda crise em todos os níveis; individual, social, ambiental. O câncer do capitalismo tecnológico esta se expandindo com um impacto devastador.

2 . Liberalismo, esquerdismo, pacifismo são faces de uma falida pseudo-oposição a ordem dominante. A única oposição radical é a anarquia.

3. A anarquia é cada vez mais militante. Sabemos que aproximações por métodos manipuladores e submissão são falsos. Se nós e o planeta desejamos sobreviver e nos tornar livres, devemos quebrar as regras e revidar.

4. A anarquia é cada vez mais primitivista. Sabemos que a tecnologia não é "neutra", e incorpora o sistema sugador de vidas que esta nos cercando. Civilização, que é baseada na divisão de trabalho e domesticação, também deve ser abolida. Sua lógica desdobradora tem nos levado para a atual condição de vazio, destruição e patologia.

5. Nosso objetivo é uma comunidade não-hierárquica e face a face. Todo obstáculo para tal deve ser removido. Um grande desmantelamento é necessário para que a natureza e cada individuo seja honrado. A descentralização completa é o objetivo.

6. Tecnologia e capital a uma monocultura massificada que escraviza toda vida. Produção em massa, fabrica, especialização, pensamento separatista é parte do problema, e não da solução.

7. Livre associação, autonomia, transparência, espontaneidade, comunhão com a natureza, diversão, criatividade são requisitos para uma existência saudável e livre. Produtividade, hierarquia, coerção, trabalho, consciência de tempo não.

8. Se nossa missão e nossa visão parece loucura, quão mais louco é não fazer nada efetivo para impedir a marcha mortal da compra e venda global? No futuro uma criança pode perguntar: "Como você deixou tudo isso chegar a esse ponto? O que você fez para parar?"

9. Com a infelicidade difundida está exposto muito das mentiras e condicionamentos que defende este sistema de não futuro, vemos que um diálogo aberto entre todos é essencial.

10. Voto, programas de reciclagem, reformismo, e protestos não têm conseguido realmente nada. Tem que haver um rompimento qualitativo com a Mega-maquina.

De que lado você está?

John Zerzan - Anarchist Action Collective, PO Box 11703, Eugene, Oregon 97440, USA

A Terceira Margem do Rio


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.



Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32

Manifesto Antropófago


Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.



Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.

Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipeju*

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.

Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)


* "Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim", in O Selvagem, de Couto Magalhães

Oswald de Andrade alude ironicamente a um episódio da história do Brasil: o naufrágio do navio em que viajava um bispo português, seguido da morte do mesmo bispo, devorado por índios antropófagos.