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Fragmentos de um discurso amoroso




Além da cópula (pro diabo, então, o Imaginário), há esse outro enlace que é o abraço imóvel: estamos encantados, enfeitiçados: estamos no sono, sem dormir; estamos na volúpia infantil do adormecer: […] é a volta à mãe […]. Nesse incesto reconduzido, tudo é então suspenso: o tempo, a lei, a proibição: nada cansa, nada se quer: todos os desejos são abolidos, porque parecem definitivamente transbordantes.

Entretanto, no meio desse abraço infantil, surge infalivelmente o genital; ele corta a sensualidade difusa do abraço incestuoso; a lógica do desejo se põe em movimento, retorna o querer possuir, o adulto se sobrepõe à criança. [p. 27-28]


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É adorável o que é adorável. Ou ainda: adoro você porque você é adorável, te amo porque te amo. Assim, o que fecha a linguagem amorosa é aquilo mesmo que a instituiu: a fascinação. Pois descrever a fascinação não pode nunca, no fim das contas, ultrapassar este enunciado: “estou fascinado”. [p. 32-33]

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Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha da minha loucura. O que o amor descobre em mim, é a energia. Tudo que faço tem um sentido (posso então viver, sem me queixar), mas esse sentido é uma finalidade inatingível: é somente o sentido da minha força. [p. 36]


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           O horror de estragar é ainda mais forte que a angústia de perder. [p. 42]

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É a originalidade da relação que preciso conquistar. A maior parte das mágoas me vem do estereótipo: sou obrigado a me apaixonar, como todo mundo: ser ciumento, rejeitado, frustrado, como todo mundo. Mas, quando a relação é original, o estereótipo é abalado, ultrapassado, evacuado, e o ciúme, por exemplo, não tem mais espaço nessa relação sem lugar, sem topos, sem “topo” - sem discurso. [p. 51, grifo do autor]

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Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é conquistador (navega e aborda). […] De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro, feminino se declara: esse homem que espera e sofre, está milagrosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado. [p. 53]



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Quando dois sujeitos brigam segundo uma troca ordenada de réplicas e tendo em vista obter a “última palavra”, esses dois sujeitos já estão casados: a cena é para eles o exercício de um direito, a prática de uma linguagem da qual eles são co-proprietários; um de cada vez, diz a cena, o que equivale a dizer nunca você, sem mim, e vice-versa. […] Os parceiros sabem que o confronto ao qual se entregam e que não os separará é tão inconseqüente quanto um gozo perverso (a cena seria uma maneira de se ter prazer sem o risco de fazer filhos). [p. 63]

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Ao chorar, quero impressionar alguém, pressioná-lo (“Veja o que você faz de mim”). Talvez seja – e geralmente é – o outro que se quer obrigar desse modo a assumir abertamente sua comiseração ou sua insensibilidade; mas talvez seja também eu mesmo: me faço chorar para me provar que minha dor não é uma ilusão: as lágrimas são signos e não expressões. Através das minhas lágrimas, conto uma história, produzo um mito da dor [p. 72]

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Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum. [p. 79]

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Que é que eu penso do amor? – Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor) é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). [p. 82]

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Quando o objeto amado ele mesmo se queixa do meu rival, o deprecia, não sei como replicar essa queixa: de um lado é “nobre” não me aproveitar de uma confidência que me serve – que parece “reforçar” meu lugar; e, por outro lado, sou prudente: sei que ocupo o mesmo ponto que meu concorrente e que, a partir daí, abolidos toda psicologia, todo valor, nada pode impedir que um dia eu também seja objeto de depreciação. [p. 89]

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Todo contacto, para o enamorado, coloca a questão da resposta: pede-se à pele que responda.
(Pressão de mãos – imenso dossiê romanesco –, gesto delicado no interior da palma, joelho que não se afasta, braço estendido, como por acaso, no braço de um sofá e sobre o qual a cabeça do outro vem pouco a pouco repousar, é a região paradisíaca dos signos sutis e clandestinos: como uma festa, não dos sentidos, mas do sentido). [p. 91]



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A cada instante do encontro, descubro no outro um outro eu-mesmo: Você gosta disso? Ah, eu também! Você não gosta disso? Nem eu! […] O Encontro faz com que o sujeito apaixonado (já capturado) sinta a vertigem de um acaso sobrenatural: o amor pertence à ordem (dionísica) do Lance de dados. [p. 128]

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Como termina um amor? – O quê? Termina? Em suma ninguém – exceto os outros – nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim minha história de amor: sou o poeta (o recitante) apenas do começo; o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam o romance, narrativa exterior, mítica. [p. 130-131]

Trechos do livro: Fragmentos de um discurso amoroso, por Roland Barthes