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Filosofia Zumbi



Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se até o pânico. Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente – quão facilmente se pode rasgá-las, quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima.
Elias CanettiMassa e poder
O zumbi representa essa força do ignoto a qual Canetti se refere. Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. O impulso do irrepresentável, o traço sem figura que nos obriga a fugir da realidade, a repudiá-la, a negar sua proximidade grumosa, mas indiferenciada. O imediato que carece de nome, a presença que não termina de se concretizar no sortilégio da unidade, que não se refugia na linguagem, mas se sustenta por uma dispersão, entre os vãos e labirintos do vero. Aí está o medo, a angústia, o desassossego humano. H. P. Lovecraft afirmava na abertura de seu famoso texto O horror sobrenatural na literatura: “O medo é uma das emoções mais antigas e poderosas da humanidade, e o medo mais antigo e poderoso é o temor do desconhecido”. E prossegue: “Os primeiros instintos e emoções do ser humano formaram sua resposta ao ambiente em que se encontrava. Os sentimentos bem definidos baseados no prazer e na dor cresceram em torno aos fenômenos cujas causas e efeitos ele compreendia, enquanto que em torno daqueles que ele não entendia se teciam aquelas personificações, interpretações maravilhosas, e sensações de medo e terror tão naturais em uma raça que tinha poucas idéias elementais e uma experiência limitada”. Até hoje, a ciência ou a filosofia trataram de suprir esses feixes irrepresentáveis através do delírio das classificações, das leis da identidade, como se o nome, o gênero ou a familiaridade de conceitos fosse suficiente para romper com essa angústia premente do ser da que falava o Heidegger de Ser e tempo. Otemor, por um lado, encontra o material que o tortura, sabe o que é aquilo que teme, frente à desolação da angústia, que desconhece o que o atenaza e nos situa perante o que não podemos experimentar. Uma filosofia zumbi, portanto, aceita o desafio: pensar a rasgadura. Pensar estes farrapos de presença, as purulentas deformações do real, o que não chega ao nome, os ramais de corpos, espaços ou texturas, que se vêm forçados a uma desmedida irrepresentável.Zumbi é essa estranha palavra para o que não tem nexo, identidade, fisionomia, corpo. Pensar o zumbi é também pensar o impensável.

Foucault, em seu famoso ensaio As palavras e as coisas, falava de como havíamos perdido a capacidade de referir através da linguagem. As palavras haviam se ofuscado, nos deixando com o aroma de sua presença, dos desvios e diferenças substanciais, dos artefatos semióticos. A linguagem não é um cristal, mas um colorido vitral, um túnel de uma infinidade de labirintos. Mallarmé escreve estes signos sobre o papel: não há mundo. As palavras que antes ditavam a lei do que se podia ou não dizer agora recaem na sorte de um lance de dados. Nas últimas décadas, essas propriedades haviam se intensificado, chegando ao ponto de não sermos capazes mais de sentir nenhuma das fórmulas de inserção ou presença. Perdemos o contato com o mundo e nadamos nas diferentes produções de signos, as múltiplas linguagens e simulações do real. Baudrillard ou McLuhan fixam o olhar nesta exposição dos signos, nos mostram as entranhas (“o meio é a linguagem” [“o meio é a mensagem”], insiste McLuhan) como se não houvessem corpos, superfícies sem vernizes, espaços descobertos. Tudo hoje é percebido a partir de uma galáxia de códigos e signos, por uma hiper-estruturação no olhar, na linguagem, em cada tentativa de pensar o real.

Não por acaso, na primeira das obras de George A. Romero a ameaça não tem nome, nem causa, mal pode ser designada ou concebida. Nem o rito vudu sobre o qual já haviam falado livros como The Magic Islands em 1929, de W.B. Seabrook, ou filmes como White Zombie, de 1932, com um sempre sinistro Bela Lugosi, ou I Walked with a Zombie, de Jacques Tourneur, em 1943; nem perigos espaciais, como acontecia em Plano 9 do espaço sideral, de 1959, dirigida por Ed Wood e considerada uma das piores produções da história do cinema. Romero nos apresenta o terror do indizível, a massa persistente e enlouquecida. O zumbi não tem nem razão de ser, nem discurso, nem mesmo receber o privilégio da denominação. De fato, ao longo do filme, não se utiliza uma única vez a palavrazumbi, razão pela qual se deve necessariamente perceber a importância do batismo popular que quis que esses peculiares canibais coincidissem com os autômatos clássicos do cinema. Os famosos zumbis de Romero não eram tais, mas uma massa de homens alienados, provavelmente renascidos da morte ou acometidos por uma obscura maldição espacial, com um apetite monstruoso por carne e desprovidos de sua capacidade de raciocínio. Ainda que não totalmente: o primeiro destes vorazes carrascos é capaz de apanhar uma pedra e utilizá-la para atingir a janela do carro no qual o personagem de Bárbara pretende se esconder; entretanto, ele e seus congêneres só se movem de maneira instintiva, retrocedem com certo pavor diante do fogo (instinto de conservação que nem sempre será retomado na saga) e são incapazes de lembrar qualquer vestígio de sua existência passada. Os zumbis anônimos, duplamente anônimos da obra de Romero (não conhecemos nem o que são, nem, em muitos casos, quem foram) iniciam uma das mitologias mais interessantes do panteão do fantástico na cultura de massas pós-moderna, muito distante do rito haitiano do vudu, cuja análise antropológica terá pouco espaço nesse trabalho.

Vemos neste primeiro filme da saga alguns dos pontos chaves da condução do fenômeno zumbi. Sentimento de aflição, proximidade crescente da ameaça, ausência de razões que nos indiquem qual é o motivo que acarretou o apocalipse. E, claro, zumbis, zumbis de grande sobriedade, de essencial mutismo, que pretendem atacar os protagonistas. É, contudo, a conduta destes sobreviventes o que se destaca na primeira produção do mestre do gênero. Um filme em que o espasmo de medo fosse total e continuado seria insustentável tanto para a própria integridade do roteiro, como para a recepção por parte dos espectadores. Entretanto, Romero reveste estes espaços vazios com situações complexas e conflitos tão ou mais interessantes que as cenas de ação propriamente ditas. Discussões entre personagens, jogos de poder e territorialidade, decisões, desavenças, pactos. O espaço da casa se converte em cenário para a descarga dos fantasmas interiores dos protagonistas, que, se certamente têm medo, realmente são o medo, representam o horror e o desgaste das relações interpessoais nos momentos de dificuldade. De certo modo, o desenvolvimento narrativos dos acontecimentos os impele a desfiar a tessitura dos pactos sociais (metáfora de alianças familiares em desintegração como nas modernas famílias americanas), de modo que os personagens não conseguirão se pôr de acordo, do mesmo modo que, diante da proximidade da ameaça, é impossível coordenar gestos, discursos, raciocínios (estes são a torpeza de um corpo diante do espanto), e fazer frente a um horror que nos supera em todos os sentidos. Mesmo da falta de sentido.

O filme causou um grande impacto à época, mesmo que não tenha sido tanto por seu realismo (há poses, atitudes e efeitos de maquiagem realmente inverossímeis) quanto pelo efeito de velamento proposto. Os personagens são a máscara de nosso medo. Máscara do choque, como a pobre Bárbara, comocionada pelo desaparecimento de seu irmão; a máscara de Bem, que pretende assumir a liderança e utilizar a razão, ainda que acabe também se desdizendo e se refugiando no sótão, contrariando o que havia proposto a princípio; a máscara de Harry, despótico pai de família que, a despeito de sua hostilidade, não quer outra coisa senão defender sua esposa e filha, ou os apaixonados Tom e Judy, sempre um atrás do outro. Máscaras, todos eles, de um corpo, de uma massa semelhante à horda que se amontoa às portas da casa, em que cada um parece simbolizar de algum modo os fantasmas interiores, as respostas frente ao medo (paralisia, frieza e raciocínio, ira, empatia e instinto de proteção), que nem sempre coincidem, e que, geralmente, alcançam desmembrar a tipologia de nossas respostas frente ao pesadelo, apesar de levarmos conosco, em nossa bagagem de emoções aprendidas, cada uma destas formas de reação. Todos eles são o medo, nosso medo, suas diferentes manifestações, as variações e gradações prototípicas. O medo convertido em muitos e em nenhum, medo tentacular, abismal, em constante ruptura consigo mesmo. Máscaras do medo, do horror humano, não reações com pretensão de verossimilhança, mas jogos de contrastes que abrem ainda mais a objetiva a partir da qual olhar a condição humana.

Haveria, portanto, um baile de máscaras que será muito interessante quando desenvolvermos em nosso estudo outros fenômenos de caráter distinto. Dissemosbaile justamente pela acumulação de representações a que temos contato durante a visualização de um filme. De um lado, as máscaras de nosso medo e da decomposição dos núcleos afetivos dos personagens. De outro, as “máscaras da vida”, a espetacularidade do zumbi como aquilo que nos excede de nós mesmos, como aquilo que sou e que, contudo, é mais que eu, uma representação que me transborda e que supera a própria narrativa que teci em torno a mim. Nas palavras de Borja Crespo, “o lado obscuro da condição humana fica descoberto frente ao nosso horror, mostrando-nos o verdadeiro perigo de uma sociedade em decomposição: nós mesmos. Os corpos sem vida que se arrastam diante de nossos olhos são nossa projeção”. Projeção seria um bom termo para definir a mitologia dos silenciosos carrascos do filme de Romero. O zumbi me projeta, projeta meus afetos, meus discursos, serve de tela para ampliar essa especularidade insuportável do ser humano. Não deve nos surpreender, portanto, que este recurso especular em um plano não possa se dar em outro. A narração, assim, encobre também uma velada correspondência com uma circunstância, um determinado acontecimento social, um clima histórico-econômico que transcende a tela de reprodução e que conecta a dimensão fictícia com os acontecimentos reais.

Por Jorge Fernandez Gonzalo