Numa obra intitulada Eros e Civilização, o filósofo Marcuse aplicou conceitos da psicanálise na compreensão da repressão sexual obtida através da racionalização exercida sobre o trabalho e sobre toda a nossa vida pela sociedade contemporânea, que ele chama de sociedade unidimensional (isto é, uma sociedade sem dimensões e diferenciações, onde tudo eqüivale a tudo, se troca por tudo, tudo sendo mercadoria e objeto de consumo) e também de sociedade administrada (isto é, onde todas as nossas atividades, idéias, todos os nossos desejos e pensamentos estão sob controle de instâncias exteriores a nós e que desconhecemos.)
Marcuse fala em super-repressão e em princípio de rendimento.
A super-repressão não é apenas a repressão no sentido do recalque (1) ... Nem no sentido freudiano de contenção do princípio do prazer por exigências do princípio de realidade. A super-repressão é um conjunto de restrições e de imposições que têm como finalidade obter e conservar a dominação. É um fenômeno sócio-político.
Na teoria freudiana, a contenção do princípio do prazer pelo de realidade tinha um pressuposto: os seres humanos vivem em estado de penúria e precisam trabalhar para sobreviver. É preciso, portanto, que a libido não só seja reprimida para que energias se dirijam ao trabalho, mas também que o prazer aprenda a protelar-se e, em certos casos, a suportar frustrações definitivas. O trabalho podia, simultaneamente, tomar o lugar da libido para fins sociais úteis e podia também ser uma sublimação da libido, um meio para satisfazê-la indireta ou simbolicamente.
Ora, diz Marcuse, Freud não levou em conta um aspecto essencial da questão: a desigualdade. Isto é, que há indivíduos, grupos ou classes sociais cuja penúria é resolvida graças à condenação permanente de outros indivíduos, grupos ou classes sociais à penúria e ao trabalho forçado. A vitória do princípio de realidade sobre o do prazer foi obtida pela dominação de uma parte da sociedade sobre outra. É isto a super-repressão.
Assim como a super-repressão produz a fragmentação do processo de trabalho para que o trabalhador se transforme num incompetente e não tenha o menor controle sobre o que faz, nenhum poder de decisão e de transformação; assim como ela produz a fragmentação da produção e do consumo sob o controle da gerência científica e dos especialistas em merchandising; assim como fragmenta o lazer e os conhecimentos em mil pequenas especialidades, também fragmenta a sexualidade.
Para que o trabalho se torne central, valor e virtude, condenação e destino, a super-repressão dessexualiza e deserotiza o corpo, destrói as múltiplas zonas erógenas (cuja satisfação, se for conservada, será chamada de perversão, crime, imoralidade) e reduz a sexualidade exclusivamente à zona genital, com finalidade procriativa.
A sociedade racionalizada é uma sociedade funcional, isto é, nela tudo o que existe, só tem direito à existência se for definido por um função útil, adequada e aceita: a sexualidade será, então, a função especializada em procriar e função especializada de alguns órgãos do corpo.
A super-repressão não se contenta com a dominação e a funcionalização. O trabalho que ela valoriza e transforma em virtude é o trabalho alienado, isto é, aquele que não traz satisfação, nem alegria, nem compensações, que não é fonte de criação, nem possibilidade de sublimação. Trabalho ascético da vida ascética, o trabalho super-reprimido não protela nem substitui o prazer: apenas o mata.
A super-repressão, porém, só pode operar se estiver interiorizada, se as pessoas considerarem normal, natural e desejável viver dessa maneira.
Para isso ela recorre à divisão racionalizadora do tempo e do espaço, de tal modo que restem um tempo mínimo e um espaço mínimo para a sexualidade: algumas horas noturnas no leito conjugal, no quarto secreto do casal, num bordel, num camping. No entanto, como também as horas de lazer são controladas, porque estão ligadas ao consumo, assim como o consumo controla também os espaços do lazer, só restam duas saídas: ou o lazer exclui um tempo para a sexualidade, ou a coloca sob o controle do consumo, isto é, da pornografia, do motel, da sauna, da casa de massagem. Especialização do espaço e ilusão da sexualidade liberada.
Por esse caminho, a super-repressão se articula com o princípio do rendimento. Este, diz Marcuse, é a forma contemporânea assumida pelo princípio de realidade: produzir para consumir e consumir para produzir; sentir-se culpado, humilhado, diminuído quando não se produz o quanto e o que a sociedade estipula, e quando não se consome o quanto, o que e como a sociedade estipula.
A identidade de cada um, portanto, não depende mais da relação peculiar que se estabelece entre nosso corpo, nossa psique, nosso inconsciente e nossa consciência com a Natureza e a cultura, mas do modo como somos avaliados pelos critérios da administração que governa a sociedade. Por esses critérios, nossa sexualidade é definida, avaliada, julgada, aceita ou condenada. Nossa precária liberdade, desfeita pela heteronomia (do grego hetero: outro; nomia, nomos: lei, regra; autonomia, do grego, autos: si mesmo, eu mesmo; nomia, nomos: lei, regra. Autonomia: dar-se suas próprias leis; heteronomia: ser determinado por leis alheias).
Super-repressão e princípio de rendimento reduzem a libido ou Eros a quase nada, realizado de modo cruel e perverso o desejo de Thânatos, a morte, o vazio, o nada.
No entanto, assim como o recalcado retorna, a libido reprimida retorna também. Esse retorno assume três modalidade principais: numa delas, a libido se transforma em princípio de destruição, a agressividade realizando o prazer (o nazismo, o fascismo, os genocídios, a destruição da Natureza o cataclismo atômico); numa outra, ela reduz os autômatos humanos à infantilização, ao conformismo, à dessublimação repressiva (como, por exemplo, a exibição dos corpos nus pela propaganda como profanação); numa terceira, enfim, ela torna possível a rebeldia de Eros, a transgressão que não é afirmação do existente, mas sua negação (por exemplo, as "perversões" sexuais como fonte de saúde e de vida). Nesta terceira via, a sexualidade rebelde parte em busca da unidade perdida, da recomposição do corpo e do espírito, e recusa funções.
"O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e toma o avião da tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na Quinta-feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O operário joga bilhar e faz amor nos feriados. Homens, mulheres e crianças - todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na Terça e na Quarta, macarronada, que a feijoada fica para o Sábado, comemoração prévia do futebol de Domingo, vitória certa, ora se!... As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas aquela lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade, taque-taque, taque-taque... Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável."
Este texto é da escritora Lygia Fagundes Telles, retirado de seu livro A Disciplina do Amor.
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(1) Recalque - Freud preferia usar o termo repressão para os processos conscientes e pré-conscientes, usando o conceito de recalque ou recalcamento para os processos inconscientes. O recalque se realizaria quando a satisfação de uma pulsão sexual (que poderia proporcionar prazer) aparece como capaz de suscitar desprazer e sobretudo como ameaçadora para o sujeito. Tanto pode ser uma censura (repressão) como uma defesa (8um ato de desinvestir uma pulsão, investindo em outras não ameaçadoras)" (Pág. 66, Chauí, op. Cit.)