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Sobre a nudez forte da violência…










Muitas noções de violência povoam o (in)consciente colectivo. A mais comum conjuga a tese de que em democracia (nos regimes de democracia capitalista liberal, digo eu) a violência seria uma excepção e que, em consonância, a violência tenderia a ser recorrentemente percepcionada como o equivalente do uso indiscriminado da força física. Em sintonia, grande parte das correntes políticas (tanto de direita como de esquerda) tende a reproduzir esta asserção genérica. Naturalmente existem diferenças relevantes entre os modos como a (maioria da) esquerda e a direita vêem este assunto. Por exemplo, a direita tende a ver o contrato social democrático burguês como o laço institucional entre a civilização e a insuperabilidade do capitalismo. No fundo e de uma maneira muito sintética, a democracia burguesa seria a linha divisória entre a selvajaria e entre a civilização, pelo que o cumprimento das regras do jogo democrático liberal garantiria, desde logo, que a violência física fosse usada só episodicamente. Como se as democracias liberais nunca tivessem lançado toneladas de bombas, mísseis e balas sobre milhões de seres humanos um pouco por todo o mundo… Estranho conceito este que utiliza um método selvagem para levar a civilização e a não-violência aos “bárbaros”.
Mas no ponto específico da noção fisicalista de violência acima aludida, ela é partilhada por pessoas e organizações situadas em diferentes quadrantes políticos. Na minha opinião, o grave da absorção acrítica da noção fisicalista da violência repercute-se no centrar a dinâmica da vida social em torno da violência. Levando o raciocínio ao extremo, é como se o capitalismo e a actuação das classes dominantes não fosse mais do que uma versão ampliada de uma nietzschiana “vontade de poder”. Para tentar completar o quadro, direi que para muito boa gente que se identifica de esquerda, o capitalismo reproduzir-se-ia porque os “políticos” seriam dotados de uma astúcia manipuladora. Quando esta não surtisse efeito, entraria em cena o vibrar do cassetete da polícia para recolocar as “coisas na ordem”. Este esquema de percepção da realidade é, a todos os títulos, muito próximo ao modelo de Pareto sobre a reprodução das elites. E, assim, alguma esquerda e muitos activistas conseguem ver na manca dialéctica entre astúcia e violência as razões para a raiz da sociedade em que vivemos.
Voltando a centrar-me na questão da violência, isso significa que a dominação de classe é, assim, transformada no exercício do uso da força de uma classe sobre a outra. E se isto é parcialmente verdade (a burguesia, por exemplo, nunca descura o uso das forças policiais para reprimir manifestações de luta da classe trabalhadora), importa colocar a seguinte questão: se porventura não ocorressem actos de violência das forças repressivas do Estado burguês sobre os trabalhadores perante o quê estaríamos confrontados? O capitalismo já seria aceitável?
Ora, a verdadeira (e perene) violência do capitalismo sobre os trabalhadores não ocorre nesta esfera. Se é intrínseca ao sistema a existência de actos de repressão estatal contra os trabalhadores, estes não são quotidianos e muito menos são estes que fundam o capitalismo. Portanto, a verdadeira e permanente violência do capitalismo ocorre no plano das relações sociais que o constituem de alto a baixo: o trabalho assalariado ou, se se preferir, a exploração económica capitalista. Esta é uma violência muito mais profunda e tão inócua aos olhos da esmagadora maioria dos trabalhadores que consegue passar-se como se de uma libertação se tratasse. Aliás, os apelos ao empreendedorismo muito em voga a partir das últimas governações PS/Sócrates e PSD/CDS de Passos Coelho e Portas não são mero sound-byte. Em sectores da classe trabalhadora (sobretudo nos países desenvolvidos) existe inclusivamente um forte comprometimento pessoal e identitário com os intentos das empresas em criar novas mercadorias e novos serviços. Nas tarefas mais criativas e onde o recurso intelectual tem uma componente mais marcada, é muito fácil encontrar jovens trabalhadores que literalmente adoram trabalhar em regimes de free lance, a projecto ou com uma grande flexibilidade no trabalho e nos horários. E neste ponto o capitalismo tem sido extremamente eficaz em conseguir que boa parte dos sectores mais jovens, mais dinâmicos e mais qualificados da classe trabalhadora se identifique com a dinâmica organizacional capitalista. Há quem lance logo o epíteto da “pequena-burguesia” sobre estes trabalhadores, o que só demonstra que nada entendem das relações sociais de exploração capitalista e preferem atribuir considerações morais ao que não querem compreender racional e cientificamente: a simultânea recomposição técnica e ideológica da classe trabalhadora operada pelo toyotismo.
Portanto, se sectores mais qualificados da classe trabalhadora aderem ideologicamente ao trabalho assalariado ou, noutro prisma, se os sectores mais desqualificados da classe trabalhadora não contestam o trabalho assalariado, importa perceber que isto acontece como corolário da naturalização da percepção das relações de exploração. Por outras palavras, esta última designa a consideração do trabalho assalariado (em suma, da exploração dos trabalhadores pelos capitalistas e pelos gestores) como algo natural e inato na actividade humana, onde toda e qualquer outra forma de organizar o processo de trabalho (nomeadamente, sem supervisores, sem gestores e sem patrões) seria impossível de vislumbrar.
Em termos muito simples, e atendendo agora aos efeitos da condição assalariada, se o capital e o trabalho são antagónicos nas posições que ocupam no plano material das relações da exploração, como consegue o capitalismo que cooperem entre si? Será apenas uma questão de inculcação ideológica? Como é então possível que a vulnerabilidade com que os trabalhadores são colocados perante os ditames das administrações das empresas, portanto, sem qualquer liberdade de determinar a condução da vida social e política; como é então possível que a vulnerabilidade com que cada vez mais trabalhadores são colocados perante a possibilidade de serem despedidos e tratados como lixo; como é então possível que a vulnerabilidade que as nossas vidas usadas, abusadas e deitadas fora como uma fralda descartável perante as incertezas do mercado e das necessidades de rentabilidade capitalista, em suma, como é possível que tudo isto não seja percepcionado como profundamente violento e totalitário pela esmagadora maioria dos trabalhadores? Será a história do capitalismo uma maquinação perversa de roubo generalizado ou o resultado de relações sociais que subtraem os indivíduos a posições muito específicas de classe?
O texto já vai longo e não pretendo realizar uma exposição dos mecanismos simbólico-ideológicos e económicos a partir dos quais o capitalismo opera a naturalização da exploração. Como o que importa aqui é dar conta da violência específica inerente às relações de produção capitalistas, foco apenas, de um modo breve, em que é que se caracteriza a exploração.
A exploração capitalista é, acima de tudo, a expropriação e desapossamento dos meios e recursos sociais de produção e resulta, por um lado, na criação de um maioritário contingente populacional disponível para ser empregue segundo os ditames do patronato e da valorização do capital e, por outro lado, na vulnerabilidade absoluta do trabalhador perante os processos de contratação e despedimento de força de trabalho. Num conjunto de discursos proferidos para uma audiência de operários, em 1849, Marx sintetizou de uma forma elementar e despretensiosa a essência do trabalho (livre) assalariado:
«O servo pertence à terra e constitui um rendimento para o dono da terra. O operário livre, pelo contrário, vende-se a si mesmo, bocado a bocado. Vende em leilão oito, dez, doze, quinze horas da sua vida, dia após dia, a quem melhor pagar, aos proprietários das matérias-primas, dos instrumentos de trabalho e dos meios de vida, isto é, aos capitalistas. O operário não pertence a nenhum proprietário nem está adstrito a nenhuma terra, mas as oito, dez, doze, quinze horas da sua vida diária pertencem a quem lhas comprar. O operário, quando quer, deixa o capitalista para quem trabalha e o capitalista pode despedi-lo quando achar necessário, quando já não obtém lucros dele ou quando não lhe arranca o lucro que esperava. Mas o operário, cujo único recurso é a venda da sua força de trabalho, não pode desligar-se de toda a classe de compradores, isto é, da classe capitalista, sem renunciar à existência. Ele não pertence a este ou àquele patrão, mas à classe capitalista e compete-lhe a ele encontrar quem o queira, isto é, encontrar um comprador dentro dessa classe burguesa» [1].
Claro que os chamados aparelhos ideológicos (televisão, escola, religião, etc.) têm uma forte e inultrapassável influência no encobrimento do trabalho assalariado. Mas aqui quero concentrar-me no próprio facto do poder invisível da exploração capitalista propriamente dita aos olhos dos próprios trabalhadores. Por conseguinte, importa abordar as relações da exploração capitalista no seu próprio terreno e tentar desvendar de que forma as relações mais totalitárias da nossa contemporaneidade histórica são percebidas subjectivamente como inócuas.
Claro que os críticos podem dizer, e com alguma razão, que as pessoas aceitam o trabalho assalariado porque não existe uma alternativa produtiva equacionável e viável ao virar da esquina ou por uma questão de sobrevivência física e económica. Tudo isso é verdade, mas não explica porque a tendência no capitalismo tem sido para uma aceitação generalizada do trabalho assalariado e, mais ainda, para ver em várias das suas tarefas uma fonte importantíssima de realização pessoal e social. Antes que alguém se lembre de berrar, direi desde já que nada tenho contra as lutas das organizações operárias pela melhoria das condições de trabalho, contra o desemprego e pelo aumento dos salários. Nada do que estou aqui a escrever tem a ver com as justas lutas reivindicativas. Estas situam-se num plano imediato de sobrevivência da classe trabalhadora [2], enquanto o que aqui estou a discutir situa-se no plano do que realmente estrutura material e subjectivamente a vida social. Contudo, se nada tenho contra as lutas reivindicativas, importa que todos os activistas de esquerda equacionem o porquê de os sindicatos e partidos de esquerda apenas contestarem as condições de “liberdade” no interior das empresas quando há perseguição a sindicalistas, mas nunca abordem a própria violência inscrita nas relações de trabalho. Assim se deixa intacto o poder das empresas…
Ora, é neste plano da exploração que toda a luta política da esquerda anticapitalista deve ser colocada. Não só porque os fenómenos que mais mobilizaram centenas e centenas de milhares de jovens em todo o mundo nos últimos dois anos – o desemprego e a precariedade laboral – são consequências directas das relações de exploração e sua adequação aos nossos dias, como porque é a partir daqui que as lutas da classe explorada podem fugir aos mecanismos organizativos e aos dispositivos ideológicos que têm permitido ao capitalismo recuperar as suas mobilizações políticas. O único terreno político e teórico capaz de evitar o aprisionamento das lutas dos trabalhadores no nacionalismo, na conciliação classista ou na crença na democracia burguesa é a colocação da violência social multifacetada que a exploração capitalista provoca nos trabalhadores. O par dual da astúcia e da violência é componente da reprodução do capitalismo, mas não é este par que estrutura e muito menos produz as relações sociais fundamentais. A inversão dos termos da produção e da reprodução do capitalismo está muito longe de ser um aspecto escolástico ou académico. Pelo contrário, é do enfoque em cada um deles que se desdobram opostas percepções da sociedade. A ênfase nos mecanismos de reprodução do capitalismo (dos quais o par da astúcia e da violência nem sequer será o mais relevante), por um lado, deixa a questão da exploração intocada e, por outro, simula uma crítica política. Digo “simula” porque a crítica assente nestes pressupostos muito facilmente resvala para discursos tão “científicos” e classistas como os da “incompetência” e do incumprimento das promessas dos políticos, da “economia real” VS “economia de casino” ou do “roubo ao país da riqueza nacional”. Discursos e concepções anexas que facilmente descarrilam (ou, dependendo da perspectiva, encarreiram) para o fascismo.
Neste artigo, a crítica da concepção fisicalista da violência procurou funcionar como o espelho de todas as outras concepções políticas desvinculadas dos mecanismos de classe. Que o reflexo recolhido possa (ajudar a) inflectir a carantonha sisuda de alguma esquerda.
Por João Valente Aguiar
Notas
[1] MARX, Karl (1974) – Trabalho assalariado e capital. Lisboa: Edições Avante, p.40.
[2] «Os sindicatos trabalham bem como centro de resistência contra as usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a sua força. Mas são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de ao mesmo tempo se esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado» (Marx – Salário, Preço e Lucro).