Prefeituras de vários municípios, especialmente capitais, iniciaram de maneira não articulada uma onda de aumento das tarifas dos transportes públicos pelo país em maio e junho. Em geral, a justificativa é uma suposta correção dos custos operacionais, especialmente afetados por flutuações da taxa de inflação. O aumento se dá em um contexto em que o governo federal, justamente com o objetivo de conter a inflação, reduziu a tributação sobre o transporte e adota – há anos – políticas de incentivo à aquisição de automóveis. A onda de aumento das tarifas estimulou protestos por onde passou, com especial cobertura jornalística para as passeatas e a repressão que lhes seguiu na cidade de São Paulo, justamente por ser governada pelo petista Fernando Haddad, outrora interlocutor da principal organização por detrás das passeatas, o Movimento Passe Livre.
Protestos são imprescindíveis para a vida em democracia. É expressão de justiça política que aqueles que estejam em desacordo com uma decisão que afeta suas vidas tenham o direito de se manifestar. A forma do protesto é em grande parte resultado das possibilidades de negociação e impacto nas decisões políticas existentes para os grupos sociais em desacordo. As instituições que determinam os modelos de transporte no Brasil são tradicionalmente de acesso restrito, até porque se configuram como um ponto central da política de Estado e de influência de grandes empresas, as automontadoras.
O Movimento Passe Livre não se resume a uma manifestação contra o aumento da tarifa, mas expressa fundamentalmente uma proposta alternativa para o modelo de transporte no Brasil, com especial impacto nas grandes cidades. O transporte público tem de ser público e gratuito, defende. No capitalismo, muitos dizem, isso soa como uma fantasia inatingível, até porque, pelo menos à primeira vista, seria economicamente ineficiente, na medida em que oneraria demais o Estado.
Mas, do ponto de vista econômico, criar um sistema de transporte público gratuito é vantajoso para o Estado. Uma sociedade que depende de automóveis individuais como meio de transporte principal tem custos sociais e ecológicos elevados. É preciso levar em conta esses custos no cálculo da eficiência de qualquer sistema de transporte.
Uma sociedade dependente de automóveis individuais tem altos níveis de poluição – muito mais do que teria se o principal meio de transporte fosse coletivo. A contaminação do ar leva a doenças respiratórias e, consequentemente, gastos médicos, para o cidadão e o Estado. Na medida em que tais doenças respiratórias incapacitam os membros de uma sociedade levam a uma possível desaceleração econômica – trabalhadores sem saúde não produzem no mesmo nível do que trabalhadores com saúde. Há outros gastos relacionados ao uso do automóvel em massa, como a manutenção de uma rede de fiscais de trânsito, fundamental para organizar cidades com tráfego intenso, e o tempo – produtivo – perdido em engarrafamentos. Quem paga a conta pelo trânsito são, de novo, o cidadão e o Estado.
As montadoras conseguem vender a preços mais baratos os automóveis que produzem porque repassam ao cidadão e ao Estado os custos sociais do sistema de transporte que patrocinam. Nos primeiros meses de 2011, o aumento na venda de automóveis chegou a 8% em comparação com o ano anterior. As montadoras exigem do governo redução de impostos e mais facilidade no crédito para compradores, isto é, querem se livrar ainda mais dos custos sociais relacionados a seus carros. Mas o imposto deveria aumentar, não diminuir.
O imposto deveria aumentar sobre as montadoras que lucram com a produção de um bem com alto custo social, como acontece com outros produtos nocivos (cigarro, bebida). Mas também deveria aumentar, paulatinamente, sobre o consumidor, à medida que se consolide um sistema de transporte coletivo funcional. Numa sociedade onde o transporte público é bom, um cidadão pode querer ou precisar de um carro, por conforto ou por qualquer outro motivo, mas como sua decisão tem repercussões sociais – o custo social relacionado ao uso do automóvel – cabe também a ele pagar por isso.
Até agora, a argumentação nos levou à necessidade social de substituir o uso em massa dos automóveis pelo transporte público, mas por que este teria de ser gratuito? Por justiça econômica. Os usuários de transporte público beneficiam toda a sociedade, pois mantêm baixos os custos sociais relacionados ao transporte (poluição, trânsito). Beneficiam até mesmo as pessoas que não usam o transporte público. Cobrar tarifas pelo uso do transporte público é, então, uma injustiça econômica: por mais que o serviço beneficie a todos, só uma parcela dos beneficiados paga por ele. De certo modo, cobrar pelo transporte público se torna uma exploração dos usuários pelos não-usuários. Os gastos do sistema de transporte coletivo têm de ser partilhados pelos beneficiados, ou seja, divididos entre todos os cidadãos.
A gratuidade do transporte público pode ser defendida por dois outros aspectos econômicos. Por um lado, cobranças de tarifas envolvem custos de operação e fiscalização; um sistema de transporte público gratuito os elimina. Por outro lado, a gratuidade funciona como um incentivo aos cidadãos para que usem meios públicos de locomoção, aumentando os benefícios sociais.
Um sistema de transporte público gratuito é eficiente, do ponto de vista econômico, e compatível em teoria com uma sociedade capitalista. Os obstáculos à criação desse sistema não são de ordem econômica, mas política. As montadoras têm, evidentemente, interesse em manter a sociedade dependente dos carros que fabricam. Para garantir seus lucros, precisam manter essa dependência e investem para pressionar os governos local e federal a manter seu controle sobre o sistema de transporte. No Brasil, têm alta capacidade de pressão, pois contam com políticos aliados com posições-chave, na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, e potencial de chantagem sobre o governo, ameaçando demitir trabalhadores se seus interesses não forem atendidos.
A reivindicação por transporte público gratuito é, portanto, realista e justa. Organiza-se no Brasil, principalmente, pelo Movimento Passe Livre, criado em 2005, que mobiliza jovens e trabalhadores de baixa renda em diversas capitais sob a bandeira da tarifa zero. Enfrenta, nas ruas, uma visão atrasada e ineficiente da vida em sociedade. E tem a lógica econômica de seu lado.
João Alexandre Peschanski é sociólogo