Páginas

Pornografia e blábláblá

                                                                                 por Slavoj Žižek

Slavoj Žižek
Minha ideia básica é que nossa época é uma época estranha. Por um lado, é superficialmente permissiva. Temos toda a pornografia que quisermos na internet, podemos participar de orgias, blábláblá. Mas, ao mesmo tempo, isso nem ao menos é um consumismo verdadeiro. Temos essa obsessão com sexo seguro, e por aí em diante. Se vocês querem saber, eu acho que os únicos consumistas que existem são os dependentes de drogas, aqueles que dizem “Foda-se, quero ir até o fim, pouco me importo”. Não, nosso consumismo não está morto. Trata-se de um consumismo bastante estratégico e calculista.
Não há um sujeito hindu [PranavMistry] em Cambridge que desenvolveu o “SixthSense” (SextoSentido)? Um mecanismo simples: você tem uma câmera, pequena, digital, na sua cabeça. Você tem uma espécie de projetor no peito, e ele está conectado à rede por meio de um celular no seu bolso, e isso funciona assim. A câmera identifica o objeto à sua frente. Como está conectado, o computador pode identificar o objeto. E então, no mesmo instante, a internet obtém os dados do objeto e os projeta sobre qualquer superfície plana. Você interage com um objeto real, mas ao mesmo tempo pode projetar nele todos os dados. E eu acho isso interessante porque o efeito é uma espécie de magia. Os objetos respondem, contando tudo a respeito deles.
Vocês podem imaginar a minha primeira reação: deve ser maravilhoso usar isso na sedução. Tudo bem, também funciona para as mulheres, mas, da minha perspectiva machista, eu olho para a mulher e isso é projetado nela. Ela gosta de sexo anal, gosta que lhe belisquem os seios, gosta dessa música, gosta daquilo. Você obtém dados instantâneos a respeito da garota. Isso é ideologia em seu sentido mais puro. E não é assim que estão estruturadas as nossas vidas reais? Digamos que você seja um racista antiárabes, antijudeus ou antinegros. Não é exatamente a mesma coisa que acontece quando você vê um sujeito árabe ou judeu ou negro? É como se você projetasse nele todo o seu implícito conhecimento racista. Você vê que ele é mau, um perigo para você, ou seja lá o que for, blablablá. Considero isso uma metáfora perfeita para a nossa ideologia espontânea.
A pornografia é o gênero mais censurado que se pode imaginar. Primeiro, a gente percebe como tudo é absolutamente controlado. Nos pornôs heterossexuais padrão, o que acontece? Primeiro, há alguma fantasia, masturbação, cunilíngua, felação, depois sexo total, então talvez uma orgia, coisa do tipo. Codificação total.
Mas o mais importante: discordo inteiramente de Laura Mulvey, a teórica de cinema, quando ela afirma que, na pornografia heterossexual, a mulher é reduzida ao objeto do olhar masculino. Nem pensar. Você já reparou como a mulher que está sendo fodida tem permissão para quebrar a regra básica dos filmes de ficção e olhar diretamente para a câmera? Os homens, não. Você não se identifica com o homem fodendo a mulher. Ele é um mero instrumento. Se você for um cara hétero observando um filme pornô, está buscando – e é a mulher quem lhe diz isso – alguma confirmação de que a mulher realmente gosta daquilo. O verdadeiro objeto é o pobre sujeito, em geral algum pobre marinheiro que a fode. Razão pela qual a mulher, como regra geral, precisa fazer todos aqueles ruídos o tempo todo.
O segundo aspecto da censura na pornografia eu percebi quando era jovem e vi os meus primeiros filmes pornográficos. Quando se trata de um pornô de longa metragem — tipo uma hora, uma hora e meia —, é claro que não é possível só ter foda o tempo todo, tem que haver uma história. E como a história é ridícula! É humilhante, de tão imbecil. Até hoje, isso me choca. Eu me lembro de um dos primeiros filmes: chega um bombeiro e conserta um buraco na cozinha. [E ela diz] “Mas eu tenho outro buraco aqui embaixo, você pode consertar esse também?” E aí eu pensei: Meu deus, não é possível que eles sejam tão idiotas! Isso é censura. A ideia é: ou você se identifica de todo [como nos filmes normais] e então não enxerga tudo isso, ou você enxerga isso tudo, todos os detalhes [nos pornôs], mas então a história precisa ser ridícula, para não ser levada a sério.
Hoje, a censura vai mais longe. Agora, a forma predominante de pornografia é a chamada “gonzo”, em que nem mesmo uma história é permitida. Gonzo, vocês sabem, é quando os atores encaram a câmera de frente [e dizem], “Eu estou fazendo direito, ou deveria fazer assim, ou assado?”. Sempre desconfiei da ideia de [Bertolt] Brecht de que o momento em que você é envolvido pela história é uma espécie de identificação emocional burguesa, e que a alienação, aliás, a externalização é uma coisa positiva. Não! Acho que a censura é exatamente isso.  O pior que pode acontecer é que a gente mergulhe mesmo na história. Isso é censura social espontânea. Mas é o que torna tudo ainda mais místico. Não há um censor direto, e todos os pornôs obedecem a essas regras.
Uma sedução, para ter êxito, precisa trazer implícito um momento de impotência e fracasso, no sentido de que, brincando, brincando, reconhecemos nossas limitações. A sedução nunca funciona à perfeição. As pessoas se enganam redondamente quando acham que devem se apresentar como perfeitas e blablablá.
Conversei com um conselheiro sexual que me disse que, quando se trata de um casal em que não se sabe se o fulano é impotente ou coisa que o valha, a pior coisa a fazer é mandar alguma besteira do tipo “Não pense no assunto, só faça, seja você mesmo!”. É assim que se mata um sujeito. E ele me disse que uma das maneiras de se fazer isso — e, segundo ele, funciona com casais — é aconselhar que se imite um procedimento burocrático puramente externalizado. Ou seja, você quer fazer amor, tudo bem, sente-se com a sua parceira e trace um plano stalinista. Primeiro (ela diz) os dedos, depois põe a mão no meu peito. Não (ele diz), aí não, põe o dedo na minha bunda. Você acaba completamente envolvido por essas negociações burocráticas. E então, na maioria das vezes, alguém diz: “Porra, por que é que a gente não trepa de uma vez? Vamos nessa”. 
Tradução de Celina Portocarrero.