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Nem tudo que é sólido desmancha no ar



COMO A MAIS ABSOLUTA dominação sobre os homens continua a ser exercida por meio de processos econômicos de exploração – mesmo sobre a crescente parcela da humanidade que está sendo rifada precisamente porque deixou de ser economicamente rentável –, o Manifesto Comunistaainda cruzará o milênio como uma mensagem na garrafa. Muito mais atual inclusive do que há 150 anos, quando a proletarização dos pobres e demais expropriados ainda não parecia irreversível, a ponto de considerável número deles procurar escapar à danação do assalariamento – só viver se encontrar trabalho, e só encontrar trabalho se este incrementar o valor do capital – reagrupando-se à margem da ordem burguesa nascente na forma de comunidades cooperativas, por meio das quais sonhavam recuperar a antiga independência econômica perdida. Porém a Modernidade anunciada pelo Manifesto viera também para abortar o não-lugar dessa utopia. Com a atual mundialização do capital enfim, ninguém mais está fora, sobretudo as grandes massas precarizadas e desconectadas na corrida ao corte de custos: em tempos de pressões competitivas globalizadas, literalmente não têm mais para onde ir. Nunca estiveram tão irremediavelmente incluídas.

Continuamos portanto na mesma, a mesma desgraça econômica de sempre, desde que a terra, o trabalho dos homens e a moeda de troca entre eles foram transformados em mercadoria, como qualquer outro artigo de comércio. Mas também continuamos na mesma numa outra acepção igualmente sombria da expressão, por assim dizer mítica. Era o que Marx e Engels queriam dizer, no momento mesmo em que chamavam a moderna exploração econômica pelo nome, ao declarar que a história de todas as sociedade tinha sido até então a história da luta de classes. Pois bem: se toda a história é história da luta de classes é porque a história sempre foi a mesma coisa, numa palavra, pré-história. Como de resto se pode ler num dos rascunhos preparatórios doManifesto: "assim como a forma mais recente da injustiça lança luz sobre todas as demais, a crítica da economia é urna crítica da história no seu todo, de cuja imobilidade a classe dos capitalistas, como outrora seus antepassados senhor de escravos, patrício romano, barão feudal –, deriva o seu privilégio (...) 


O silêncio arcaico das pirâmides repercute o barulho infernal do sistema de fábricas". Não por acaso – numa conhecida interpretação – para o poeta das Flores do mal (livro rigorosamente contemporâneo do Manifesto Comunista), essa mesma e famigerada Modernidade era a cifra de um mundo sempre-igual de ruínas recorrentes, as destruições criativas, no vocabulário da apologética mais recente, próprias de um sistema que não pode subsistir sem a morte precoce de seus instrumentos de reprodução. Assim, no suposto auge renascentista que estaríamos atravessando – a chamada globalização, na opinião apoteótica de um varão sabedor local –, no rumo sabe-se lá de que apogeu econômico futurista, não se achará muito mais do que outro espasmo pré-histórico do sistema tautológico a que se resume a absurda e interminável acumulação de capital comandada pelo único e exclusivo fim de se acumular mais capital.

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Tudo isso, não obstante, é fato que Marx e Engels não resistiram à tentação progressista da época, deixando-se impressionar pela nova prosa modernista do mundo, pela irresistível escalada dos preços baratos da mercadoria burguesa tomando de assalto quantas muralhas da China lhe surgissem pela frente. E como poderiam, naqueles tempos de legitimação revolucionária dos acumuladores de dinheiro e poder? Mas ocorre que deslizando pelo plano inclinado da modernolatria deram com a plataforma de uma outra humanidade, a qual corresponderia enfim verdadeiramente ao seu conceito. É que entreviram naquela novidade avassaladora do capitalismo com relação às civilizações anteriores a chance providencial de quebrar o feitiço pré-histórico da alienação.


Nunca será demais evocar o essencial dessa reviravolta. E para realçar a nota dissonante do Manifesto neste final de século de harmonia extorquida, por que não evocá-lo nos termos mesmos das teorias sistêmicas em voga? Com efeito, não é muito difícil admitir que a evolução histórica da espécie humana sempre se deu por uma adaptação passiva do quadro institucional da sociedade à pressão das forças produtivas. A ser assim, a inovação da modernidade capitalista reside na circunstância, sem dúvida, inédita de que pela primeira vez essa pressão material não só é auto-impulsionada pelo imperativo da acumulação infindável mas solapa, também em permanência, as formas culturais de legitimação social herdadas, provocando por sua vez novas rodadas de adaptações passivas. 


Ora, ao contrário de uma solene declaração burguesa de reconhecimento e sanção de tendências históricas consumadas, o contradiscurso do Manifesto simplesmente demonstra que contra tais fatos há argumentos, além do mais fornecidos por eles mesmos, a saber: esse mecanismo de reprodução social em que a iniciativa cabe apenas à inovação econômica define justamente a pré-história da humanidade e, portanto, o capitalismo ele mesmo é pré-histórico, não espantando que nele ainda se apresente como um destino o cego movimento da economia; e tal engrenagem não saltará dos trilhos enquanto uma rotação ciclópica de eixo não passar o controle prático das transformações estruturais da sociedade para as mãos de indivíduos autônomos e cooperativos, encerrando assim a idade mítica de submissão absoluta do metabolismo social às suas condições materiais de reprodução. (E pensar que hoje quem se ajusta, e não por acaso mediante sucessivas e infinitesimais adaptações passivas, acredita que nesse último enunciado jurássico da causalidade sistêmica se concentra a quintessência do materialismo histórico, em nome do qual de alma leve pede a benção aos vencedores.)


Está claro, porém, o encanto não se romperia por simples decreto emancipatório; não basta apontar para a fantasmagoria para que ela se dissipe. Além de ser materialmente tangível, a peça subversiva que faria girar a porta de saída da pré-história precisaria pertencer, ela mesma, ao encadeamento arcaico que mandaria pelos ares. Estava assim designado o lugar a ser ocupado pela luta de classes: à mola perpetuadora da eterna recaída na barbárie seria delegada a tarefa de encaixar a alavanca numa muralha aparentemente sem brecha, se é fato que haveria mesmo um grão de transcendência na assimetria brutal de poder social entre as classes em luta. Nesse entorse da pré-história, Marx e Engels apostaram todas as fichas da emancipação. Ou quase todas: é bom não esquecer a ressalva acerca da ruína comum que também espreita o conflito de morte nessa guerra social por onde corre ainda a pré-história da humanidade. 


Como se essa reviravolta não bastasse, Marx e Engels repetiram uma segunda vez, naquele mesmo Manifesto, a prova do caráter pré-histórico do capitalismo: sacudida por crises periódicas em que o capital torna redundante sua própria fonte de valorização queimando força produtiva, a sociedade burguesa "vê-se subitamente reconduzida a um certo estado de barbárie" que se abate sobre os indivíduos como outrora a fome e as guerras de extermínio, só que agora na forma invisível de poderes subterrâneos autônomos e incontroláveis.


Nessa segunda prova dos nove – a experiência da impotência social máxima no confronto com as forças anônimas da exploração – ressaltava novamente a novidade histórica do capitalismo: sob o invólucro ultramoderno do progresso, a derradeira sociedade primitiva, mergulhada na inconsciência coletiva do desastre que se avizinha. Digamos então que o essencial do Manifesto reside na figuração contemporânea do nexo entre essas duas formas pré-históricas da opressão: a primeira, contrapondo campos sociais antagônicos e visivelmente personificados; a segunda, a dominação, sem sujeito designado, exercida sobre o conjunto da sociedade pela economia de mercado autonomizada, a ponto de transformar os seus beneficiários diretos em meras funções de seu próprio aparelho de produção. Uma dimensão não vai sem a outra, assim como o proletariado do Manifesto se exaure enfrentando ora a burguesia, ora o capital, do qual a primeira é "portadora involuntária e incapaz de reação", na fórmula do Manifesto, mas nem por isso desprovida de vontade e do poder de disposição sobre os homens que lhe confere um sistema que, por sua vez, a sujeita se não quiser perecer, como aliás se pode ler noutro rascunho famoso redigido dez anos depois, os Elementos fundamentais para uma crítica da economia política: "na redução dos homens a simples agentes do mercado se esconde a dominação de homens sobre homens. Porém a classe dominante não é apenas dominada pelo sistema, domina através do sistema. 


A tendência objetiva do sistema é redobrada e sancionada pela vontade constante daqueles que o servem. Como é cego, o sistema é a própria dominação, e por isso mesmo funciona sempre a favor dos dominantes, mesmo quando os ameaça de ruína; os trabalhos de parto a que eles se entregam nos momentos de crise atestam o pleno conhecimento desse fato".

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Estando assim entrelaçadas as duas dimensões desse diagnóstico do capitalismo como derradeira sociedade pré-histórica – ele mesmo cifra de uma ruptura de época tanto mais paradoxal por implicar um momento de auto-reflexão da espécie humana sob o mais espesso invólucro de uma segunda natureza –, compreende-se que nenhuma das duas pode sobreviver à morte da outra. Os 30 anos de calmaria que sucederam à última grande guerra – efeito anestésico da Guerra Fria, do Welfare europeu e da industrialização consentida da periferia –, varreram da memória o abismo entreaberto pelo apocalipse nazista, na verdade cavado pela mítica espiral da normalidade burguesa, o envolvimento pré-histórico da luta de classes na engrenagem da exploração econômica. Há menos de duas décadas rompeu-se o dique novamente. Como um sinal de alarme entre duas catástrofes, o Manifesto Comunista ainda contínua soando, ontem como hoje, para despertar a humanidade do mesmo pesadelo ancestral da dominação.