Leyla Perrone-Moisés
A desconstrução derridiana não pode ser explicada em poucas palavras. Apenas como introdução, lembremos que Derrida qualificou a cultura ocidental como “logocêntrica”, isto é, baseada num racionalismo que pretende ser universal. O filósofo a “desconstrói” procedendo a uma leitura crítica dos textos de nossa cultura, em busca dos pressupostos metafísicos em que esta se assenta, revelando suas ambigüidades, contradições e não-ditos. A desconstrução rejeita o pensamento dualista (isto ou aquilo, isto contra aquilo) assim como o pensamento dialético (tese, antítese, síntese), deixando sempre aberta uma outra via que é a différance (diferença e adiamento). Esse pensamento sempre em processo, que é a própria desconstrução, leva à formulação de paradoxos que irritam e contrariam aqueles que gostam de respostas claras e categóricas, consideradas racionais, confiáveis e operáveis.
Entretanto, a força e a fertilidade da desconstrução residem justamente nesse enfrentamento constante das aporias, que desafiam o pensamento e deixam abertas as possibilidades imprevisíveis e incalculáveis do “por-vir”. O vigor do pensamento desconstrucionista reside em seu caráter arriscado, e na coragem com que Derrida assume a responsabilidade do pensar sem garantias, avançando sempre em busca de “mais luzes”.
A renúncia às garantias da filosofia logocêntrica tem, como contraponto, algumas palavras freqüentes no discurso de Derrida: “incondicionalidade” e “incondicional”. Aparentemente, há uma contradição entre negar as verdades absolutas, apostar num porvir desconhecido, e uma ética da incondicionalidade, ligada surpreendentemente à defesa de causas “impossíveis”. Mas esse paradoxo é a condição de um pensamento que é, ao mesmo tempo, livre e engajado.
A busca do impossível, do incondicional, é uma confiança no porvir. Trata-se de uma teleologia não teológica, mas que tem relações com a fé (Kierkegaard), e certo aspecto religioso (apontado, entre outros, por Habermas), talvez um resíduo de messianismo judaico. Mas, como não é um pensamento teológico, a desconstrução é “uma responsabilidade infinita, que não dá descanso a nenhum tipo de boa consciência” (Spectres de Marx, 1993).
No exame de várias (senão todas) importantes questões tratadas por Jacques Derrida, aparece a expressão “um perigo e uma chance”. Vejamos alguns dos temas diante dos quais Derrida assume uma posição que implica “um perigo e uma chance”.
O perdão
O perdão é uma condição para a reconciliação (dos indivíduos, das coletividades, dos Estados) e para a continuação da História, isto é, da vida. Nesse sentido, o perdão é uma “chance”. Mas o perdão pode ser (mal) compreendido como esquecimento do crime, como apagamento da culpa e, nesse sentido, é um “perigo”. Como defender o perdão com relação ao holocausto, ao apartheid, aos crimes das ditaduras latino-americanas? Diante desse impasse, entre o perigo e a chance, Derrida lembra primeiramente “a heterogeneidade absoluta entre o movimento e a experiência do perdão, por um lado, e tudo o que muitas vezes a ele é associado, isto é, a prescrição, a absolvição, a anistia ou o esquecimento sob todas as suas formas” (Sur parole. Instantanés philosophiques, 1999).
“O perdão é heterogêneo ao direito” (idem). Devido a essa heterogeneidade entre o crime e seu “apagamento”, o perdão “deve ser concedido àquilo que é imperdoável”. Como? Responde ele: “Se perdoamos o que é perdoável, ou aquilo para que se pode encontrar uma desculpa, não é mais perdão; a dificuldade do perdão, o que o faz parecer impossível, é que ele deve ser dado àquilo que continua sendo imperdoável”.
O perdão não é esquecimento: “Para que haja perdão, diz ele, é preciso que o irreparável seja lembrado ou permaneça presente, que a ferida permaneça aberta.” O perdão deve ser, portanto, incondicional, porque as condições para que ele seja concedido não existem.
A hospitalidade
A hospitalidade, isto é, a aceitação do outro em nossa casa, em nosso país, representa um perigo: o hóspede pode ser um ladrão ou um terrorista. Por outro lado, a hospitalidade é um imperativo ético e a chance de uma relação pacífica entre os homens. Mais que isso: a acolhida do outro é a condição da ipseidade, já que não há sujeito sem o reconhecimento do outro. A hospitalidade deve ser incondicional. Essa afirmação de Derrida incomoda: “Deve-se dar ao outro”, diz ele, “a permissão de fazer a revolução em nossa casa”. “Como assim?”, diz o bom senso. “A hospitalidade tem limites!” Não, responde Derrida. “Se há hospitalidade, só pode ser incondicional. Não há hospitalidade condicional: se coloco condições ao outro que vem, ao que chega, não posso mais falar de hospitalidade. Mas, se a hospitalidade não pode ser senão incondicional, é preciso dizer, ao mesmo tempo, que uma hospitalidade incondicional é impossível, é o próprio impossível” (Spectres de Marx).
Como resolver, na prática, esse paradoxo? Trata-se de considerar o impossível como “talvez possível”, de ter a hospitalidade absoluta como meta a ser buscada apesar de tudo e, nesse sentido, o “impossível” passa a ser condição do “possível”. O impossível é a chance do possível, aquilo que mantém aberta a possibilidade. No caso das leis de imigração, trata-se de “negociar”, de encontrar “a legislação menos pior”. “Este é o acontecimento que é preciso inventar cada vez”, diz ele em Sur parole.
A fraternidade
A fraternidade se liga, positiva ou negativamente, à hospitalidade. A fraternidade é um conceito suspeito, para Derrida, porque ela supõe a união dos “irmãos”, dos parentes, dos próximos e, como tal, oferece o risco da xenofobia, do nacionalismo, do fechamento dos Estados, da guerra. Em Politiques de l’amitié (1994), ele explica por que esse conceito é suspeito: “A fraternidade se enraíza na família, na genealogia, na autoctonia.” Ao mesmo tempo, a fraternidade é uma das respeitáveis divisas da República, a chance conquistada pela Revolução Francesa de uma relação mais digna entre os cidadãos. Assim como o conceito de “tolerância”, o conceito de “fraternidade” é respeitável, mas insuficiente, porque marcado por uma tradição cristã que os associa à “caridade”. Assim, a fraternidade precisa ser desconstruída e reinventada.
As leis
As legislações, que devem servir à justiça, mas não são a justiça, oferecem permanentemente o perigo do erro, da injustiça. Mas elas são a chance de se fazer justiça, na medida em que elas podem e devem ser constantemente repensadas e refeitas, deferidas e diferidas, perfectíveis. A justiça, esta é o indesconstrutível, o objetivo maior da desconstrução. Podemos dizer que a desconstrução, diferentemente da filosofia clássica, não é uma busca da verdade, mas da justiça (Force de loi, 1994).
O segredo
O segredo é perigoso quando ele é guardado e preservado por organizações secretas e conspiratórias, que ameaçam a polis. O segredo contraria também o imperativo moral de nossa sociedade de dizer sempre a verdade, de trazer tudo à luz. Mas o direito ao segredo é também uma condição da democracia, e há muitas situações em que o segredo serve ao bem individual ou público. A questão do segredo é muito ligada a outra questão cara a Derrida, a da mentira, que também tem seus prós e contras, os quais devem ser repensados em cada circunstância.
As novas tecnologias
As novas tecnologias, da comunicação ou da pesquisa médica, implicam perigos éticos e práticos. A internet pode ser usada para veicular falsas informações, pois ela não é totalmente vigiada e controlável. Mas ela serve à democracia porque, nos países onde há censura, informações verdadeiras e úteis podem penetrar clandestinamente através dela. Da mesma forma, a manipulação do genoma humano pode ser usada para fins perigosos, como a eugenia, ou para efeitos ainda imprevisíveis. Mas não se pode deixar de dar uma chance às novas descobertas da ciência na busca de cura para várias doenças. Portanto, esta é também uma questão de dupla face, ou duplo gume.
Esses são apenas alguns exemplos do modo como opera a desconstrução diante das questões que nosso tempo tem de enfrentar. A desconstrução não destrói a questão, não a anula num “nem isso, nem aquilo”. Ela põe em evidência a necessidade de refletir sobre elas, uma reflexão incessantemente recomeçada segundo as circunstâncias.
As reflexões de Derrida levam a freqüentes aporias, isto é, a um “conflito entre opiniões contrárias e igualmente concludentes, em resposta a uma mesma questão”. E, muitas vezes, a um double bind, isto é, aquilo que acontece quando “relações básicas e importantes são cronicamente sujeitas a invalidação através de uma comunicação paradoxal” (teoria de Gregory Bateson). Esse caráter paradoxal do pensamento de Derrida foi apontado como “irresponsável”, já que ele não responde categoricamente a nenhuma questão levantada. Mas o double bind não pede para ser resolvido dialeticamente e, assim, superado, mas para ser interminavelmente reexaminado.
Quem teve a sorte de conhecer Jacques Derrida, pôde ver em sua própria pessoa e seu modo de ser essa preocupação ética sem descanso. Havia nele, ao mesmo tempo que uma cordialidade, uma hospitalidade, uma inteligência poderosa, uma fragilidade, um medo, uma inquietação constante com a responsabilidade de suas posições. Roland Barthes viu muito bem essas características do filósofo quando disse dele: “Sua solidão vem daquilo que ele vai dizer.”
Derrida foi o contrário de um apolítico: foi um corajoso e constante re-pensador da política. Não era um utópico, no sentido de um idealista apenas expectante; mas um ativista do pensamento, um analista agudo do presente e um antecipador do futuro. Alguns o acusaram de niilismo. Ele era, pelo contrário, fundamentalmente otimista. Entre o perigo e a chance, apostava na chance.
A desconstrução não é um sistema de pensamento em que possamos nos apoiar, ou um método que possamos aplicar. As propostas de Derrida são um convite à travessia do abismo na corda bamba, sem rede de segurança. Mas quem pode hoje, honestamente, garantir segurança na travessia dos tempos? É preciso coragem para sair do lugar, para escolher o que abandonar e o que conservar na viagem, porque sem abandono não há renovação, e sem memória não há História.