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Na política não há lugar para o vazio




Desde o início deste ano, quando os protestos que derrubaram os regimes autoritários no “mundo árabe” ganharam as manchetes dos noticiários, temos visto uma sucessão de mobilizações em massa que, inicialmente, ocuparam as ruas e centros urbanos das principais cidades e capitais dos Estados Unidos e Europa, espraiando-se rápida e surpreendentemente pelos demais continentes por força, em boa medida, das chamadas “redes sociais” – um dispositivo que, junto com essas mobilizações e mesmo se confundido com elas, inaugura uma nova era quanto à capacidade global de organização das resistências políticas.
Depois da chamada “Primavera Árabe” que levantou multidões contra a tirania dos governos da Tunísia, Líbia, Egito, Argélia, Jordânia, Marrocos, Iêmen, Bahrein e Síria, vieram os protestos em defesa da educação pública no Chile, os “indignados” na Espanha, os incêndios e saques praticados no norte de Londres, o inconformismo da geração “à rasca” em Portugal, as manifestações contra a crise econômica na Grécia, a oposição ao governo Berlusconi na Itália, até que os protestos ganharam uma razoável perenidade por meio da ocupação estratégica de espaços públicos, tal como se viu especialmente no Occupy Wall Street – uma experiência replicada em diversas outras cidades da qual a última notícia que se tem é sobre o movimento “Ocupa Tóquio”.
No Brasil, tal como acontece noutros lugares, esses acampamentos urbanos têm resistido à forte repressão policial e à indisposição da mídia que, quando não ataca diretamente, silencia e boicota a divulgação do esforço daqueles que, há meses, mantêm de pé as barracas do Ocupa Sampa, do Ocupa Rio e do Ocupa Salvador. Por fim, há pouco mais de um mês, o dia 15 de outubro foi consagrado como o dia da “revolução mundial”, contando com a realização de protestos, ocupações, marchas, greves, fóruns, aulas públicas e demais ações contestatórias em quase 900 cidades espalhadas pelo mundo e virtualmente conectadas.
Sem querer estender o caráter informativo ou quase jornalístico desta apresentação, procurando dar conta das particularidades que melhor caracterizam cada um desses eventos – já que se sabe claramente da radical diferença entre os contextos histórico-nacionais de uma Líbia e de uma Holanda – interessa abstrair essas diferenças em nome das semelhanças e mesmo da situação típica que permite falar, senão em termos de unidade, pelo menos em termos gerais.
Pois bem, por onde começar então? Creio que a melhor expressão para nomear essas manifestações espontâneas – que a muitos assombra e a outros tantos lhes furta as respostas prontas, retiradas de manuais – seja aquela declarada em uníssono pelos espanhóis que se reuniram em Puerta de Sol: “los indignados”. A ideia de indignação corresponde adequadamente ao caráter de irrupção desses movimentos, como se já não fosse mais possível permanecer calado, como se alguma privação, injúria ou mesmo um desconforto qualquer, levado às últimas consequências, tornasse a situação insustentável.
É difícil supor que estado de ânimo precedia tudo isso, que tensões se acumulavam silenciosamente, a ponto de que um ato desesperado – como o de um sujeito que decidiu atear fogo no próprio corpo – pudesse fazer ruir regimes militares encastelados há décadas. A ausência de liberdades civis, a derrocada da democracia representativa, a corrupção dos agentes públicos, os ajustes fiscais para enfrentar a crise econômica mundial, a precarização das relações de trabalho, o desemprego qualificado, o monopólio da informação, a ingerência das corporações sobre os governos – todos esses elementos, por certo, criaram, em seus respectivos contextos nacionais, as condições para a eclosão dessa massa de indignados que gritam: “não nos representam!”.
No entanto, diante desta miríade de motivações, talvez não seja o caso de tentar em vão solucionar questões que perguntam com estupor sobre “o que teria exatamente causado tudo isso” ou “por que não aconteceu antes?”. Trata-se, pelo contrário, de envidar esforços na compreensão do sentido desses eventos, tendo em vista enlaçar suas implicações mais gerais e perguntar até que ponto esses acontecimentos constituem a forma adequada de expressão das contradições de nossa época e o prenúncio do declínio das formas políticas tradicionais de organização e representação.
Desta feita, gostaria de insistir na ideia de indignação como “estado de coisa” resultante de certa privação – melhor seria dizer castração, já que ela nos lembra o esforço memorável de Sigmund Freud, a certa altura do desenvolvimento de sua metapsicologia, inscrito em Totem e tabu (1913). Depois de arquitetar conceitualmente um complexo aparelho psíquico que funcionava a partir do mecanismo de defesa do ego, dissociando representação e energia afetiva correspondente, e, a partir daí, identificar, por meio da interpretação dos sonhos, a etiologia sexual de certas doenças mentais e a importância das experiências infantis para a formação do inconsciente conforme o complexo de Édipo, Freud procura sustentar a teoria que elabora com base em suas descobertas clínicas numa inusitada antropologia das formas primitivas de sociedade, em busca de verdades factuais que explicassem os mitos fundadores, iluminadas por suas formulações acerca do psiquismo.
Em Totem e tabu, Freud retoma uma ideia de Darwin sobre o estágio primitivo das sociedades humanas, baseada na noção de um pai primevo, ciumento e violento, que reservava as fêmeas para si e expulsava da comunidade ou punia severamente os filhos que ousassem contrariá-lo. Na sequência dessa especulação, um recurso a que Freud chamou de “mito científico”, os irmãos, expulsos pelo pai violento e temido, retornam, matam-no e o devoram, colocando fim à horda patriarcal. Consuma-se, portanto, o parricídio – o assassinato do pai, um ato criminoso que, paradoxalmente, dá origem a uma ordem social, fundada em restrições morais sobre as pulsões e na religião que cultua o Totem, representação simbólica do pai que fora morto. O ato de devorar o pai, comprovado pelos registros arqueológicos de rituais totêmicos, consuma a identificação dos irmãos com ele e com o lugar que ocupa, pois ao comer suas partes, adquirem parte de sua força, permitindo-se, pois, gozar dos privilégios irrestritos do patriarca.
Depois de toda a orgia e desordem que se seguem à morte do pai, advém o arrependimento dos irmãos, pois a afeição com “o amável tirano” produz um enorme sentimento de culpa, de desamparo, já que a filiação, antes de tudo, proporcionava um lugar no mundo, um destino para as pulsões e, portanto, um sentido para a existência, ainda que isso implicasse renúncia ao gozo. Com a morte do pai, abre-se uma perspectiva ameaçadora da possibilidade do gozo irrestrito, diante da qual cada um se vê prestes a ser abusado ou violentado pelos outros. Surge, então, entre os irmãos, um ideal que restaura, na forma de uma autoridade simbólica, o poder soberano do pai primevo, estabelecendo uma interdição sumária: a proibição do incesto. O acesso a todas as mulheres seria permitido, menos à genitora – a mulher do pai. Como diz Freud, o tabu do incesto materno é a única interdição comum a todas as civilizações, justamente por que é a renúncia a esse excesso de gozo (que separa mãe e filho) que faz com que os homens saiam dos estágios de selvageria e barbárie e adentrem no universo da civilidade.
O parricídio, portanto, funda uma ordem social, a partir de uma interdição ou Lei simbólica que não está escrita em lugar algum, mas que é consentida por todos, restringindo o gozo absoluto e, consequentemente, condenando os homens à liberdade e à necessidade de falar, de comunicar aos outros a diferença que os singulariza, pois deixam de integrar a massa indiferenciada de filhos e passam à comunidade de irmãos – para dizer de outro modo, elevam-se da condição de súditos a de cidadãos. Unidos, os irmãos fizeram o que individualmente seria impossível: aniquilaram o tirano e criaram uma ordem social no lugar daquilo que antes era o puro arbítrio, onde não cabia qualquer lei senão a vontade do Pai.
Dito isso, não nos parece um exagero supor que o movimento espontâneo dos indignados, ante o abuso de seus representantes e, portanto, do Estado, pretende re-fundar a ordem social, haja vista as expressões coletivas de insatisfação, o questionamento virulento dos poderes constituídos ou mesmo a derrubada impiedosa dos regimes autoritários. Desse ponto de vista, o Estado e suas instituições apareceriam aos sujeitos como representações fantasmáticas da autoridade – pois, em última instância, remontam aos poderes do pai – e estabeleceriam com os indivíduos uma relação de proteção, exigindo em contrapartida a renúncia à violência. Aliás, o caráter aparentemente não violento do movimento dos indignados até poderia ser entendido como um assentimento a essa exigência, se não fosse a evidência de que sua força e, portanto, a maior violência que impõe à ordem consiste em seu número, no poder da união em torno de interesses comuns, portanto, na comunidade de interesses – na vontade comum.
No entanto, os cidadãos, membros do Estado moderno, curiosamente, se distanciaram dos laços que os uniam entre si e silenciaram sobre suas relações – em plena vida civil! Regrediram, pois, à condição de súditos, de filhos, dirigindo-se ao Estado como se estivessem em relação com o Pai, clamando pela segurança de sua proteção. Neste exato sentido – de desfazer essa relação de dependência às formas fantasmáticas do pai –, o ato de recobrar a capacidade de comunicação entre si, de falar ao outro e de externar um descontentamento vivido em comum faz com que o levante dos indignados seja equivalente a um novo parricídio e configure, pois, uma re-fundação simbólica da ordem social – uma fundação da ordem dentro da ordem fundada.
Por efeito deste mito fundador, que, não por acaso, guarda forte semelhança com o Leviatã de Thomas Hobbes, ganha algum sentido (o que, para o mito, equivale à explicação) o sentimento característico de desamparo e de vazio simbólico dos indignados. Isso se expressa claramente na generalidade ou mesmo na ausência de reivindicações por parte desses movimentos. Os setores mais conservadores do espectro político já perceberam e apontaram de modo acusatório e moralista essa suposta debilidade de “não se saber o que se quer”. Não há encaminhamentos programáticos, não há filiação a partidos e sindicatos, não há programas de governo a defender, enfim, não há propostas!
Sempre que interrogados sobre o que querem, o que desejam, os indignados respondem de modo sintomaticamente negativo. Até certo ponto, pode-se sustentar a relação entre “não saber o que se quer” e certa angústia que resulta do desamparo – o vazio de propostas é reflexo de um vazio de ser, dos que não querem voltar a ser súditos amparados pelo Soberano nem são mais cidadãos de um Estado contra o qual agem violentamente, ou seja, reorganizando em comunidade as multidões.
Não saber o que se quer, porém, não constitui necessariamente uma debilidade; ao contrário, trata-se de uma condição intrigantemente humana, contra a qual os neuróticos e narcisistas relutam de modo sofrível. Sendo os homens seres que desenvolveram a capacidade de pensar e, portanto, de falar o que pensam, suas relações se estabelecem, em boa medida, a partir da externação do que se sente. Sentir é atribuir sentido, é saber o que se sente. Mas o sentido não é um valor dado desde sempre, algo inerente à própria vida, de tal forma que possa ser sentido do mesmo modo por todos. Ao contrário, é efeito de uma construção discursiva endereçada ao Outro, tendo em vista sua anuência quanto aos significados conferidos às determinações objetivas, igualmente sentidas como condições de existência, já que isso não assegura, por si mesmo, um sentido eterno, natural, transcendente ou verdadeiro.
“O informulável é a doença do pensamento”, escreveu Lévi-Strauss indicando nossa intolerância aos aspectos da existência que, malgrado o esforço comum de simbolização, permanecem vazios de sentido. Seguindo essa indicação, Jacques Lacan afirmará que o homem está sempre tentando ampliar o domínio simbólico sobre o “em-si” das coisas no mundo a que ele chama o “Real”, seja o real do corpo, do sexo, da morte, do devir incerto daquilo que ainda não é. O sentido, contudo, é sempre uma atribuição, não havendo, pois, um sentido em-si mesmo. Então, como podemos nos assegurar dos nossos valores? Como fundar formas de agir em valores que não estejam à mercê do acaso, do aleatório, do sem sentido? Como fundar nossas ações cotidianas, como queria Kant, em princípios universais anteriores à atribuição de sentido? Sem pretensão alguma quanto à solução desta aporia, diga-se apenas que essa produção de sentido não é e nem pode ser um arroubo individual – quanto maior sua abrangência, precisão e capacidade de expressar as contradições objetivas e reais, maior será seu alcance simbólico, sua capacidade de dar significação à existência, ainda que essas expressões sejam invertidas, falsas ou ilusórias.
Se perguntarmos novamente “o que querem os indignados?”, já não será uma mácula o fato de esses sujeitos não saberem o que querem, pois, mesmo não sabendo, sabem algo: eles sabem o que não querem. Os indignados não querem mais se conformar a ouvir o riso de um estranho Outro enquanto este realiza seu gozo – não querem, pois, silenciar enquanto consomem compulsivamente toda sorte de quinquilharias objetais ofertadas pela indústria cultural; nem querem ouvir apenas a si mesmos – seguindo um padrão de racionalidade que beira o cinismo, pois sabem que o sentido que tomam como verdadeiro é uma ilusão amparada no consumo e, ainda assim, não deixam de se iludir. A noção hegeliana da “consciência infeliz” quanto à unidade perdida é revivida, pois, como um “mal-estar”, uma forma de sofrimento cujo sintoma traduz a impossibilidade de realização plena das pulsões no interior da cultura – mesmo que seja a cultura do narcisismo fundada no consumo, pois todo objeto determinado de satisfação revela sua imediata obsolescência ante a abstração da pura exigência pulsional do gozo. Os indignados, pois, não querem mais ouvir – eles querem falar, e escutá-los neste momento repõe o gesto revolucionário de Freud que, ao contrário dos especialistas de seu tempo e suas verdades prontas, se dispôs a escutar pacientemente a palavra ab-reagida da histérica, decifrar o delírio dos paranoicos e reaver o sentido das construções deslocadas dos obsessivos.
Na Paris de 1968, os estudantes e operários saíram às ruas para expor toda sua indignação quanto ao caráter explorador, alienante e fetichista do sistema capitalista, além de se rebelar contra a imposição dos bons costumes e dos dispositivos de repressão moral e sexual, gritando aos ventos: “queremos o impossível”. Em 2001, no Brasil, milhares de militantes vindos de várias partes do mundo celebraram a primeira edição do Fórum Social Mundial, que seria seguida de várias outras, ano a ano. Não se tratava mais de arriscar o impossível e pôr abaixo o sistema inteiro com suas contradições. Tratava-se de reparar suas injustiças, corrigir suas perversões, “mudar o mundo sem tomar o poder”, já que “um outro mundo é possível”. Em ambos os momentos históricos de irrupção, as massas resolveram não só externar programaticamente suas inquietações, mas inclusive institucionalizá-las, como no caso do Fórum. Pois bem, em pouco tempo essas reivindicações foram contorcidas e enjeitadas para, de algum modo, retornarem aos demandantes na forma de mercadorias: contra a repressão sexual, o imperativo de gozo; contra a intervenção direta sobre os costumes, a criação de tipos com os quais se identificar ou, mais tarde, a oferta plural e inesgotável de identidades a assumir. O “sistema”, por isso mesmo, sobreviveu!
Hoje, os indignados recuam frente ao perigo de anunciar o que se quer, dada a prontidão da indústria e seus agentes publicitários ciosos em captar ardilosamente esse desejo, respondendo-lhe com uma torrente de objetos substitutivos que jamais poderão satisfazer a demanda de gozo dos sujeitos desamparados ou suprimir o vazio de suas existências. Eles falam e querem falar, mas não dizem o que querem – apenas entoam: este é “um mundo que não queremos”.
Quando são interrogados sobre o que querem, quando são coagidos a revelar seu desejo, os indignados apenas silenciam. Não porque tenham plena consciência do poder que isso representa, ainda mais diante da compulsão do mercado e sua ansiedade por verter em objeto-mercadoria toda insatisfação, mas por que já não se sentem à vontade num mundo concebido pela administração não apenas do desejo, mas também das formas de recusa, convertendo numa “miséria neurótica” o horror da indeterminação.
Mesmo assim, o silêncio, como advertiu o filósofo esloveno Slavoj Zizek, poderá ser usado estrategicamente pelos movimentos contra os arautos das ações de emergência. Contudo, não se pode fazê-lo indefinidamente, correndo-se o risco de transformar a necessidade em virtude – em algum momento, não será mais possível se sustentar apenas sobre o silêncio, a recusa ou a negação, bradando “o que não se quer”; será necessário, com certa reserva de autonomia, saber “o que se quer” e, sobretudo, “o que fazer?”, respondendo audaciosamente à pergunta leninista que não cansa de ser reposta pela história a todos que a desafiam.
Há uma questão que ficou em suspenso. Freud parte de observações sobre uma sociedade demasiadamente moralista, cujo regime de investimento libidinal está fundado no paradigma da repressão e, consequentemente, da culpa como resultado das injunções de um supereu centrado na noção de renúncia ao gozo. Já em fins dos anos de 1950, em seu retorno a Freud, Lacan operou uma espécie de adaptação dos modos de satisfação das pulsões às transformações sociais que estavam em curso na nascente sociedade do consumo de massa. Segundo ele, não se trata mais de ordenar ao indivíduo que “não goze!”; ou seja, a inscrição do desejo e as coordenadas da economia libidinal não têm mais como referente o arbítrio do Pai que ordena não “o que fazer”, mas sim “o que não fazer”, o que não se pode fazer. Para Lacan, ao contrário, vivemos numa época em que domina o imperativo superegoico do gozo – “Goze!”
O parricídio, porém, até onde podemos compreender, só é levado a efeito por que os filhos foram privados do prazer. Se, no entanto, vivemos hoje o imperativo do gozo, se nos é permitida toda forma de satisfação pulsional, explorando o imenso espectro das formas pervertidas do desejo – não contrárias à norma, mas justamente seguindo seu imperativo –, por que então matar o Pai? Por que os indignados, filhos da sociedade de consumo, das satisfações desimpedidas, precisariam matar o Pai? Seria para colocar no seu lugar um Pai novamente autoritário, que impusesse limites ao gozo, amparando novamente os sujeitos, conferindo-lhes um lugar no mundo, como querem o Tea Party e os que elegem governos conservadores na Europa?
Contra a abstração do mito, podemos acorrer a determinações mais realistas e perguntar: será que os indignados são, antes de tudo, aqueles cuja fantasia de consumo fora violentamente desfeita pelo colapso das promessas neoliberais? Veja-se, então, o caso dos jovens espanhóis desempregados, os chilenos endividados, os ingleses que saquearam as lojas em busca de aparelhos eletrônicos – os “sem iPad” – ou ainda os jovens portugueses da geração “à rasca” que compõem o “precariado”. É claro que essa restrição ao consumo revela as contradições estruturais do modo de produção do capital. Não há como universalizar a riqueza socialmente produzida senão suprimindo sua apropriação privada. No entanto, em vez de avançar numa explicação estritamente econômica, voltemos ao mito para explorar suas determinações, sabendo, no entanto, que “os mitos” – mais uma vez Lévi-Strauss – “são apenas soluções ideais para as contradições reais”.
Como já foi suposto, a ação dos indignados consistiria simbolicamente em um novo parricídio. Por quê? Porque a ordem fraterna dos irmãos, o Estado moderno, fundado na capacidade de comunicação e limite ao gozo absoluto, fora destruído por aqueles que, mais uma vez, ousaram assumir o lugar do Pai gozante e operaram uma gigantesca farra especulativa tendente à realização absoluta do gozo. Aquilo que antes era um tabu a assegurar a ordem – a condenação da especulação financeira, expurgada da vida civilizada por alguém como Lord Keynes –, tornou-se um imperativo de gozo, um excesso permitido, um mais-gozar, cuja realização ensandecida se deu por meio de ciclos de acumulação, crise e destruição dos valores fictícios, dos valores reais e até mesmo dos valores fundantes da própria ordem do capital – tal como se viu no caso da execução hipotecária que minou a propriedade privada de milhares de norte-americanos durante a crise imobiliária de 2008.
É novamente Freud quem nos dá essa resposta, quando em Psicologia das massas e análise do eu (1921), ele retoma o tema de Totem e tabu (1913), lançando mão da figura do “herói usurpador” – um dos irmãos que, ao recontar o mito fundador às novas gerações, atribui a si exclusivamente o grande feito coletivo da morte do Pai. Não é difícil antever nele o protótipo do indivíduo que se acredita autônomo, soberano e unicamente devotado à realização de seus interesses – portanto, o ideal de homem que funda o liberalismo moderno. É esse indivíduo que não reconhece que o caráter de seu gozo – e, portanto, da transgressão que comete – depende da cumplicidade dos outros; ou seja, sua riqueza depende do reconhecimento social – sem isso, a fortuna dos bilionários se torna, do dia para a noite, uma montanha de papéis sem valor algum. Portanto, o sentido que atribui às suas ações é algo que se dirige sempre ao grande Outro que é a sociedade. Crendo-se autor único dessa transgressão, o “herói usurpador” se sente culpado por um crime que cometeu, mas cujas razões ele desconhece, pois ignora sua dimensão coletiva – sistêmica!
Em termos psicopatológicos, a impossibilidade de conter o gozo, ao qual não se reconhece a origem social, resulta na chamada culpa neurótica. É essa espécie de culpa que é sentida agora pelos agentes da especulação financeira, na medida em que reconhecem que é preciso controlar seus impulsos, e tentam de tudo para fazê-lo, mas jamais admitiriam que, por constituírem a expressão subjetiva da relação-capital que personificam, os mesmos são incontroláveis – os especuladores são neuróticos à beira de nos tragar a todos na espiral de uma psicose alucinatória, caso acreditemos neles. Não haveria melhor termo para lhes definir, senão o de Freud: “heróis usurpadores”.
A política é a forma plena da simbolização, da atribuição de sentido ao que não tem sentido; é a tentativa de preencher o vazio da existência, de antecipar o futuro na forma de uma aspiração, instando os indivíduos a que compartilhem de uma mesma fantasia, tornando-a uma fantasia social. A política é a negação da angústia ante o vazio, quer seja este o vazio do desamparo segundo o mito científico de Freud, quer seja o da perda do objeto original do desejo que é, grosso modo, o seio materno na versão de Lacan, quer seja, ainda, o vazio que resta da impossibilidade ontológica de identificação absoluta entre o eu e o outro, entre indivíduo e sociedade. A política é a forma plena de atribuir sentido às coisas e ao seu destino porque é uma atribuição que se faz em conjunto, não apenas diante do Outro, tendo em vista tornar-se o objeto do seu desejo (como supõe a dialética do reconhecimento nas mãos de Lacan, reposição da “dialética do senhor e do escravo” de Hegel), mas por que se faz, sobretudo, contra o Outro, tendo em vista tornar comum o objeto que se deseja, suprimindo as condições anteriores de senhor e de escravo.
Assim como a política é a forma plena da simbolização, há também uma forma plena da própria política – aquela que fora percebida por Marx. Segundo ele, a política é uma forma histórica determinada de controle sobre as relações de produção e distribuição da riqueza, fundada no conflito entre aqueles que produzem a riqueza material e os que apenas se apropriam dela. Se, como se disse inicialmente, na política não há lugar para o vazio, no sentido do desamparo, mesmo que seja impossível suplantá-lo, é porque, numa sociedade de classes, os indivíduos, mesmo sem se darem conta disso, têm um lugar no mundo: a classe a que pertencem.
A postulação de György Lukács, anunciada em História e consciência de classes(1923), traduz, a seu modo, essa condição de ser ao afirmar que, numa sociedade de classes, a ação do indivíduo deve estar, por força de uma necessidade histórica, em acordo com a classe a que pertence. Por isso mesmo, a consciência de classe, diz o filósofo húngaro, não corresponde ao que um ou outro indivíduo pensa sobre sua condição, nem mesmo ao estágio que essa consciência pode alcançar; a questão da consciência de classe não corresponde a um “nível” de consciência; não diz respeito, pois, a uma questão epistemológica ou de esclarecimento – e sim a uma questão prática, material, relativa às ações dos indivíduos. Mas não se trata de qualquer ação, daquilo que os indivíduos fazem ou deixam de fazer: ela corresponde ao que eles têm de fazer, por força da condição histórica de pertencimento à classe.
Se essa condição de classe garante um lugar aos indivíduos, nem por isso deixa de existir o vazio. Não o vazio deixado pelo que foi perdido – que é, na verdade, o desamparo; mas o vazio daquilo que não foi alcançado nem o será – que constitui a eterna busca, a permanente insatisfação, aquilo que foge ao controle, que não se pode nomear, que ainda não existe, enfim, que é imprevisível. Afinal, quem, dentre os profetas da salvação, poderia prever tudo isso? Quem poderia antecipar quando e onde surgiriam os indignados? Quem poderá dizer o que está por vir?
A política só existe enquanto existem as classes. A política é a negação do desamparo porque impõe aos indivíduos um lugar no mundo – o lugar da classe a que pertencem. O vazio é o lugar da invenção, do que ainda não é, do que pode vir a ser. O lugar do vazio é a negação da política. As classes, em seu antagonismo em torno do vazio, do futuro, do que pode vir a ser levam a política às últimas consequências. A negação das classes é a negação da política. A negação da política é o vazio. O vazio é a negação da negação.
por Paulo Massey