por Ruy Mauro Marini e
Paulo Speller
O problema da
educação deve ser examinado a partir do ponto de vista do processo global da
sociedade considerada. Trataremos, então, de analisar a universidade brasileira
no marco do processo econômico e social do país. No entanto, começaremos com
algumas considerações de caráter geral, em relação à função da universidade na
sociedade capitalista contemporânea e sua relação com o Estado, com a intenção
de compreender melhor o papel que cumpre o sistema educativo superior no
Brasil.
No âmbito das ciências sociais, em particular nas ciências sociais
marxistas, tem se dado atualmente uma interessante discussão sobre o papel da
universidade, e da escola em geral, na sociedade capitalista. O tema ganhou
relevância e se tornou cada vez mais polêmico nos últimos anos, sobretudo a
partir dos movimentos juvenis contestatórios que tiveram lugar na Europa, na
América Latina e em outras partes do mundo no ano de 1968. Desde então,
especialmente na França, Alemanha e Itália, tem se buscado realizar a crítica
radical da universidade burguesa.
Existe uma tese, surgida no decorrer desse debate, que tem grande
importância; os estudos que são realizados ultimamente sobre a questão da
dominação ideológica na sociedade capitalista a utilizam freqüentemente.
Trata-se da tese de Louis Althusser, um dos filósofos marxistas vivos de maior projeção,
que argumenta que a universidade é um aparato ideológico do Estado, um
instrumento mediante o qual o Estado opera na esfera da produção ideológica. Os
aparatos ideológicos do Estado incluiriam, além da universidade, um conjunto de
instituições, como os partidos políticos, os sindicatos, a imprensa, a igreja,
a família (Althusser, 1970). Tais aparatos se constituiriam sem se confundir
com o outro elemento do aparato do Estado: o aparato repressivo, o corpo do
Estado.
Sendo indiscutível que a maioria das instituições que compõe o que
poderíamos chamar de sistema de dominação (Marini, 1976) normalmente se
encontra sob o controle da classe dominante, isto é, da classe que detém o
poder do Estado, o termo “aparato ideológico de Estado” deixa margem a confusões,
já que não permite distinguir quais instituições do sistema de dominação
escapam ao controle da classe dominante, nem quando isto ocorre. Um partido
revolucionário que se propõe a derrocada da classe dominante, mas que em certas
condições atua na legalidade, ou seja, constitui uma instituição enquadrada no
sistema jurídico de dominação, deve ser considerado também como aparato
ideológico do Estado? As próprias Universidades, tal como surgiram e se
desenvolveram na França e na Inglaterra, assim como nos Estados Unidos, não
teriam nascido fora do aparato do Estado de então, e não se mantêm ainda hoje,
em muitos países, separadas do Estado? – o que não significa que não estejam
sob o controle da classe dominante. Não existe, na sociedade burguesa, em condições
normais, uma imprensa que se oriente a combater a ideologia dominante, isto é,
a ideologia da classe dominante?
Ao considerar situações concretas, veremos que a relação que pode existir
entre o Estado e a universidade varia muito no espaço e no tempo. As
universidades surgem, na Idade Média, como corporações de estudantes e
professores que tratavam precisamente de se defender do poder do Estado e
manter uma área própria de autonomia. A luta pela autonomia universitária, em
suas diversas etapas e em diferentes épocas, geralmente tem levado a
enfrentamentos entre os integrantes da instituição acadêmica e o Estado. A
intervenção do Estado na vida universitária é menor, atualmente, em países como
o México ou o Peru, do que no Brasil.
São as condições históricas, determinadas pela luta de classes, que
determinam a vinculação ou desvinculação, assim como o grau de uma e outra, da
universidade em relação ao Estado. A universidade nasce fora do Estado e é
independente dele, no período medieval, precisamente como conseqüência da
debilidade do Estado no marco do forte sistema de dominação próprio da classe
feudal. A universidade se integra posteriormente ao Estado, no período de
dominação burguesa, precisamente como resultado da maior debilidade da
burguesia, uma classe dominante que, tal como advertiu Engels, somente em
condições excepcionais governa isoladamente. Em conseqüência, a burguesia
precisa de um Estado mais forte, que possa inclusive assumir certa
independência, sem que isto implique a debilidade de sua dominação de classe,
como ocorre, por exemplo, na forma do Estado bonapartista. Finalmente, ao se aprofundar a luta de classes, esta incide antes nas
instituições que compõe o sistema de dominação – e, portanto, na universidade –
que no próprio Estado; o elemento característico de uma situação
revolucionária, na qual as classes dominadas colocam em perigo o poder da
classe dominante e ameaçam derrubá-lo, é o fato de que o sistema de dominação
entre em crise, de modo que uma parte mais ou menos significativa das
instituições passam ao controle das classes dominadas e o Estado vacila
enquanto cúspide do sistema de dominação ou centro de poder que paira sobre o
conjunto do sistema de dominação. Somente no caso de que a contra-revolução
triunfe, isto é, de que as classes dominadas sejam derrotadas, tende a ocorrer
que, para se reconstituir, o Estado absorva, durante certo período, a maior
parte do sistema de dominação; o fascismo representa o caso típico no qual o
limite do Estado coincide com os limites do sistema de dominação.
Como instituição funcional ao sistema de dominação, ou seja, em condições
em que o controle da classe dominante sobre ela se mantém intacto, a
universidade cumpre na sociedade burguesa três funções principais.
A primeira é a de reprodução das condições ideológicas nas quais a
burguesia assenta as bases de sua dominação de classe. Podemos distinguir aqui
dois níveis. Um primeiro nível está dado pela reprodução, na esfera da
universidade, da divisão do trabalho, da estrutura de autoridade e dos demais
elementos constitutivos da dominação burguesa; é dessa forma que a universidade
reproduz permanentemente a separação entre trabalho manual e intelectual que
impera no conjunto da sociedade, forma os quadros diretivos para a vida
política e econômica, etc. Num segundo nível, a reprodução do sistema de
dominação se dá pela transmissão dos valores ideológicos mediante os quais a
burguesia legitima sua dominação – a análise de teorias pedagógicas burguesas
nos mostraria como seu conteúdo e seus métodos respondem às fases que atravessa
na história a dominação burguesa –; num plano mais imediato é possível destacar
o fato de que a universidade transmite, de forma permanente, valores como o
individualismo e a competição.
A segunda função que cumpre a universidade burguesa é de ordem econômica
e se traduz na transmissão e mesmo criação, através da pesquisa, de técnicas de
produção. A universidade constitui um
dos centros fundamentais de concentração da ciência e da técnica, com a
finalidade do seu desenvolvimento e transmissão aos que deverão utilizá-las
como meio para levar a cabo a exploração do trabalho em benefício do capital.
Neste sentido, a universidade se converte num dos instrumentos principais para
a reprodução do sistema econômico capitalista. Em outro plano, a universidade
cumpre essa função econômica ao assegurar a formação de quadros médios e
superiores requeridos pelo mercado de trabalho e prover a mão de obra
qualificada que requer o funcionamento do sistema.
A terceira função da universidade burguesa, de caráter político, é a de
ser um dos campos no qual a burguesia pode concretizar as alianças de classes
que necessita para afirmar sua dominação. Num primeiro sentido, isto significa
aliança com as antigas classes dominantes, o que é particularmente certo nos
períodos em que a burguesia ainda luta pela hegemonia sobre elas e se integra à
velha universidade de tipo oligárquico, tratando de modificá-la em seu
benefício, mas preservando parte dos privilégios que a universidade outorgava àquelas
classes (isto se pode traduzir, por exemplo, no caráter seletivo e excludente,
em favor das velhas oligarquias, que marcam alguns cursos, como é o caso do
direito e da medicina, em alguns países). Em outro sentido, a universidade
propicia a ampliação da aliança da burguesia com as classes subalternas, em
especial com a pequena burguesia, ao se apresentar como um meio de promoção
social.
No que se refere à luta de classes, é precisamente porque cumpre esta
função política que a universidade constitui um dos pontos críticos do sistema
de dominação. Se consideramos os dois grandes momentos da reforma universitária
na América Latina, veremos claramente que expressam processos particulares da
luta de classes. Na década de 1920, nos encontramos com uma burguesia
ascendente, em aliança com a pequena burguesia, que luta contra as antigas
frações burguesas hegemônicas, latifundiários e comerciantes, por transformar a
universidade e abrir caminho a sua adequação às exigências do desenvolvimento
urbano, industrial. Na década de 1960, o espetáculo que se apresenta é o de uma
pequena burguesia, que a industrialização dependente levou a um aumento
numérico e a uma crescente proletarização, em luta contra a burguesia
industrial e financeira, buscando para isso a aproximação com as massas
trabalhadoras, em particular com o proletariado urbano.
Este marco geral, que nos permite distinguir as funções ideológicas,
econômicas e políticas da universidade burguesa, é perfeitamente aplicável à
América Latina. Mais que isso, somente o desenvolvimento real da sociedade
burguesa latino-americana leva ao surgimento de uma universidade desse tipo.
Tal caracterização se verifica mesmo em países que, como o Peru e o México,
contaram com instituições universitárias desde o começo da colonização,
instituições que tem seguido a pauta da universidade feudal ibérica (a dupla
origem da Universidad de México, real e pontifícia, ilustra este fato com
perfeição). Na medida em que essas sociedades ingressam à fase econômica de
tipo capitalista, tais instituições vão se refuncionalizando, até se desprender
da antiga pele colonial. Seria interessante, neste sentido, analisar as
modificações sofridas pela educação superior no México no período do porfiriato, as vicissitudes da Universidad de México a partir de 1910 e seu
ressurgimento sob uma forma modernizada, no período posterior a 1929,
coincidentemente com a entrada da sociedade mexicana na etapa de pleno
desenvolvimento capitalista, industrial.
O caso brasileiro é ainda mais ilustrativo, já que neste país a
universidade é diretamente uma criação do capitalismo industrial, posterior aos
anos 1930. Seus primeiros passos, as primeiras tentativas de formação de
instituições universitárias, correspondem à década anterior, precisamente
aquele em que arranca o processo de industrialização brasileira, ao mesmo tempo
em que já se manifesta a crise da antiga economia exportadora. A história da
universidade brasileira não cobre ainda um período muito maior do que 40 anos.
As razões para que isso tenha sido assim são várias, mas se derivam
sempre do caráter da formação social brasileira. Economia de exportação, que
produz matérias-primas, alimentos e metais preciosos, o Brasil dependia do
mercado internacional para prover os meios de vida e de produção que necessitava;
até a mão-de-obra, durante longo período, foi proporcionada através do mercado
internacional, mediante o tráfico de escravos africanos e, depois, da
importação de trabalhadores europeus. É natural, portanto, que as idéias, assim
como os produtores e administradores de idéias, os letrados, fossem importados
dos centros metropolitanos europeus. O envio de estudantes à Universidade de
Coimbra, que voltavam ao país transformados em juristas e homens de letras, é a
resposta fiel, no plano ideológico, do esquema de produção e circulação próprio
da economia exportadora brasileira, tanto no período colonial como
independente.
Claro está que este processo correspondia, particularmente na fase
colonial, aos interesses de dominação ideológica da metrópole. Mas essa
dominação não teria podido estabelecer um peculiar sistema educativo se não
correspondesse a um esquema dado de produção e circulação de mercadorias.
Tampouco se entenderia o próprio conteúdo da educação brasileira – em seu
período colonial, assim como em boa parte do período independente – se não
enfocamos as relações de produção que se encontravam na base do sistema
produtivo.
Já apontamos acima esse conteúdo: a formação de letrados, homens de leis
e de letras. Que outra coisa esperar num país onde o trabalho produtivo se
identificava com a condição escrava? A escravidão leva a separação entre o
trabalho manual e o intelectual ao seu limite extremo. O trabalho manual é
considerado não apenas como algo desagradável, mas também degradante, sinal visível
do status de sujeição. A formação educativa das camadas médias e superiores se
distancia, então, até onde é possível, de tudo que tenha relação com a produção
material. Onde o trabalho produtivo é identificado como sujeição e degradação,
a cultura se cristaliza em outro pólo como refinamento e excelência. Assim, a
educação superior não tem como desenvolver as três funções que a caracterizam,
no marco da sociedade burguesa, e aparece, mutiliada e caricaturizada, reduzida
à sua função puramente ideológica.
Isso repercute, naturalmente, nos demais níveis educativos. Ao considerar
a sociedade colonial brasileira, veremos que ali praticamente não existe a
instrução primária como instituição social independente, sendo que tal
instrução se identifica ainda com a instituição familiar e está reservada às
classes poderosas. A instrução média, extremamente limitada, apenas começa seu
processo de institucionalização no marco da instituição religiosa, para o qual
os jesuítas desempenharam um papel relevante.
As características do processo de produção, eminentemente agrícola e
baseado na incorporação extensiva de terras e homens, agravam ainda mais essas
tendências. Os artesanatos e as manufaturas não apenas não encontram campo para
se desenvolver, dado o caráter da economia exportadora, mas também são
proibidos pela metrópole quando, no século XVIII, ao se abrir o ciclo da
mineração e, com isso, a urbanização, aparecem as condições para que eles se
desenvolvam com base numa separação mais marcada entre a cidade e o campo. No
entanto, a condição dependente da própria metrópole atua como elemento
sobre-determinante: sua subordinação à Inglaterra a obriga a impedir o
desenvolvimento industrial urbano para assegurar assim um mercado para as
florescentes manufaturas daquele país.
A extremada polarização da estrutura social, gerada pela escravidão, não
apresenta à classe dominante a necessidade de estabelecer alianças políticas. A
educação superior se reserva, pois, à oligarquia latifundiária. O
desenvolvimento de uma estreita camada média autóctone, surgida com a
urbanização do século XVIII, e seu acesso à cultura, apenas introduz um
elemento de conflito no seio da elite letrada, que coincide com a crise da
economia colonial, no final do século. A participação de letrados nas primeiras
lutas pela independência é um fato relevante. A resposta da classe dominante é
a repressão em todos os planos, não sendo acidental que, após a expulsão dos
jesuítas, o governo colonial estabeleça pela primeira e única vez na história
do Brasil o breve período de monopólio estatal do ensino, que a primeira
constituição independente (1824) suprimirá.
Não é, porém, o fato político da independência o que irá assentar as bases
para uma progressiva mudança no plano educativo, mas sim a transformação da
estrutura econômica, representada pela translação do centro de gravidade da
economia brasileira ao centro-sul, com base no cultivo do café. Aparecendo já
em 1830, este cultivo somente ganhará peso na produção brasileira na metade do
século, precisamente quando o regime de trabalho escravo recebia seu primeiro
golpe mortal, com a proibição do tráfico, que se completará em 1888, com a
abolição da escravidão. Enquanto isso a população escrava, entregue à sua
própria reprodução e concentrada em grande medida nas zonas decadentes do
nordeste açucareiro, perderia progressivamente importância frente o crescimento
da população trabalhadora livre, sujeita a regimes variados de contratação, que
tendiam, contudo, a conformar uma base real de trabalho assalariado. Começava
assim o trânsito do país a uma economia capitalista plena, que levaria ainda
tempo para se expressar no plano político e acabar com a dominação da
oligarquia açucareira. Neste lapso, a educação superior segue regida pelo
padrão colonial, ainda que se possa observar, desde a segunda metade da década,
o surgimento de algumas instituições superiores – faculdades de direito, em
geral –, enquanto ganha impulso a formação militar, de caráter mais técnico
(aqui começa o ensino de engenharia), da qual se beneficiam principalmente as
camadas médias.
É precisamente essa nova elite militar a que servirá de ponta de lança
para golpear politicamente a oligarquia açucareira e forçá-la a aceitar uma
aliança com a burguesia do café, que não tardará em assumir a hegemonia. O
Estado muda de pele, a República toma o lugar do Império. Com isso,
precipitam-se as transformações do aparato do Estado. Entre elas, está a
criação do Ministério de Educação, Correio e Telégrafos, mais tarde convertido
em Ministério de Educação e Justiça.
Ainda que importantes, as modificações verificadas no marco da Primeira
República (1889-1930) não revolucionam a base real da sociedade brasileira; na
verdade, tais mudanças abrem passo para a afirmação plena dos traços que já se
desenvolviam desde mediados do século passado, sobre os quais se havia gestado
a moderna economia exportadora, de corte capitalista. O sistema produtivo segue
repousado no regime de incorporação de novas terras e de mais força de
trabalho, mediante imigração. A economia mantém seu caráter marcadamente
agrário, e o desenvolvimento industrial, de base essencialmente artesanal,
continua estancado pela própria forma de articulação da economia nacional com o
mercado mundial, ou seja, o esquema simples de dependência: exportação de
matérias-primas e alimentos e importação de manufaturas. Como conseqüência, a
urbanização mantém também um ritmo lento e, com ela, a formação gradual das
classes médias urbanas, tanto proprietárias (artesãos, pequenos industriais e
comerciantes) como não proprietárias (funcionários, empregados).
O regime republicano, por esta mesma razão, tende a assumir a forma
oligárquica. A tentativa das camadas médias urbanas, encabeçadas pela
oficialidade jovem, de assumir um papel decisivo no plano do Estado, logo se vê
obstaculizada pela aliança estabelecida entre a velha oligarquia açucareira e a
nova burguesia do café. Desalojadas da condução do bloco republicano em 1893,
os setores médios tentarão ingressar na luta política e jogarão suas cartas na
chamada campanha civilista de 1910, pela qual buscam impedir a consolidação do
bloco burguês-oligárquico, que se apoiava na alta oficialidade do exército. Sua
derrota significa a proscrição da vida política por um longo período e lhes
fará desembocar, na década de 1920, conduzidas sempre pela oficialidade jovem –
os “tenentes” –, numa tática insurrecional que agitará o país e preparará as
condições para a Revolução de 1930.
Entende-se assim porque as mudanças introduzidas pela Primeira República
no plano educativo tenham sido limitadas. Mesmo que tenha ocorrido a separação
entre a igreja e o Estado, isto somente repercutiu nas escolas primárias
públicas, que eram a minoria, ao se suprimir o ensino religioso. O sistema
educativo primário e médio segue em sua imensa maioria em mãos de particulares,
principalmente a igreja, além de se descentralizar, escapando à esfera do
governo federal. Não se verifica, pois, a formação de um sistema educativo
nacional integrado, e nem sequer de uma legislação que oriente a educação em
todo o país. A educação superior segue se desenvolvendo sob a forma de
instituições isoladas, faculdades de direito em sua maioria, que proporcionam
ao país os administradores, juristas e políticos, e observa-se também o
surgimento das primeiras escolas de medicina.
Isso explica o porquê do movimento reformista de Córdoba, que teve tanta
influência em muitos países da América Latina, tenha repercutido pouco no
Brasil. A derrota das camadas médias a que fizemos alusão foi sem dúvida um
fator decisivo para que isso ocorresse. Ainda assim, o problema educativo se
coloca já para as camadas médias, dando lugar à tentativa de formação de
universidades (a Universidade do Rio de Janeiro, em 1929, e a Universidade de
Minas Gerais, em 1927), que eram, de fato, um mero agregado de instituições isoladas.
Mais importante é o debate educativo em torno aos métodos e conteúdos da
educação, particularmente a educação média, que se expressou na corrente da
escola nova, e algumas reformas levadas a cabo nos Estados, em especial a que
teve lugar em Minas Gerais, também referidas ao nível médio e elementar.
As grandes transformações no campo educativo surgirão à raiz da Revolução
de 1930. Esta corresponde à ascensão ao poder das camadas médias burguesas,
comercial e industrial, ligadas ao mercado interno, em aliança com as antigas
classes dominantes. Este é o esquema de relações de classe que prevalece, após
um período de turbulência política, ao chegar a Revolução de 1930 a seu
verdadeiro resultado: o Estado Novo, nascido do golpe de 1937, sob a condução de
Getúlio Vargas.
Abrigando em sua roupagem ideológica e em seus métodos de governos muitos
elementos do fascismo italiano, o Estado Novo tem com o regime mussoliniano
apenas uma semelhança formal. Antecipa, em alguns traços, o justicialismo
peronista, que se implantará na década seguinte na Argentina, e se identifica com
muitas tentativas de estruturação do moderno Estado latino-americano em outros
países do continente. Sua característica essencial é a de ser o marco no qual
se estabelece a aliança entre a burguesia industrial e a burguesia
latifundiária, isto é, entre a classe que hegemoniza os setores ligados ao
mercado interno e a que representa os interesses dos grupos ligados à
exportação. Neste marco, se estabelecem relações de compromisso e subordinação
no que diz respeito à pequena burguesia urbana, por um lado, e a classe
operária, por outro, que servem ao regime corporativo ideado pelo fascismo
italiano. É então que se dá a criação da moderna organização sindical
brasileira, estreitamente subordinada ao Estado, e que busca transcender o
âmbito operário para se estender à pequena burguesia urbana. Vale recordar,
neste sentido, a criação de um sindicato nacional estudantil, a União Nacional
de Estudantes, em 1938, que desempenharia um papel relevante nas lutas
educativas e políticas no futuro.
No processo de criação de um Estado capitalista moderno, a revolução de
1930 não descuida do campo educativo. Com a criação, em 1930, do Ministério de
Educação e Saúde (mais tarde, de Educação e Cultura), assiste-se à formação de
sistema educativo nacional, altamente centralizado. Promove-se a educação
primária; reestrutura-se o ensino médio,
com as reformas de 1931 (que restabelece o religioso nas escolas públicas, com
caráter facultativo) e de 1942, e se estrutura um importante sistema de
formação profissional, que assegura a oferta de mão-de-obra qualificada e
semi-qualificada que a industrialização requeria.
A partir de 1931, cria-se um sistema universitário nacional, com
autonomia didática e administrativa. Reformam-se as antigas universidades
criadas na década anterior, particularmente as de Minas Gerais e do Rio de
Janeiro; esta se transforma em 1938 no que seria a cabeça do sistema
universitário brasileiro: a Universidade do Brasil. Em 1934 se funda a Universidade
de São Paulo e, em 1935, a do Distrito Federal; em São Paulo se verifica
também, em 1932, a criação da Escola Livre de Sociologia e Política, pioneira
no estudo das ciências sociais no Brasil.
O sistema de educação superior surgia, então, no contexto da
transformação do antigo Brasil agrário e exportador ao Brasil industrial de
nossos dias. Seu percurso estará ligado ao desenvolvimento econômico e político
dessa nova realidade, e se caracterizará por um crescimento anárquico que
transborda os marcos estabelecidos no período do Estado Novo, sem que novos
estatutos legais lhe venham a dar coerência. Somente em 1961 se aprova uma lei
global, a de Diretrizes e Bases da Educação, fruto das lutas políticas que
durante mais de vinte anos haviam sacudido o país. No entanto, sua vigência foi
curta, posto que o golpe militar de 1964, que culmina o agitado período que
vive o Brasil a partir de 1950, levará a profundas transformações
institucionais no país, inclusive no campo educativo.
Um breve repasso no que ocorreu no Brasil no período prévio a 1964 nos
mostra, inicialmente, uma forte expansão da matrícula. No nível primário, entre
1948 e 1965, o crescimento havia sido relativamente alto; em 1964, 90% da
população correspondente já recebiam atenção, ainda que sua eficiência fosse
muito baixa. O ensino médio, em consonância com o que acontecia em toda a
América Latina, crescia a um ritmo ainda mais acelerado, alcançando 257%, mas
mantinha o tradicional predomínio da escola privada (64% do total). Um fenômeno
oposto se observava no nível superior, onde, junto com o crescimento da
matrícula, o ensino público seguia sendo majoritário.
Entre as tendências mais relevantes do período, é preciso destacar a
relevância que começa a adquirir, a partir dos anos 1960, o tema da formação de
recursos humanos. O primeiro plano educativo nacional (1963-1965) colocava
especial ênfase neste aspecto. Igualmente, desenvolvem-se os estudos de
economia e ciências sociais em geral. Suas expressões no nível superior foram
particularmente relevantes no Instituto de Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB), criado em 1957, e na Universidade de Brasília (UnB), que começa a
funcionar em 1962; ambas instituições tiveram a característica de se colocar
fora do esquema formal universitário, para escapar de sua rigidez, e jogaram um
papel decisivo no processo ideológico que acompanhou o auge e a crise da
industrialização substitutiva de importações no país, com os fenômenos
políticos correlativos: o nacionalismo e o populismo.
Finalmente, é necessário assinalar o desenvolvimento e a importância
política que teve o movimento estudantil, liderado pela UNE, no período da
pós-guerra, que fizeram desse movimento uma das grandes formas políticas na
crise de princípios dos anos 1960. Atuando ativamente nas grandes campanhas
nacionais, particularmente na luta pela nacionalização do petróleo; assumindo
as causas mais avançadas, como a defesa da Revolução Cubana; lançando
iniciativas ousadas, como a campanha de alfabetização, no período presidencial
de João Goulart, a UNE desempenhou um papel importante no processo político
brasileiro daquele período. Este processo, ao arrastar amplas camadas da
população urbana e rural ao centro da vida política, levou as classes
dominantes e o imperialismo estadunidense à solução contra-revolucionária,
expressa no golpe militar de 1964.
As convulsões políticas que
sacodem o Brasil desde a década de 1950 desembocam finalmente no golpe de
Estado de 1° de abril de 1964, que dá lugar à formação do atual regime
tecnocrático-militar, ao que se encontra submetido o país. Através do Estado
Militar, o grande capital nacional e estrangeiro assume a plena hegemonia
política sobre a sociedade em seu conjunto e se impõe a tarefa de
reestruturá-la em seu próprio benefício. Isso gera profundas alterações
institucionais, mudanças radicais na estrutura econômica, deslocamentos nas
alianças e relações de classes, que se estendem até 1968 e permitem, a partir
desta data, edificar de maneira acelerada a moderna sociedade brasileira
(Marini, 1974).
Em relação à educação superior, a ditadura militar se move, em sua
primeira fase, isto é, até 1968, em dois sentidos: busca dominar o movimento
estudantil, que tinha ganho no período anterior grande capacidade de
mobilização e havia desempenhado um papel destacado no processo político que
precedeu o golpe de Estado; e pretende estabelecer novos lineamentos para as
estruturas educativas, com o fim de adequá-las aos novos objetivos econômicos e
políticos do regime do grande capital.
A luta contra o movimento estudantil adquire um caráter claramente
repressivo. Além de ilegalizar suas organizações, em particular a UNE, durante
todo o período o regime perseguirá os dirigentes e quadros políticos
estudantis. Em 1965 se edita a Lei Suplicy, que recebe seu nome do então
ministro de Educação, e que planeja uma nova estrutura organizativa para os
estudantes, eminentemente apolítica e centrada em questões estritamente
culturais e recreativas dos grêmios estudantis.
Paralelamente se estabelecem os acordos MEC-USAID – entre o Ministério de
Educação e Cultura e a Agência Internacional para o Desenvolvimento
Norte-Americano –, destinados a reorganizar a estrutura educativa superior do
país. Tais acordos nunca se tornaram públicos e são conhecidos principalmente
pelos seus resultados. No fundamental, como mais tarde se veria, estavam
centrados na concepção de uma educação funcional e rentável, que converteria a
universidade numa fábrica de recursos humanos para a economia capitalista
brasileira, tal como a queria conformar os grandes monopólios nacionais e
estrangeiros.
Reorganizada na clandestinidade, a UNE dirigiu durante todo esse período
a luta dos estudantes contra os dois objetivos levantados pelos militares.
Ainda que dentro das formas legais de luta estabelecidas pela Lei Suplicy, a
UNE se manifestou pela sua revogação, ao mesmo tempo em que se erguia contra as
tentativas governamentais de implementar as medidas derivadas dos acordos
MEC-USAID. Neste sentido, a UNE lutou pela gratuidade do ensino; a ampliação da
matrícula, com supressão dos exames de ingresso à universidade; a manutenção
dos restaurantes universitários, que beneficiavam principalmente os estudantes
que contavam com poucos recursos; e o aumento do gasto público para a educação.
Simultaneamente, vinculando a luta específica dos estudantes com os interesses
populares em geral, a UNE participou ativamente na luta pela defesa das
liberdades democráticas, contra a penetração imperialista na economia do país,
contra as campanhas de esterilização massiva praticada entre os camponeses por
agências governamentais, com assessoria norte-americana, etc.
Dessa forma, o movimento
estudantil ganhou um lugar destacado entre as forças anti-ditatoriais. Estas
forças, incorporando a classe operária e os camponeses, amplos setores da
pequena burguesia e inclusive frações burguesas deslocadas, ganharam as ruas em
1968. A amplitude do movimento e o vigor das mobilizações sacudiram o regime
militar. A resposta do governo foi a contra-ofensiva a fundo, mediante o Ato
Institucional número 5 de 13 de dezembro, que suspendia o Congresso, retirava
os direitos individuais mais elementares e colocava nas mãos do Estado poderes
discricionários como nenhum outro regime anterior teve no país.
Desde finais de 1968 se assiste à reorganização do sistema educativo.
Entre as medidas básicas a destacar está a Lei 5.540, de 28 de novembro, que
preparava a reestruturação da educação superior, e que se completou com o
Decreto-Lei número 464, de 11 de fevereiro de 1969, que suprimiu praticamente a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1961) então vigente. No marco da nova
legislação foram concedias amplas facilidades aos particulares para a criação
de escolas e cursos isolados, manteve-se o sistema de exame de ingresso ao
ensino superior e se dava prioridade absoluta à educação científica e técnica.
Naquele mesmo mês, o governo editou o Decreto-Lei número 477, que definia
os delitos políticos nas universidades e estabelecia sanções para os mesmos.
Mediante processos sumários, os professores considerados culpados ficariam
impedidos de oferecer ensino em qualquer escola por um prazo de cinco anos, e
os estudantes ficavam proibidos de se matricularem numa instituição de ensino
superior no prazo de três anos. Recordemos, finalmente, que em setembro de
1969, por Decreto-Lei número 869, se tornou obrigatória, em todos os níveis de
ensino, a Educação Moral e Cívica, inclusive nos cursos de pós-graduação, onde
era dada sob a denominação de Estudos de Problemas Brasileiros.
Este é, no essencial, o marco jurídico no qual se desenvolve a educação
superior brasileira, sob o atual regime militar. Trataremos, agora, de analisar
seus resultados em função das linhas básicas que orientam o pensamento
governamental nessa matéria.
Tais linhas podem se resumir em três: primeiro, o liberalismo, no sentido
clássico de que o Estado exerce um papel normativo, deixando em mãos da empresa
privada as iniciativas relacionadas à educação; segundo, o desenvolvimentismo,
isto é, a ênfase na educação como fator decisivo no processo de desenvolvimento
econômico; e terceira, o doutrinarismo, em cuja perspectiva a educação aparece
como um elemento integrante da defesa da segurança nacional.
O liberalismo em matéria
educativa, praticado pelo regime militar, se manifesta: a) na entrega da
educação superior à empresa privada, o que conduz à privatização do ensino e
converte o ensino em negócio; b) liberação da matrícula, que somente encontra
limites na capacidade do capital privado para criar oportunidades de ensino e
na capacidade dos estudantes em
aproveitá-las (entende-se aqui que essa capacidade é tanto intelectual
como sócio-econômica); e c) na adequação entre a oferta e demanda da mão-de-obra
técnica e profissional segundo o jogo do livre mercado.
É assim como podemos entender que, entre 1964 e 1973, as instituições
privadas de ensino superior tenham passado de 38% do total a 61%; para 1976 se
estimou que 74% das escolas superiores são privadas e somente 26% públicas (ver
quadro I).
QUADRO I
PORCENTAGEM DE PARTICIPAÇÃO DE INSTITUIÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS NA MATRÍCULA DE
NÍVEL SUPERIOR
(1964-1973)
|
Ano
|
Instituições públicas
|
Instituições privadas
|
|
1964
|
61.5
|
38.5
|
1965
|
56.2
|
43.8
|
1966
|
54.6
|
45.4
|
1967
|
56.9
|
43.1
|
1968
|
55.2
|
44.8
|
1969
|
53.9
|
46.1
|
1970
|
49.5
|
50.5
|
1971
|
44.9
|
55.1
|
1972
|
40.3
|
59.7
|
1973
|
39.1
|
60.9
|
|
FONTE:
Departamento de Assuntos Universitários (DAU). Ministério de Educação e Cultura
(MEC) - Brasil.
Isso tem importantes conseqüências:
a) uma porcentagem significativa dos cursos (30% do total) são
irregulares ou não reconhecidos oficialmente, o que dificulta a inserção dos egressos
no mercado de trabalho (ver quadro II).
QUADRO II
CURSOS DE NÍVEL SUPERIOR IRREGULARES E NÃO RECONHECIDOS OFICIALMENTE (1974)
|
|
Total
|
Regulares
|
Irregulares e não reconhecidas
|
%
|
|
Universidades
privadas
|
450
|
352
|
98
|
22
|
Universidades
Federais
|
710
|
511
|
199
|
28
|
Universidades estatais
|
178
|
136
|
42
|
23
|
Universidades municipais
|
20
|
11
|
9
|
45
|
Escolas Isoladas federais
|
42
|
33
|
9
|
21
|
Escolas Isoladas não federais
|
1 974
|
1 326
|
648
|
33
|
TOTAL:
|
3 374
|
2 369
|
1 005
|
30
|
|
FONTE: Departamento de Assuntos Universitários
(DAU). Ministério de Educação e Cultura (MEC) - Brasil.
b) a qualidade do ensino se deteriora, o que se pode estimar pelo fato de
que, entre 1966 e 1973, enquanto a matrícula do ensino superior cresceu 797%, o
número de professores aumentou apenas 194%. Trata-se de um fenômeno que tende a
se agravar: em 1960, a relação aluno/professor no ensino superior era de 4.4,
enquanto que em 1973 é de 13.1; paralelamente, enquanto o número de estudantes
cresceu a uma taxa anual de 10.8 entre 1960 e 1965, de 21.4 entre 1965 e 1968 e
de 23.9 entre 1968-1973, o número de professores aumentou em 9.5, 10.5 e 6.8
respectivamente (ver gráfico I).
c) As possibilidades de matrícula que cria o sistema educativo não podem
ser aproveitadas, o que se revela nos grandes centros: em 1974, 25% do total de
vagas para a educação superior no país não foram ocupados, proporção que na
cidade de São Paulo chegou a 41%. Isso se deve ao custo dos estudos, à
saturação do mercado de trabalho em certas carreiras, à situação irregular de
muitos dos cursos oferecidos e à baixa qualidade do ensino (ver quadro III).
QUADRO III
VAGAS NÃO OCUPADAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR
(1974)
|
|
Cursos superiores
|
Vagas oferecidas
|
Vagas não ocupadas
|
%
|
|
São Paulo
|
1 025
|
134 915
|
56 367
|
41
|
Rio de Janeiro
|
407
|
36 136
|
4 546
|
12.5
|
Minas Gerais
|
404
|
27 887
|
7 141
|
25.6
|
Brasil
|
3 374
|
304 887
|
76 498
|
25
|
|
FOENTE: Departamento de Assuntos
Universitários (DAU). Ministério de Educação e Cultura (MEC) - Brasil.
A escassez de professores é particularmente marcada no setor privado do
sistema educativo: em 1972, o setor público absorvia 56% do total de
professores e 82% dos professores de tempo completo. No setor público federal,
que está em melhores condições, em 1973, 35% dos professores ali empregados
eram de tempo completo e 65% de 24 horas semanais.
Já foi apontado que o liberalismo do regime militar brasileiro em matéria
educativa implica a liberação da matrícula nas instituições de ensino superior.
Isso se traduziu num incremento espetacular da mesma, posto que em dez anos,
entre 1963 e 1973, cresceu mais de 550%. E o fez em sentido progressivo: em
1963-68, a taxa média anual de crescimento foi de 17.5 e, em 1968-73, de 23.9.
Estas cifras, que são exibidas com orgulho pelo regime, além de acarretar em
problemas como os indicamos anteriormente, ocultam, particularidades que
devemos apontar. Como vimos, é o setor educativo privado que apresenta as
condições menos adequadas e que tem absorvido a maior parte do crescimento, em
detrimento do setor público, em especial das instituições federais, que
concentravam, em 1966, 45% do total das matrículas, reduziram sua participação
a 24% em 1972 e deverão diminuir esta cifra ainda mais, uma vez que, para 1976,
o governo finalmente conseguiu implementar o sistema de ensino pago, por
mediação do Programa de Crédito Escolar.
Por outra parte, o grande aumento da capacidade de matrícula que se
verificou no sistema educativo ainda não atende a demanda real de educação
superior. Em 1966 se apresentaram ao exame vestibular em todo o país 144 mil
candidatos, dos quais somente 69 mil, isto é, 47%, obtiveram inscrição; em 1968
foram 228 mil candidatos e 102 mil inscritos (44%); e, em 1972, houve 408 mil
candidatos e 221 mil inscritos (54%). Convém ter presente que a diminuição
relativa dos reprovados que se observa no último período corresponde, em termos
reais, a um aumento, se trabalhamos com dados absolutos, uma vez que, em 1966,
foram rechaçados 75 mil estudantes e, em 1972, foram 187 mil. Além disso, o
fenômeno é desigual se o consideramos por regiões e cursos; assim, para
medicina, em 1976, havia uma proporção de candidato/vaga de 34.5 em São Paulo,
enquanto no Rio de Janeiro esta relação era de 7.2 (ver quadro IV).
QUADRO IV
VAGAS OFERECIDAS NAS ESCOLAS DE MEDICINA
(1976)
|
|
Candidatos
|
Vagas
|
Candidatos/vaga
|
|
São Paulo
|
23 848
|
691
|
34.5
|
Rio de Janeiro (1975)
|
11 847
|
1 653
|
7.2
|
Belo Horizonte
|
7 273
|
390
|
18.6
|
Salvador
|
4 618
|
335
|
13.7
|
Porto Alegre
|
4 430
|
286
|
15.5
|
Recife
|
3 872
|
470
|
8.2
|
Curitiba
|
3 624
|
205
|
17.6
|
|
FONTE: Revista VEJA, Núm. 384, 14
de janeiro 1976, p. 66.
Apesar do aumento da matrícula, o ensino superior segue sendo altamente
discriminatório em relação às classes populares, uma vez que, segundo os dados
disponíveis, cerca de 80% dos estudantes desse nível pertencem às classes alta
e média, sendo possível supor que, dos outros 20%, boa parte corresponde à
pequena burguesia pobre. Isso se deve aos custos do ensino, que são
conseqüência da expansão da iniciativa privada em matéria educativa e se
agravam com o sistema de exame vestibular para entrada na universidade. De
fato, este sistema tem dado lugar a uma nova faixa de comércio educativo: os
chamados cursinhos, que substituíram o curso preparatório, suprimido pela reforma
de 1942, como método informal de acesso ao ensino superior. Existem empresas
privadas que mantém cursinhos com até 20 mil alunos inscritos, com filiais em
diversas cidades. O custo do cursinho para o estudante foi estimado em 400
cruzeiros mensais (36 dólares aproximadamente), no início de 1976, para cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.
Finalmente, como uma terceira
conseqüência da liberação da matrícula nos marcos de um ensino superior
privatizado, observa-se que tal matrícula sofre fortes deformações, que a
afastam consideravelmente da estrutura da demanda de mão-de-obra que prevalece
no mercado de trabalho. É assim com a taxa anual de crescimento global da
educação superior, que foi de 10.8% no período de 1960-65 e de 23.7% no período
de 1965-72, e teve seu aumento fortemente influenciado por cursos como os de
filosofia, ciências e letras, cuja taxa de crescimento passou de 12.2% no
primeiro período para 25.9% no segundo; no curso de direito, este crescimento
foi de 7.6% para 12.8%, enquanto que em medicina passou de 8.6% para 11.2%.
Inversamente, nos mesmos períodos considerados, a matrícula em agricultura
diminuiu de 17.8% a 4.7%, e de engenharia foi de 15.2% a 9.5%. Em termos
globais, se analisamos a estrutura da matrícula no ensino superior para o ano
de 1972, observamos que 54% se encontram na área de ciências sociais e humanas
(que inclui direito), 12% em letras e artes, enquanto na área de ciências
exatas e tecnológicas é de apenas 18% e nos cursos de ciências biomédicas de
15%. Trocando em miúdos, a matrícula cresceu nos cursos com menor demanda no
mercado, mas que apresentam, para os empresários da educação, menores custos em
termos de instalações, ajudas didáticas, etc.
Já é possível observar os efeitos
dessa política. O quadro V, apresentado a seguir, mostra claramente como não
existe relação entre os graduados em cada curso e as necessidades do mercado de
trabalho, seja real ou potencial. Vemos, por exemplo, que em 1975 três cursos
representam mais da metade (52.05%) dos graduados: Letras (26.88%), Pedagogia
(13.34%), e Direito (11.83%) – ver quadro V.
QUADRO V
EGRESOS A NÍVEL SUPERIOR
(1975)
|
Curso
|
Graduados
|
|
Administração de Empresas
|
11 144
|
Agronomia
|
1 811
|
Arquitetura e Urbanismo
|
1 030
|
Artes Plásticas
|
1 614
|
Ciências
|
4 086
|
Ciências Contábeis
|
3 406
|
Ciências Econômicas
|
6 857
|
Ciências Sociais
|
2 393
|
Comunicação Social
|
2 217
|
Direito
|
17 059
|
Educação Física
|
4 805
|
Enfermagem
|
1 216
|
Estudos Sociais
|
5 512
|
Farmácia
|
1 640
|
Filosofia
|
936
|
História
|
3 130
|
Engenharia Civil
|
4 725
|
Letras
|
38 735
|
Medicina
|
8 567
|
Pedagogia
|
19 229
|
Psicologia
|
3 114
|
Química
|
841
|
|
FONTE:
Departamento de Assuntos Universitários (DAU). Ministério de Educação e Cultura
(MEC) - Brasil.
Outra tendência que orienta a atual política educativa no Brasil, a
desenvolvimentista, merece também algumas observações.
Inicialmente, cabe ressaltar que o caos que a iniciativa privada
introduziu no ensino superior contradiz, em grande medida, as prioridades
estabelecidas pelo Plano de Educação, no sentido de formar principalmente
recursos humanos na área de ciência e tecnologia. Isso não implica que tal
formação não ocorra e que, inclusive, gere situações que merecem atenção, como
o fato de que, em parte, a formação da mão-de-obra técnica, cuja demanda tem
aumentado em função do próprio desenvolvimento industrial, é atendida mediante
cursos de curta duração, cursos que não representam, em muitos casos, algo
diferente de simulações de cursos universitários e que deveriam ser ministrados
fora da área universitária, na esfera do ensino médio e vocacional – por outra
parte, ao serem cursos técnicos fecham ao estudante a possibilidade de ascender
a uma verdadeira formação universitária, criando sub-profissionais vitalícios.
No outro extremo, encontramos o incentivo aos cursos de pós-graduação,
que tratam de compensar as insuficiências e o desprestígio que afetam o nível
de graduação, mediante a criação do que se poderia chamar de
ultra-universidade, marcada pelo elitismo e pela super-especialização. Em 1971,
por exemplo, havia pouco menos de 8 mil estudantes matriculados nos cursos de
mestrado e doutorado, o que correspondia a 1.4% das matrículas na graduação. A
maior parte se concentrava em ciências exatas e tecnologia (60% do total dos
estudantes de pós-graduação, que correspondia a 6.2% dos estudantes de
graduação nesta área), registrando-se, porém, aberrações, como o fato de que
54% dos estudantes de doutorado se encontravam no curso de direito.
Finalmente, a inserção da educação na política de segurança nacional
implica que a Universidade brasileira tenha sido colocada sob estrito controle
policial e submetida à mais severa repressão. Citamos já o Decreto-Lei número
477, que constitui a peça fundamental da legislação repressiva aplicada à
universidade. Sobre esta base, surgiu nas instituições superiores um regime de
infiltração policial e de delatores, que se completa com a estreita colaboração
estabelecida entre as autoridades universitárias e os órgãos repressivos, que
chega ao controle minucioso de todas as atividades realizadas nas
universidades, inclusive os congressos científicos e as sessões de cine-clube.
Por outra parte, mantém-se a perseguição aos quadros estudantis, que chegou ao
assassinato de seus dirigentes mais destacados, como ocorreu, entre outros
casos, a Honestino Monteiro Guimarães, presidente da UNE, que morreu sendo
torturado num quartel em Brasília entre 1963 e 1964.
E a universidade é vista também como um fator de doutrinamento dos
jovens, processo que se inicia na escola primária e segue até os cursos de
pós-graduação, principalmente através da linha de ensino que compreende a
Educação Moral e Cívica e seu correspondente universitário, os Estudos de
Problemas Brasileiros. Para implementar esta linha foi criada uma Comissão
Nacional de Moral e Civismo, diretamente ligada ao Ministério de Educação.
Alguns dos textos que servem de base ao ensino da disciplina são altamente
significativos, no que se refere à ideologia conservadora, chauvinista e
agressiva que se trata de inculcar na juventude brasileira.
Após o golpe de 1964, o grande capital nacional e estrangeiro conseguiu
impor, sem travas, sua dominação ao conjunto da sociedade brasileira. Abrindo
as portas da economia à penetração dos investimentos estrangeiros, a burguesia
nacional orientou o desenvolvimento capitalista do país a uma industrialização
acelerada que, ao centrar a produção no mercado exterior, divorcia a capacidade
de produção das necessidades de consumo das amplas massas. Os trabalhadores
foram privados do direito de organização e de greve, proscritos da vida
política e submetidos à mais impiedosa exploração.
O funcionamento desse sistema econômico, que extrema as condições de
dependência e miséria das economias latino-americanas, exigiu um Estado
ditatorial, no qual um reduzido setor tecnocrático, civil e militar, se
encontra diretamente vinculado aos representantes do grande capital. Esse
Estado não é uma superestrutura isolada, imposta simplesmente pela força, mas
sim o cume de um sistema de dominação renovado, que removeu e transformou todas
as instituições que o compõe. Entre elas, a universidade.
Neste marco, a universidade brasileira, seguindo a tendência da sociedade
na qual se encontra inserida, acentua até o limite as funções próprias da
universidade burguesa. A universidade brasileira não cumpre simplesmente a
tarefa de reproduzir a divisão do trabalho manual e intelectual, assim como de
transmitir aos jovens valores da ideologia burguesa: é em si mesma parte do
aparato estatal, contribuindo diretamente ao exercício da política repressiva e
identificando os conteúdos que transmite com a ideologia dominante, camuflada
de segurança nacional. A universidade brasileira não é apenas um dos meios que
a burguesia utiliza para formar a mão-de-obra qualificada requerida pela
reprodução de capital: converte-se também em campo para a reprodução do próprio
capital, em área de investimento da empresa privada. A universidade brasileira,
ao refletir o esquema de alianças de classes peculiar ao regime
tecnocrático-militar, não somente abre espaço para que se afirmem as pretensões
de promoção social da pequena burguesia, como também destaca desta camada
social um setor privilegiado, ao mesmo tempo que, mediante a massificação e a
degradação do ensino, leva as massas pequeno-burguesas cultas à proletarização.
Expressão fiel da sociedade a qual pertence, a universidade brasileira
persegue seus objetivos criando e acentuando contradições; fixa prioridades que
a tornam funcional às necessidades do mercado de trabalho capitalista e,
ademais, translada ao seu próprio centro, ao se abrir para os investimentos
privados, a anarquia característica que sustenta esse mercado. Desenvolve
traços elitistas, tendentes à ultra-universidade, como também provoca o crescimento
massivo e tumultuado de seus integrantes, ao mesmo tempo em que rebaixa
continuamente a qualidade do ensino. Tanto pretende ser um centro de
enquadramento ideológico, como estimula o descontentamento e aversão por parte
dos jovens em relação ao regime econômico e político que expressa, ao permitir
vislumbrar as possibilidades da ciência e da cultura.
É assim como a universidade brasileira cumpre os objetivos que lhe foram
destinados pela classe dominante e seu Estado, desperdiçando jovens para elaborar
um produto específico – a força de trabalho reduzida, mas altamente
qualificada, que necessita o capital –; concentrando massas crescentes de
estudantes para levar a cabo sua formação elitista e ultra-especializada;
deixando a juventude entrever os amplos horizontes da ciência e da cultura para
tratar de impor os conteúdos rígidos da ideologia da classe dominante.
A universidade brasileira leva em
seu interior sua própria crise. Na medida em que, tal como os demais elementos
que conformam o sistema de dominação no Brasil, está inserida no aparato do
Estado, a crise da universidade é também a crise do Estado
tecnocrático-brasileiro. O imperativo de sua transformação transcende, pois, a
massa estudantil universitária e se converte em tarefa das forças sociais que
trabalham por uma sociedade de liberdade, bem-estar e justiça.
FONTES
ALTHUSSER, L.
Idéologie et appareils idéologiques
d'etat, Paris, La Pensée, 1970. [Edição brasileira: Aparelhos ideológicos de Estado, 11° edição, Rio de Janeiro, Graal,
2010.]
AZEVEDO,
Fernando de. A Cultura Brasileira,
4a. ed., Sao Paulo, Ediçoes Melhoramentos, 1964.
MARINI, R. M. El Reformismo y la
contrarrevolución. Estudios sobre Chile, México, Editorial Era, 1976.
“Acerca de la Universidad Latinoamericana”, entrevista a la Revista
Síntesis, México, N° 5, enero de 1973.
Subdesarrollo y
revolución, 5a. ed., México,
Siglo XXI, 1974.
SUCUPIRA,
Newton. Aspectos da organização e
funcionamento da educação brasileira (Relatório apresentado na XXIV Sessão
da Conferencia Internacional de Educação realizada em Genebra), Brasília,
Ministério de Educação e Cultura, 1974.
NOTA: Os
dados relativos à Educação Superior no Brasil foram tomados de relatórios do
Departamento de Assuntos Universitários do Ministério de Educação e Cultura
(DAUMEC).
Texto publicado originalmente na Revista de Educación Superior, n°22,
México, Abril-Junho, 1977. A tradução do espanhol ao português é de Fernando
Correa Prado, com revisão de Rodrigo Castelo Branco e Vitor Hugo Tonin.