Introdução
Estudar (com) Foucault é pensar, refletir acerca de outras possibilidades que não sejam as evidentes, as instituídas como verdades absolutas. Nesse sentido, a crítica constante, colocada como um parâmetro crucial da atitude filosófica serve aqui como base para todo o estudo que se pretende desenvolver. Este, portanto, trata-se de um ensaio filosófico com vistas a uma busca do entendimento de Michel Foucault, utilizando de seu método genealógico, do que vem a ser o poder disciplinar, sua atuação na sociedade moderna e sua possível tentativa de consumar um contra-poder através das técnicas de si, ou a ética do sujeito.
Ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 2004, p.126), Foucault já explicita que formas de micropoderes perpassam informações, acarretando instantaneamente em transformações e modificações de condutas por todo o corpo social, atribuindo influências de certos tipos de poder nas manifestações dos indivíduos. Para Pignatelli (2002, p. 129), “o sujeito obediente é produzido e sustentado por um poder pouco notado e difícil de denunciar: um poder que circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de instituições sociais tais como a escola”. Mas, falar num poder tão abrangente que não permite uma escolha por parte daqueles que são por ele influenciados, nos dá um leve desespero: será mesmo que não temos escolhas? São todas elas um posicionamento de um poder instituído? As leis mundanas e religiosas nos dizem que somos livres e autônomos. Será? Eis algumas proposições (...)
Resultados e discussões
O corpo social, ao longo dos anos, consolida-se como algo fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização. Quando pensamos nas ações da forma de poder instituída nas disciplinas, devemos identificar algo que vai além de seus mecanismos, responsáveis por efetivar suas intenções: “A disciplina, ao sancionar os atos com exatidão, avalia os indivíduos com verdade; a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimentos dos indivíduos” (FOUCAULT, 2004, p. 162). Este conhecimento gerado possibilita uma forma de controle cada vez mais intenso, deixando os individuos expostos a uma visibilidade que os fazem eles próprios, “fiscais de si mesmos’. Todo tipo de comportamento e de conhecimentos (saberes) referentes ao indivíduo são oriundos dessa produção do poder disciplinar.
A idéia de empresa permite exemplificar como se dá a ação do poder disciplinar na sociedade moderna, a sociedade do capital. Nela, os corpos são “fabricados” através de “uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações” (Ibid., p.125). Essa rede de relações se verifica nas instituições que regulam as atividades humanas através de normas, penas e sanções. A disciplina tanto incentiva comportamentos positivos e meritocráticos quanto serve como ferramenta para o adestramento e docilidade dos corpos que ocupam os espaços institucionais. O funcionamento da sociedade capitalista se dá, pois, através da distribuição dos corpos e do controle de suas atividades. As disciplinas escolares são formas representativas da ordem, no que se refere aos saberes escolares, estando envolvidas diretamente com os mecanismos de poder. Estas foram instituídas como um saber necessário para assegurar um estereótipo de cidadão ideal.
Foucault vai nos dizer que “as pessoas sabem o que fazem; elas frequentemente sabem o porquê fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o que faz (causa) aquilo que elas fazem” (DREYFUS; RABINOW, p. 165 apud BLACKER, 2002, p. 187). Assim, sugere-nos que a liberdade está condicionada diretamente com a questão das relações de poder, pois “o poder é uma relação, incitado e intimamente alinhado com a resistência e a liberdade” (PIGNATELLI, 2002, p. 146). A liberdade então surge nesse contexto moderno, como um estado transitório em que “sujeitos individuais ou coletivos têm diante de si um campo de possibilidades de diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento que podem acontecer” (FOUCAULT, 1995b, p. 244).
Daí surge a questão da liberdade, como uma forma do poder se estabelecer, pois Foucault acredita que “a compreensão que temos de nós mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autônomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados” (MARSHALL, 2002, p. 22). Pensando na sociedade moderna, “para ser governável, uma pessoa deve ser alfabetizada” (Ibid., p. 24). Por governo, entendendo “uma forma de atividade dirigida a produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou afetar a conduta das pessoas de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo” (Ibid., p. 29). Sua arte consiste então em “fornecer uma forma de governo para cada um e para todos, mas uma forma que deve individualizar e normalizar” (Ibid., p. 29)
Em comunhão com o poder disciplinar, a liberdade pode ser colocada como um estado do poder agir, pois “sem as relações de poder, quer dizer, sem as táticas e estratégias de resistência e liberdade que elas engendram, o que resta é apenas estado de dominação, cujo excesso pode tornar a vida alheia destituída de valor sob o signo da pura violência, como no caso dos totalitarismos” (ALMEIDA, 2006, p. 157). A auto-regulaçao dos estudantes que mantém um bom comportamento mesmo na ausência do professor é um reflexo dessa ação disciplinar no ambiente escolar. Para Foucault, somos alvos de um poder que cria uma falsa idéia da liberdade, pois fomos, a partir do momento que somos considerados um produto da ação disciplinar, construídos para pensar que somos livres e autônomos e “porque essa mesma construção permitiu o avanço do poder/saber e a subjugação das pessoas como sujeitos a levarem vidas úteis, dóceis e práticas” (Ibid., 2002, p. 31)
A relação de governo do outro implica diretamente na forma como governamos a nós mesmos. A criança deve, num primeiro momento, “ser sujeita à disciplina pedagógica para atender os interesses de sua independência posterior” (PONGRATZ, 2008, p. 41); Portanto, a racionalidade deve defender a tudo o que pretende em relação à liberdade e “ao mesmo tempo legitimar o grau de dominação e disciplina requerido socialmente” (Ibid., p. 42).
Existe sim uma liberdade como condição sem a qual não haveria relações de poder: enquanto houver uma escolha plausível de ser feita, haverá uma relação de poder, moldada por pressupostos políticos que regularão as condutas, para que haja uma escolha a bem de um interesse. “O poder só se exerce em sujeitos potencialmente livres e enquanto estes permanecerem livres” (ALMEIDA, 2006, p. 147). Ser livre, portanto, coloca o homem sobre duas possibilidades, como alvos do poder: a primeira, talvez posta sob uma maior carga emancipadora, como alvo de um governo de si mesmo; a segunda, mas dependente, assegurando o governo dos outros.
Se o poder é geral e engloba a tudo e a todos, pois não há o exterior a ele, uma resistência ao poder buscada como uma solução para uma liberdade “sem restrições” pressupõe uma luta constante por novas formas através de criações de subjetividades, pois a busca de “possibilidades da liberdade através da resistência, rejeitando o quadro possivelmente determinista no qual suas primeiras descrições do poder/saber tinham sido traçadas” (MARSHALL, 2002, p. 29), coloca a liberdade como que se existisse, então, como uma condição essencial para que o poder se estabeleça, pois o poder pode apenas existir onde existe a possibilidade de resistência e, portanto, a obtenção de liberdade (FOUCAULT, 1995b). Assim, a resistência nunca será externa numa relação com o poder, pois “concebido como ação sobre uma ação (como da ordem do governo), o poder sempre pressupõe a possibilidade da resistência, pois se trata de uma relação estabelecida entre pessoas potencialmente livres” (ALMEIDA, 2006, p. 156-7).
Assim é o indivíduo: alvo, sujeito, dócil ao poder; mas ao mesmo tempo seu veículo, agente e instrumento. São objetos e ações, ao mesmo tempo, pois a sua disciplinação depende diretamente de sua vontade e de sua participação ativa; no entanto, possuem sua própria razão e, nesse sentido, “são também intersubjetivamente sujeitados pelo fato de que eles são governados externamente por outros e internamente por suas próprias consciências” (DEACON, 2002, p. 101)
As técnicas de si ou a ética
A idéia trazida aqui é com relação a formas possíveis de se manter fora de um ambiente de dominação, ou tornando-as positivas, já que o próprio poder já as produz para se manter em atividade. Assim, “Foucault pensa que, diante dessa ambigüidade, precisamos observar todos os detalhes, sendo ao mesmo tempo extremamente prudentes e empíricos: só no seu exercício se pode decidir se a relação de poder é boa ou ruim” (ALMEIDA, 2006, p. 158). No entanto, já vimos outrora que não existe, na concepção de Foucault, um exterior ao poder, pois é ele o princípio de funcionamento contemporâneo. Nossa proposta agora é de buscar entendimentos no que se refere à existência de alguma forma para atenuar as investidas da sociedade disciplinar ou uma forma de resistência, pois “o grande desafio que ainda se enfrenta hoje, na perspectiva da genealogia realizada por Foucault, é produzir e reproduzir conhecimentos capazes de se insurgir contra a dominação que as próprias ciências do homem ajudaram a criar e a aperfeiçoar” (MACHADO, 2004, p. 35).
Foucault se remete a “um outro tipo de pedagogia, a um outro tipo de educação: àquela exercida sobre si mesmo, que chamará de subjetivação, contrapondo-a à sujeição, princípio que rege a escola em nossa sociedade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 10-1). Surge então as técnicas de si ou, como outros poderiam chamar, ética do sujeito, como uma forma de os sujeitos se constituírem numa prática reflexiva consigo mesmo. Há então uma mudança: de uma leitura política focada nos dispositivos e tecnologias do poder, para uma relacionada à ética, às condutas de si, “inventando, assim, novos modos de subjetivação, novos estilos de vida individual, mas também social, para além das objetivações impostas pelas tecnologias de dominação do poder” (ALMEIDA, 2006, p. 151-2).
A disposição dos alunos em círculo, diferente das tradicionais fileiras, “abre a possibilidade de que todo estudante manifeste sua opinião e de que seja ouvido” (GORE, 2002, p. 16), porém, Foucault considera, reforçado por Gore, que as “práticas educacionais libertadoras não têm nenhum efeito garantido” (Ibid., p. 16). Por isso, “o importante não é que se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do ‘educando’ consigo mesmo” (LARROSA, 2002, p. 36). “A questão não é ir atrás de um princípio fundamental e geral em que se assentaria o poder, mas examinar os agenciamentos em que se cruzam as práticas” (VEIGA-NETO, 2006, p. 24). Nesse sentido, a idéia não é dar questões fechadas como soluções ou para um bloqueio ao poder, mas fornecer propostas, questões abertas que permitam o exercício da dúvida e da crítica. Assim, “a fim de comportar-se apropriadamente, de praticar a liberdade apropriadamente, era necessário cuidar do eu, nao meramente para conhecer o próprio eu, mas também para melhorá-lo, ultrapassá-lo, dominá-lo (MARSHALL, 2002, p. 28).
As práticas de si refletem uma maneira, definida pelo filósofo como conduta, de fiar a si mesmo uma auto-gestão. Com isso “proporá o termo conduta como aquele que mais bem capta o que há de específico nas relações de poder. A conduta pode ser caracterizada pela maneira de conduzir os outros bem como a maneira de se conduzir a si mesmo” (ALMEIDA, 2006, p. 147). Para ele, será um bom governante aquele que souber governar (e bem), a si mesmo. Dessa forma, a reflexão funcionaria como uma ferramenta do indivíduo que, sabendo mais que os demais, colocar-se-á como um gestor de recursos humanos, ou um líder, como prefere o sistema das organizações modernas. No entanto, a noção primeira de sua ontologia do presente não pode ─ e nem há de fato um modo, pelo seu caráter realístico e talvez absolutamente preciso ─ ser descartada: mesmo observando das técnicas do controle de si para constituir-se a si mesmo, cabe-se demarcar a influência dos poderes do ramo das disciplinas, dos controles dos corpos individuais e coletivos, através do poder da norma e de suas sanções. Como nos diz Almeida:
“não se deve admitir jamais uma forma incontornável de dominação ou o privilégio absoluto da lei, da norma, da disciplina, do governo, mas, ao contrário, entender que enquanto as relações de poder estiverem presentes em todas as relações humanas (aí incluídas as pedagógicas) teremos certeza de que nelas há pessoas potencialmente capazes de dizer não a qualquer abuso no uso do poder” (2006, p. 157).
Conclusão
Assim, a ética ou o domínio das técnicas de si podem, talvez, amenizarem os efeitos do poder disciplinar sobre os corpos individuais, entendo a ética do sujeito como uma noção diferente da kantiana, universalista; a de Foucault é focada apenas no sujeito, nas práticas que possui consigo mesmo, na construção de sua própria subjetividade, na sua sujeição per se. “O cuidado de si apareceria como uma conversão ao poder, ou seja, uma forma de controlá-lo” (Ibid., p. 160). Essa é a proposta para uma possível investida contra o poder: uma inspiração foucaultiana caracterizada por uma postura de completa e permanente desconfiança sobre as formas discursivas ou de verdades instituídas, tomadas como naturais; um quadro parecido como o do próprio poder: se ele é constante, a reflexão assim também o deve ser; se é consentido, devemos problematizá-lo; se produz identidades, devemos moldá-las a nossa forma, colocando a vontade individual como parâmetro. A regulação sempre existirá no ambiente pedagógico, mas devemos repensá-las, no âmbito da educação, promovendo da auto-reflexão, pois como afirma Almeida, “o poder definitivamente não é o mal: compreendê-lo assim é desistir da liberdade, pois só há relações de poder onde há liberdade” (2006, p. 157).
Como Foucault nos mostra, ao estudar a Antiguidade greco-romana, “para ser um bom governante é preciso primeiro governar a si próprio” (Ibid., p. 151). Assim, as “técnicas de si ou do eu, formas através das quais o sujeito se auto-constitui enquanto senhor de seus atos, poderiam ser caracterizadas como um exercício de si sobre si mesmo” (Ibid., p. 150).
Nem mesmo o próprio Foucault coloca a sua filosofia e seus diagnósticos como uma verdade pronta e estática. Uma pedagogia crítica de inspiração foucaultiana traz como um dos seus objetivos a reflexão, colocando o indivíduo numa situação de cuidado em não ser em demasia controlado – sendo esta talvez uma possível solução para essa questão – e para tanto, servindo como um contradomínio na ação pedagógica, onde a idéia de liberdade coloca os indivíduos para além dos estados de dominação. Cabe, no entanto, a cautela, pois o poder também possui sua positividade, que para ele está atrelada a um estado de visibilidade: será na própria relação que se definirá o lado produtivo ou não, de sua ação.