Por João Alexandre Peschanski.
“O que é o capitalismo?” Foi o tema que uma quinzena de estudantes secundaristas me pediu para tratar com eles, faz mais de um ano, numa aula-livre de trinta minutos em meio à ocupação da sede do governo do Wisconsin, Estados Unidos. A discussão fazia parte de um programa de atividades para os estudantes, cujos professores haviam paralisado as aulas para defender seus direitos sindicais. Sem referências bibliográficas e evitando jargões, defini com eles – talvez o público mais dinâmico, engajado, curioso e abertamente crítico com o qual já estive – o que entendo por capitalismo e transcrevo abaixo parte do resultado dessa discussão.
1) O capitalismo é um modo de organizar a economia, isto é, a produção e a troca de bens e serviços. Uma economia capitalista reúne três elementos-chave, que a definem: a propriedade privada dos meios de produção, o mercado de trabalho e a troca de produtos num mercado visando ao lucro. Volto a esses três elementos a seguir.
2) Em vários momentos da história e até hoje, o capitalismo coexistiu com outras formas de organizar a economia. Em vários países o funcionamento de empresas capitalistas, cuja organização e prática se definem pelos três elementos que citei acima, depende das matérias-primas que lhes chegam de modos de produção não capitalistas, como a escravidão, um modo de organizar a economia em que não há mercado de trabalho. (Chico de Oliveira, em Crítica à razão dualista/O ornitorrinco [Boitempo, 2003], trata do casamento do capitalismo com formas econômicas arcaicas no Brasil, que contribuem para a reprodução do capitalismo. A tese do Chico de Oliveira sugere que modos de organizar a economia se atrelam, misturam e modificam, criando toda sorte de híbridos. Nessa perspectiva, pode-se falar de capitalismo apenas em teoria e no geral, já que formas historicamente específicas de capitalismo são modificadas pelas relações sociais e econômicas com as quais coexistem.) De certo modo, vivemos atualmente no capitalismo não porque este é o “único” modo de organizar a economia onde estamos, mas porque é o modo dominante. (Dominação se refere aqui tanto ao fato de o capitalismo ser o modo de organizar a economia mais comum quanto, e principalmente, ao fato de o capitalismo geralmente impor sua lógica sobre outros modos de organizar a economia, que em muitas vezes só continuam existindo porque são funcionais para a reprodução do capitalismo: as economias não capitalistas que continuam existindo hoje não são, em sua maioria, anticapitalistas.)
3) As empresas que organizam a produção e põem seus produtos no mercado são propriedades privadas no capitalismo. Acima, falei de meios de produção, que é costume definir como tudo aquilo que é usado na produção e não é humano, como as matérias-primas, edifícios, ferramentas, máquinas, infraestrutura etc.(Refiro-me a uma definição “costumeira”, pois há dentro da tradição marxista aqueles que afirmam que parte dos meios de produção são humanos, à medida que correspondem à materialização de trabalho humano, como é o caso de máquinas.) Os capitalistas detêm o controle privado dos meios de produção. Vale notar que esta não é a única forma de organizar a propriedade, que pode ser estatal e cooperativa. Ao proprietário privado está geralmente garantido o poder de decisão sobre como usar seus bens. Isso é um aspecto importante, pois lhe garante o controle sobre investimentos futuros – o capitalista decide, só, se quer investir mais na economia, em qual ramo da economia, com quais consequências – e decisões sobre investimentos afetam diretamente a sociedade, seu nível de desemprego, as condições básicas da vida.
4) No capitalismo, a produção visa ao lucro, isto é, à venda no mercado. Em outros modos de organizar a economia, a produção não visa necessariamente ao lucro, mas saciar necessidades básicas dos produtores e membros da comunidade ou simplesmente disponibilizar gratuitamente bens e serviços. A obtenção do lucro faz parte de um ciclo: os capitalistas começam com uma certa quantia de dinheiro, que usam para comprar meios de produção e contratar trabalhadores, com o intuito de produzir alguma mercadoria a ser vendida. Na venda, os capitalistas esperam conseguir de volta o dinheiro que investiram no início do ciclo e algum excedente – o lucro –, que podem utilizar para conseguir ainda mais lucro, recomeçando o ciclo. (Há inúmeros livros sobre esse elemento do capitalismo, objeto-chave da economia política marxista. Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, de Marx [Expressão Popular, 2006], é uma obra clássica sobre o tema, além de acessível e curta. Também sugiro a leitura de dois importantes manuais de economia política, Iniciação à teoria econômica marxista, de Ernest Mandel [Antidoto, 1978], e Teoria do desenvolvimento capitalista, de Paul Sweezy [Zahar, 1976].)
5) As pessoas que trabalham nas empresas capitalistas são contratadas num mercado de trabalho. Não são elas mesmas as proprietárias das empresas. Na consolidação do capitalismo como forma dominante de organizar a economia, houve um processo de concentração dos meios de produção por algumas famílias e, mais tarde, corporações – o que significou uma contínua expropriação da maioria da população daquilo que tradicionalmente usavam para garantir sua sobrevivência, especialmente pequenas parcelas de terra. (Um dos principais estudiosos desse processo de expropriação é o geógrafo David Harvey. Vale conferir seus dois artigos na revista Lutas Sociais, disponíveis aqui e aqui.) Não restou à maioria da população outra alternativa além de trabalhar para os donos dos meios de produção. Irônico, Marx se referiu a esse elemento do capitalismo como a dupla liberdade dos trabalhadores: estão livres da propriedade dos meios de produção e estão livres para trabalhar para o capitalista ou morrer de fome.
6) Porque não tem outra forma de garantir sua sobrevivência, o trabalhador é obrigado a trabalhar para o capitalista. Os donos dos meios de produção exploram o trabalhador, pois recolhem benefícios materiais de sua atividade. Há um componente moral forte no uso do termo “exploração”, mas, aqui, pensemos simplesmente na relação entre o capitalista e o trabalhador que o termo descreve: o dono dos meios de produção usurpa o trabalhador, pois toma para si, para seu lucro, parte do que este produz. A outra parte é usada para pagar o salário, geralmente o que é necessário para o trabalhador sobreviver e, no dia seguinte, estar pronto para ser explorado mais uma vez. (Há uma vastíssima literatura sobre a exploração no capitalismo, que marca fundamentalmente a escola de pensamento de Ricardo Antunes, que coordena duas coleções sobre esse tema: Mundo do Trabalho [Boitempo, 38 livros até 2011] e Trabalho e Emancipação [Expressão Popular, 18 títulos até 2011].)
7) A relação entre o capitalista e o trabalhador é interdependente. O trabalhador, sobre quem pesa a dupla liberdade enunciada por Marx, precisa do capitalista para ter um salário. Mas para garantir e aumentar seu lucro o capitalista também precisa do trabalhador, ou mais especificamente precisa que o trabalhador aceite trabalhar e também que se entregue com intensidade máxima a sua atividade produtiva. Quanto mais o capitalista precisa do trabalhador, mais o poder do trabalhador aumenta: poder para reivindicar aumentos de salário, melhores condições de trabalho, políticas sociais mais justas. Ao capitalista o poder do trabalhador aparece, geralmente, como um entrave para a obtenção de lucro. Os donos dos meios de produção desenvolvem formas de conter o poder do trabalhador, como a organização da produção de tal modo que iniba reivindicações de empregados, a repressão, a realização de acordos com governos para que coíbam a organização dos trabalhadores, a ameaça de deslocar as fábricas etc. (Ainda pouco conhecido no Brasil, o sociólogo Michael Burawoy é um dos principais expoentes do estudo da relação entre capitalistas e trabalhadores no espaço mesmo da produção. Em especial, conferir seuManufacturing Consent [Produzindo o consentimento], um livro clássico, possivelmente publicado pela Xamã em 2012.)
8) Uma característica fundamental para a dominação do capitalismo sobre outras formas de organizar a economia é que conseguiu manter-se relativamente estável, apesar de grandes mudanças tecnológicas, disputas políticas de amplitude mundial, graves crises econômicas. Para entender a capacidade do capitalismo de sobreviver e reproduzir-se, é preciso analisar como cada um dos três elementos que o definem – a propriedade privada dos meios de produção, a troca de produtos no mercado e o mercado laboral – se sustenta no tempo. Para entender a possibilidade de formas socialmente mais justas de organizar a economia serem criadas, é preciso desenvolver uma alternativa econômica, cuja organização da propriedade – incluindo sua dissolução –, da troca de produtos e da produção seja tão ou mais robusta e eficiente do que a economia capitalista e, além disso, garanta uma vida social digna e sustentável. (Sobre alternativas ao capitalismo, conferir o dossiê “Novas perspectivas do socialismo”, Margem Esquerda, número 17.)