Nestes tempos em que tudo se fotografa e se registra, em que o mínimo pensamento é colhido em voo e retransmitido no twitter, em que tantos passos ecoam no face, aumenta minha ternura pelo lado efêmero da vida.
Que agradável me é o estender de mão que ninguém percebe, o tato percorrendo cetim ou reagindo à lixa, na absoluta independência dos sentidos. Quanta simpatia tenho pelo olhar que vai e se pousa, gratuito, visitando aqui e ali coisas que não espera e não guarda.
Entre cada gesto consignado às redes sociais ou flagrado pelas câmaras onipresentes, restam ainda largos espaços livres, e frinchas, frestas, portais por onde se pode escapar. A discrição é possível, o silêncio não perdeu sua função e nos acolhe.
Estou gostando de esquecer. Não de ter falhas de memória, que disso ninguém gosta, mas de deixar esfumar uma parte do acontecido, um momento da viagem, aquele trecho da conversa. Dias inteiros se vão da minha lembrança, e acho certo. O ano tem 365 dias, não sou ninho para tanta coisa. Fechar a mão não adianta, há folga entre os dedos, melhor ser conivente da fluidez da vida que antagonista.
Eu, que a vida inteira fiz diário, me tranquilizo com sua absoluta incompletude. Tivesse querido registrar cada passo, que fracasso amargaria! Ficou o principal, nem isso, ficou uma parte do principal, ou uma parte daquilo que me pareceu principal no momento em que o escrevi. O resto passou, como eu própria fui passando, e é apaziguante não ter tentado prendê-lo entre duas capas duras. Foi-se. Ir fazia parte do percurso.
Achei uma barata no pote de sal da cozinha. Viva. Inclinei o pote para que se fosse. Havia estado lá longo tempo sem conseguir sair, arrastou-se para fora, pensei se não deveria jogar-lhe água para livrá-la do sal, mas temi matá-la e a deixei ir. Nem tudo o que se pensa é importante. Importante foi o pensamento da barata lutando para manter a vida. Se sobreviver, não esquecerá esse episódio e se tivesse face seria justo que o relatasse. Ao contrário, meu pensamento sobre o perigo da salinidade em seu corpo não tem nenhum valor coletivo. Vale para mim porque se liga a tantos outros pensamentos sobre a vida e a alteridade e da soma desses pensamentos tiro meu modo de estar no mundo. Mas já lhe dei visto de saída, a ele e ao encontro com a barata e ao sal que joguei no lixo. Fico com a soma, me desobrigo de guardar os fatores.
As folhas das árvores caem, os cabelos caem, caem os dentes da infância e sobre tudo se pousa a poeira que cai. Que cabeleira teríamos se reimplantássemos cada fio? Ou: teríamos mais cabelos se apenas guardássemos numa gaveta os que caem? E como ficaria nossa boca com dupla dentição? As folhas caem para dar lugar a outras folhas, assim como a noite que acaba dá espaço a um novo dia. E são sempre outras folhas e são sempre outros dias. O tempo não tem alça.
Meu amigo guarda a foto dos seus bisavós emigrantes. Só uma, meio amarela meio apagada, gasta, o casal de pé às vésperas da partida, bem juntos, ele com guarda-chuva fechado pendente do braço, ela com a mão entrefechada sobre a saia longa, os dois tão pobres e modestos e cheios de esperança. Teria meu amigo conservado mais de seus antepassados se tivesse outras fotos deles além dessa?
Marina Colasanti