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Sobre um pretenso direito à mentira





“cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é”
 Caetano Veloso

     A maioria dos conflitos de natureza humana, no decorrer dos processos históricos, se deram no âmbito da defesa de verdades absolutas.  Geralmente derivadas de grupos munidos de pretensões e por vezes de subsídios teóricos. Mas ao lado dessas pretensas verdades, as quais Nietzsche chamaria de verdades de rebanho, que custaram e ainda põe em risco vidas, as vejo como mentiras objetivadas e impostas, pseudoverdade que nos remonta ao termo grego pseudos que se refere à mentira como um erro no plano epistemológico. De fato, qual seria o sentido ético/político da mentira? Existiria um suposto direito à mentira por parte do cidadão? E por parte do governante ?
     No topo da hierarquia da estrutura social, ao lado do opressor a mentira pode ser uma forma de controle, de formas de governos totalitários e fascistas, usando do autoritarismo para imposição de inverdades na sociedade. Buscando um exemplo na literatura, vemos as novilínguas impostas pelo Big Brother em 1984, romance de Orwell, e como exemplo histórico o regime nacional-socialista na Alemanha, em que o ministro da propaganda, Goebbles proferia: uma mentira mil vezes contada, vira verdade.
     Sabemos que nos dias atuais, em face de uma política de espetacularização, de fragmentação dos laços em função uma ordem economicista, temos a publicidade e a propaganda, fundamentada nos mesmos princípios nazistas aliada com alguns mecanismos psicanalíticos de comunicação de massa. A publicidade é o carro chefe de sustentação de um sistema baseado no capital, que produz através de meios de comunicação um bombardeamento constante de mentiras em função da exposição da perpetuação de mercadoria no centro da vida humana. A sofisticação das mentiras e suas múltiplas variações aliada a uma população, valendo da perspectiva de Foucault, útil e dócil, torna fácil absorção e sua reprodução, assegurada por uma democracia liberal que salvaguarda o indivíduo.
     De acordo com Kant, temos direitos a uma única verdade, a subjetiva, ao que concerne a veracidade de nós mesmos. Não obstante, nesse âmbito, das relações interpessoais de indivíduos, numa perspectiva macro das mentiras subjetivas, cotidianas, é que desvelamos essa lógica do direito à mentira, sendo ela inofensiva ou problemática. Criamos uma espécie de código ético para a mentira social, logo, quando mentirmos, abdicamos e ferimos um contrato de convenções.
     O cenário de filmes americanos clássicos sobre a temática jurídica, em que na corte a testemunha tem que pôr suas mãos sobre a bíblia e jurar verdade sobre punição de ditames ou leis religiosas da tradição judaico-cristã, não seria um desrespeito ao estado laico de direito, e assim, uma permissão à mentira como desobediência civil?
      Schopenhauer afirma que temos o direito de mentir para nos livrarmos de assaltantes e violentos de qualquer espécie, para defendermos nossa própria vida, nossa liberdade, nossos bens ou nossa honra, como no exemplo citado, nossa predisposição ideológica ou religiosa.
       Mas, se por infortúnio, um assassino o questiona sobre um amigo, ao qual, tem pretensões de matar,  requerendo que você diga o atual refúgio dele, que seria neste caso, em casa, você teria o direito de mentir para preservar a vida de seu camarada ?
      Segundo Schopenheur sim, não seria injusto mentir sobre o paradeiro do amigo procurado pelo assassino, pois aquele que promete algo sob coação, através da força, ou acreditando em falsas premissas, não é obrigado a cumprir a promessa e, no caso exemplificado, o dono da casa está sendo coagido pelo assassino.
     Mas Kant objeta, dizendo que não, mesmo uma mentira com boas intenções é má, pois no caso do dono da casa negar a presença do amigo, convencer o assassino a se retirar e o amigo ter saído pela porta dos fundos, o dono da casa será responsável se o assassino encontrar o amigo na rua, pois se ele tivesse dito a verdade, o assassino entraria na casa em busca do amigo, enquanto este teria mais tempo para ir embora ou se refugiar em outro lugar. Quem mente, mesmo com boa intenção, é sempre responsável pelos fatos que decorrem depois.
     No sentido ético, a mentira de acordo com Schopenheur é um artifício de cuidado de si, dentro da pátria:  "Mas como, apesar da paz no país, a lei permite a todos levar armas e usá-las, a saber, no caso da autodefesa, assim a moral consente, para o mesmo caso, e só para este, o uso da mentira." (SCHOPENHEUR, 1995)
     Picasso já dizia a Dali, que a arte é a mentira que diz a verdade, e acrescento, dizendo que a arte é a autodefesa, o armamento do artista perante um status quo conservador do Estado, da sociedade opressora, dos rebanhos e suas pseudos verdades.
     De fato, todo ser pensante na face da Terra já mentiu, seja intenção inocente ou de má fé, especialmente no dia primeiro de Abril. Já mentimos estar cheios para não comer a gororoba que o amigo oferece, ou dizer que o cabelo da namorada está bonito, mesmo estando esquisito, ou para um amigo de ginásio que a vida vai bem, mesmo não andando lá essas coisas, mas isso não faz de nós ‘mentirosos de carteirinha’, o exemplo extremo de compulsivos patologicamente. Creio que não fazemos parte de uma sociedade contratualista de consenso, sempre pertencente ao nível autoritário das relações e verdades impostas, mas sim de uma comunidade pluralista que constrói verdades a partir de suas liberdades.
     Vejo a mentira subjetiva como remonta o diálogo platônico, Hípias menor, em que Sócrates sustenta sua tese contra o sábio sofista Hípias de Élide, de que não existe no ato de mentir a intenção maligna, mas sim uma inocência da falibilidade humana, como no conto italiano do Pinnocchio, a mentira torna-se necessária para certos mecanismos de defesa no convívio cotidiano. No entanto, tanto na mentira do cidadão ou do governante, temos que nos pautar pelo alerta kantiano, somos responsáveis pelas conseqüências de tal ato, pelo cidadão a represália dos aparatos normativos legais e pelo governante, da insurreição popular legitima.

Por Thor Veras
Página branca onde escrevo. Único espaço
               de verdade que me resta. Onde transcrevo
               o arroubo, a esperança, e onde tarde
               ou cedo deposito meu espanto e medo.
               Para tanta mentira só mesmo um poema
               explosivo-conotativo
               onde o advérbio e o adjetivo não mentem
               ao substantivo
               e a rima rebenta a frase
               numa explosão da verdade.

               E a mentira repulsiva
               se não explode pra fora
               pra dentro explode
implosiva.
Affonso Romano de Sant'Anna