Ao contrário do que colocam muitos analistas, a economia mundial vem vivenciando um período de crescimento de longo prazo desde 1994, pontuado por crises curtas, mas profundas e importantes, como as de 1998, 2001 e principalmente a de 2008-09. Entretanto, este período de crescimento traz profundas modificações que lentamente vão se estabelecendo no mundo contemporâneo:
a) O deslocamento do eixo de crescimento econômico do capitalismo anglo-saxão, da Europa Ocidental e das potências marítimas para o Leste asiático e para os hinterlands, potências territoriais de dimensão continental/regional. Entre os hinterlands, destaca-se a China como o maior e mais antigo da história da humanidade;
b) O deslocamento da unipolaridade para multipolaridade como tendência mais dinâmica das relações internacionais contemporâneas, o que abre o espaço para o regionalismo como um dos fundamentos da reorganização multipolar da economia mundial e de sua divisão internacional do trabalho. Torna-se cada vez mais evidente a falácia que foi a pretensão de organizar a economia mundial, desde 1980, sob a unipolaridade do poder estadunidense, pautada no uso de seu Estado para o controle dos fluxos de capitais e dissuasão de conflitos internacionais e autonomias nacionais. O resultado deste projeto tem sido o brutal endividamento público e a escalada dos déficits comerciais e em conta corrente dos Estados Unidos. O aprofundamento estrutural desta dívida e destes déficits a cada década, isto é, de seu peso relativo no PIB estadunidense, limita a autonomia financeira e militar deste país, debilitando o dólar como moeda mundial e o seu poder independente de coerção;
c) A crise do neoliberalismo como fundamento ideológico da hegemonia estadunidense e das velhas potências ocidentais. O neoliberalismo teve por objetivo central desmontar a economia política do pleno emprego e sua pressão negativa sobre a taxa de lucro a partir do fim dos anos 1960. Isto ganhou ainda mais importância com as mudanças no perfil da força de trabalho e do emprego trazidas com a mundialização da revolução científico-técnica que lhes vem agregando dimensões cada vez mais intensivas em conhecimento, impulsionando para acima o valor da força de trabalho. Trata-se de não pagar parte do valor da força de trabalho em ascensão e para isso retira-se parte do investimento do ciclo produtivo do capital deslocando-o para o setor financeiro. Cria-se um mercado financeiro lastreado em títulos da dívida pública ou, em títulos privados, respaldados em ultima instância pelo monopólio da violência estatal que lhes absorve os créditos podres, pretendendo-lhes conferir liquidez, em função de supostos riscos sistêmicos. O resultado tem sido altos níveis de desemprego estrutural, particularmente entre os jovens, superexploração do trabalho e aumento da desigualdade, baixas taxas de investimento, queda nas taxas de crescimento econômico, parasitismo e perda de dinamismo produtivo internacional;
d) A crise da divisão internacional do trabalho estabelecida pelo capitalismo histórico em seus 500 anos de existência. A finaceirização é insuficiente para responder ao desenvolvimento da revolução científico-técnica e coloca em cheque a apropriação e hierarquização internacional de novas etapas das forças produtivas pelas potências ocidentais e os Estados Unidos. A pressão competitiva leva à busca de força de trabalho qualificada e barata abre o espaço para o deslocamento de parte do capital que não retorna ao ciclo produtivo nos países centrais aos países da periferia capazes de oferecê-la. Para isto, estes devem romper com as relações de dependência e a superexploração de trabalho que lhe corresponde, o que lhes impede o aumentar o valor da força de trabalho, principal fundamento da produtividade da economia contemporânea, a níveis internacionalmente competitivos;
e) O crescimento da intervenção do Estado que vai se tornando no século XXI o principal ator da economia mundial, tendendo a representar mais da metade do PIB mundial. Este crescimento se faz, nos polos decadentes da economia mundial, para atender ao deslocamento estrutural do capital do circuito produtivo ao financeiro; ou para resgatar a predominância do circuito produtivo sobre o financeiro da acumulação através de forte atuação e expansão das empresas públicas, nos polos emergentes da mesma. O Estado ainda é pressionado a expandir seus gastos pelas demandas sociais emanadas da reivindicação ao direito público à saúde, educação, seguridade e lazer. Nos polos decadentes da economia mundial, as altas somas comprometidas com a expansão da dívida pública ou com o pagamento de juros restringem os gastos sociais e buscam financiá-los pelo aumento da tributação incidente sobre seus beneficiários; nos polos emergentes da economia mundial abre-se o espaço para articulação virtuosa entre expansão do Estado, gasto social e crescimento econômico.
Abre-se uma janela de oportunidade para a América Latina, mas o seu aproveitamento exige o enfrentamento do legado neoliberal. Os efeitos do projeto neoliberal na América Latina foram drásticos: desnacionalização, desindustrialização, aprofundamento da condição periférica, aumento da pobreza e da precarização do trabalho, autoritarismo e instabilidade política, crise cambial e do balanço de pagamentos. A partir da crise que se inicia na região em 1998 e se prolonga até 2003 surgem novas forças sociais e políticas na região que buscam enfrentar o legado neoliberal de duas formas: radicalmente ou gradualmente. Isto deu lugar, no primeiro caso, ao ressurgimento do nacionalismo revolucionário que assume a integração regional como parte central de seu projeto e que tem diversos matizes conforme a relação e o grau de autonomia entre os seus dirigentes políticos, a burocracia estatal e os movimentos populares. Este projeto tem sua expressão mais radical na Venezuela de Chavez, na Bolívia de Evo Morales, no Equador de Rafael Correa, mas também se expressa de forma mais moderada na Argentina dos Kirchners, ou no Paraguai de Lugo. Trata-se de restabelecer o papel do Estado na organização de economia por meio da nacionalização dos recursos naturais estratégicos ou da apropriação pública da maior parte da renda mineira ou da terra; da nacionalização ou forte presença reguladora em serviços essenciais como eletricidade, água, telecomunicações e infra-estrutura; da criação de uma arquitetura financeira e empresarial e de políticas públicas voltada para o estabelecimento de altas taxas de investimento direcionadas à expansão do mercado interno, redução de assimetrias, desigualdades, pobreza e elevação do valor da força de trabalho, mediante aumento do salario direto e indireto (educação, saúde, seguridade, transporte e infra-estrutura públicos). Isto requer altas escalas produtivas, utilização de recursos públicos, criação de banco e fundo regionais, forte atuação das empresas estatais – tradicionalmente as principais investidoras em infra-estrutura e P&D da região – e criação de mecanismos de democracia participativa. Tais processos se afirmam na organização da ALBA, na proposição de uma UNASUL solidária e cooperativa, num Banco do Sul que utilize recursos públicos proporcionais ao peso econômico de cada Estado e opere de forma distinta que os bancos privados para concessão de créditos e financiamentos a dimensões deprimidas dos mercados regionais, na regulação democrática dos meios de comunicação de massa e nos processos constituintes populares que têm permitido avanços constitucionais e nas formas de governo em Venezuela, Bolívia e Equador.
No segundo caso, se impõe um enfoque gradualista que conserva parte da economia política neoliberal, ainda que busque matizá-la através de políticas sociais e da politica externa. O principal caso na região é o Brasil de Lula e Dilma. Mantém taxas de juros acima do crescimento do PIB, ainda que as tenha diminuído lentamente, utilizando para isso o enfoque macroeconômico anti-cíclico nos períodos de crise; mantém taxas de câmbio flutuantes que levam a sobrevalorização do real nos períodos de ingresso de capitais estrangeiros no país, debilitando a indústria e as cadeias produtivas de maior valor agregado. No plano internacional, joga um papel centrista no que tange à região, buscando atuar como intermediário entre o alinhamento aos Estados Unidos, praticado pelos neoliberais, expresso no México panista, na Colômbia de Santos e no Chile de Piñeda, e o anti-imperialismo do nacionalismo revolucionário. Abre espaços ainda para a multipolaridade diversificando o comércio exterior e somando-se aos BRICs, que lentamente vai aprofundando seu nível de articulação institucional e ensaiando alternativas financeiras por dentro e por fora aos organismos internacionais controlados pelas potencias ocidentais, como FMI e Banco Mundial, e ao padrão monetário ancorado ao dólar. A política externa constitui o elemento mais progressista de composição do Estado brasileiro e se contrapõe às tendências subimperialistas, ancoradas principalmente no BNDES e nas grandes empresas e banco estatais, ou neoliberais, assentadas no Banco Central e no comando das políticas monetária e cambial. Por diversas vezes impôs derrotas às resistências de parte da burocracia estatal às demandas dos governos nacionalistas, como nos casos da nacionalização do gás boliviano e renegociação dos seus preços e da revisão dos termos do Tratado de Assunção. Todavia a sua força no governo brasileiro é insuficiente para impulsar uma aproximação maior ao projeto de integração regional oriundo do nacionalismo radical. Um caso típico é o do Banco do Sul, onde as pressões brasileiras limitam sua atuação como banco capaz de operar para reduzir assimetrias e desigualdades. Se o Brasil, aceita o sistema de um país um voto, o qualifica – exigindo o apoio de 70% do capital subscrito para aprovar empreendimentos de maior porte, isto é, acima de US$ 70 milhões -, e por outro lado aporta recursos proporcionais muito inferiores aos de países vizinhos para a sua capitalização, além de exigir que o banco funcione segundo os critérios de rentabilidade dos bancos privados, captando recursos no mercado financeiro. Tal postura debilita enormemente a possibilidade de construção de uma arquitetura financeira solidária que priorize o desenvolvimento do mercado regional como instrumento indispensável para a construção de um polo de acumulação sustentável num mundo com fortes tendências estruturais para a multipolaridade.
A construção de um processo de integração regional capaz de impulsionar a inserção internacional soberana da região exige:
a) A elevação das taxas de investimento da região e a sua orientação para infra-estrutura, saúde, educação, habitação, ciência e tecnologia, lazer, erradicação da pobreza e diminuição dos níveis dos altos níveis de desigualdade social;
b) A organização de um arranjo produtivo e financeiro centrado na forte participação das empresas e bancos estatais. As empresas estatais são historicamente as grandes investidoras em infra-estrutura da região e podem ser um potente instrumento contra os processos de financeirização do capital, investindo os excedentes econômicos no setor produtivo. São ainda chaves para a construção de um poderoso sistema de inovação da região, uma vez que as empresas multinacionais concentram quase 90% de seus investimentos em P&D em suas matrizes. Para isso devem se articular em nível continental potencializando suas escalas produtivas.
c) A nacionalização dos recursos nacionais estratégicos como instrumento de potencialização da renda mineira para elevar os ingressos obtidos no mercado internacional, reverter a deterioração das trocas e promover recursos para o desenvolvimento social, ciência e tecnologia. Tal processo constitui elemento crucial para evitar um processo de desenvolvimento extrativista e fortemente deletério para o meio ambiente;
d) A elaboração de uma nova arquitetura financeira regional, baseada em bancos públicos de desenvolvimento, com critérios de alocação de recursos solidários e distintos à rentabilidade privada; num fundo regional de estabilização de nossas economias que propiciem uma alternativa aos organismos internacionais tradicionais; e na configuração de uma moeda regional de transações que configure uma alternativa ao dólar e esteja baseada numa cesta de moedas nacionais que não retire destes estados sua autonomia na política cambial.
Carlos Eduardo Martins