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A guerra




Os tristes anos de guerra que passamos (e terão eles passado?) geraram, entre outros males, o da desconfiança, - que separa os homens. Negros tempos, em que o inimigo pode estar em toda parte; não se olha: espreita-se; não se fala; sussurra-se; não se vai direto a nenhum assunto, como um coração em liberdade: rodeia-se. Rodeia-se e encontra-se o Curvo de Ibsen. “Nem morto nem vivo. Nevoeiro. Lama. Sem forma... o Curvo não ataca. Triunfa sem lutar.” A imagem da hipocrisia postou-se nos mais belos caminhos. Oh, o cansaço imenso da guerra não está somente nos ombros dos soldados que batalharam: está em todos que queriam viver sinceramente; está nos que não puderam fazer nada, que foram detidos e paralisados, transferidos para um dia que talvez não alcancem – e, de qualquer modo, postos fora de ação, pelas circunstâncias condenados à inércia no justo momento de construir, momento que nem sempre volta, e quando volta já não é o mesmo.


O fim da guerra, com seus desenlaces pavorosos, abriu uma válvula aos compromissos e desesperos do mundo; e assistimos a espetáculos de brutalidade que quase excedem os da própria guerra. Por ele vemos já não a atrocidade dos combates, nem os recursos demoníacos alcançados pelo homem em atacar ou defender-se – mas a perversão a que esses anos conduziram, o estado de deformação que a criatura humana atingiu, depois de tantos exercícios macabros; a facilidade com que se resvala até a mais negra baixeza, até o súbito esquecimento de toda a aprendizagem conquistada em longos séculos pelo animal humano.


Há uma alucinação coletiva, um desequilíbrio total, explicáveis por esses anos de turbulência, de ameaça constante dirigida contra os nervos, com a sábia perversidade dos que conhecem bem o seu alvo. E depois desse arrasamento brutal da terra, não ficaram apenas campos e cidades destruídos, cadáveres e famintos: ficou uma turba transtornada, pelo que viu, pelo que sofreu e até pelo que esperou sem ter acontecido.


Isso parece um pesadelo, mas não foi um pesadelo; parece uma história para aterrorizar, mas foi uma história vivida. Não é possível que a deseje repetir. E isso não impede que a repitam, porque não é só pelo platônico desejo de bem-estar e felicidade que se constrói nem um nem outro.


Os homens nem sempre têm os mesmos recursos, nem sempre falam a mesma linguagem, mas os seus objetivos são singularmente parecidos. Devíamos compreender nos outros o que compreendemos em nós. Mas de tanto pensarmos em nós, esquecemos freqüentemente os outros.


Se aplicássemos o que resta de simpatia, de caridade, de altruísmo, pensando um pouco além dos nossos próprios limites, desejando verdadeiramente contribuir para melhorar o mundo, encontraríamos algum caminho, porque todos nós, sob pena de sermos verdadeiramente imprestáveis, sempre somos capazes de realizar aqui ou ali alguma coisa de utilidade geral.


A paz humana, como a felicidade de cada um, não é uma vantagem repentina, que se conquista de assalto e se mantém para sempre: é um vagaroso dever, cultivado com clarividência. Ganha-se a paz do mundo com a paz de cada indivíduo assegurada. Não adianta destruir uma fábrica de munições deixando na Terra um coração inquieto e feroz: as armas não nascem por si, elas representam materialmente o desejo e o sonho dos homens. Mas ainda há muita loucura nos ares. E não a querem ver. E dentro dela não se pode trabalhar nem pensar!


Cecília Meireles