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Ainda é preciso ler Freud?




Fora do círculo familiar, os 50 anos de Freud foram festejados apenas pelo pequeno grupo de psicanalistas vienenses que se reuniam em sua casa todas as quartas-feiras desde o outono de 1902. A ocasião era propícia a comemorações: não sendo mais o único analista, sua psicanálise já ultrapassara os limites de Viena – a conquista dos “arianos” de Zurique neutralizara a vil acusação de “ciência judia”. Vivia-se a fase áurea da clínica psicanalítica e, em termos de publicações de fôlego, jamais haveria para Freud ano igual ao anterior (1905). Além do livro sobre os chistes e do “Caso Dora”, houve os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, com o qual ele adicionara ao discurso do desejo (1900) o discurso da pulsão, definindo categoricamente os dois eixos centrais de sua investigação metapsicológica.
Como presente de aniversário, os alunos ofereceram-lhe um medalhão, realizado pelo escultor K. M. Schwerdtner. Sobre uma face, fora gravado o perfil de Freud, e sobre a outra, a cena de Édipo em frente à Esfinge. Em volta do desenho, um verso de Édipo Rei: “Aquele que resolveu o famoso enigma e que foi um homem de enorme poder”. Lendo a inscrição, Freud teria empalidecido: “Parecia ter visto um fantasma”, escreveu E. Jones. Depois de P. Federn admitir ser o autor da escolha da citação, Freud, agitado, contou que, quando jovem estudante de medicina na Universidade de Viena, costumava olhar os bustos dos antigos professores, imaginando que um dia poderia estar entre eles: o seu traria exatamente a mesma citação de Sófocles inscrita no medalhão com o qual acabava de ser honrado.
Desse episódio, apenas a segunda parte do sonho diurno de Freud materializou-se: afinal, como o Édipo da mitologia, ele decifrou, no plano da cultura, o próprio enigma edipiano, adentrando os mistérios da sexualidade humana. Quanto a figurar entre pares, nem seria o caso, pois de fato jamais fora médico; foi um psicanalista e um magnífico professor. Mas, na Universidade de Viena, seu estatuto não passou de um professor extraordinarius, que, no regime acadêmico da época, designava quem se encarregava de cursos que não constavam do currículo oficial obrigatório.
Esse caráter marginal permanece também o destino da psicanálise, e mesmo seu grande trunfo ou talvez condição de sobrevivência. Na academia, em particular, a psicanálise não deve estar no centro de uma formação, mas exterior aos outros domínios. O próprio Freud assumia uma incompatibilidade com toda sorte de “existência oficial” e demandava “independência em todas as direções”. O professor francês Jean Laplanche afirma que o analista [e a psicanálise] nasce e desenvolve-se apenas na marginalidade e na ruptura, e não pode garantir-se senão preservando todo um jogo de extraterritorialidades, em todos os níveis: marginalidade do tratamento em relação às instâncias da vida cotidiana, da análise pessoal em relação aos requisitos das sociedades de analistas, do exercício da análise em relação às profissões reconhecidas (médico ou psicólogo), das instituições analíticas em relação às instituições e aos reconhecimentos oficiais etc. “Como analistas, como pesquisadores e como universitários, afirmamos (…) que a experiência analítica constitui um campo epistemológico específico e autônomo”. A contrapartida é que ela não seja propriedade privada de um indivíduo ou de uma instituição.
É que ao fim e ao cabo, como teoria do inconsciente, a psicanálise acabaria por se tornar indispensável para todas as ciências que se ocupam da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições como a arte, a religião ou a ordem social. “Creio ter introduzido alguma coisa que ocupará constantemente os homens”, escreveu Freud a Binswanger, em 1911.
Não há qualquer anseio imperialista na pretensão freudiana. Se a disciplina por ele fundada deve interessar à psicologia, às ciências da linguagem, à filosofia, à biologia, à história da civilização, à estética, à sociologia e à pedagogia, isso não faz mais do que prolongar o movimento mesmo de seu próprio pensamento, “interessado” em todas essas disciplinas, conforme nos explica S. Mijolla-Mellor (Recherches en Psychanalise, 2004). Desse ponto de vista, antes de interessar a outros campos do saber ou da cultura, é a própria psicanálise que tem interesse nesses campos, sendo eles parte constitutiva dela própria. Quanto ao interesse das outras disciplinas pela psicanálise, é certo que tal movimento não elimina o fato da resistência – e esta diz respeito à vexação psicológica dos homens diante de seus desejos inconscientes tais como apontados pela invenção freudiana. Na fundação da Associação Psicanalítica Internacional, em 1910, Freud anunciou aos colegas: “Os indivíduos aos quais fazemos descobrir o que recalcam experimentam hostilidade a nosso respeito; não podemos esperar uma amabilidade simpática da sociedade para com aqueles que desvelam impiedosamente seus defeitos e insuficiências”. Em carta a Arthur Schnitzler, ainda escreveria que a psicanálise não é “um meio de se fazer amar”.
Devemos esperar, por isso, de tempos em tempos, vilanias tais como a infame e medíocre compilação de críticas publicada na França, em 2005, com o nome de O Livro Negro da Psicanálise, no qual Freud é tratado como falsário, trapaceiro e mentiroso (tal como faz agora, em 2010, Michel Onfray em O Crepúsculo de um Ídolo: a Fabulação Freudiana). Costuma-se aproveitar essas ocasiões para mais uma vez se falar em “crise da psicanálise”, o que Jacques Lacan (1901-1981), já em 1974, refuta com vigor, em termos definitivos: “A crise (…) não existe (…).” A psicanálise ainda não encontrou seus próprios limites. Há muito que descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise não há solução imediata, mas apenas a longa e paciente busca das razões”. Além disso, há Freud, arremata Lacan, “que ainda não compreendemos inteiramente”.
Por Fernando Aguiar