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Ponto Final




1.
O fim dos regimes soviéticos trouxe-me duas grandes ilusões: a de que, liquidado o capitalismo de Estado, deixaria de se confundir socialismo com nacionalizações e centralismo económico; e a de que surgiria uma nova síntese programática, que superasse o marxismo e o anarquismo doutrinários.
Numerosos marxistas, apesar de todo o seu materialismo histórico, cuidam que podem retroceder noventa e cinco anos e regressar ao estatismo e ao centralismo. Continuam a promover o nacionalismo, como se não fosse sinónimo de estatismo, já que uma nação é — ou aspira a ser — a área de um Estado. Não obstante, é certo que tem existido entre os marxistas um esforço de autocrítica, que conseguirá talvez rejuvenescer a herança de Marx. Entre os anarquistas, porém, nem isto se passa, porque, sendo hostis ao pensamento dialéctico, julgam que se pode voltar atrás na história e, com as mesmas receitas, reconstruir de maneira certa aquilo que resultara errado.
2.
A esquerda do século XXI substituiu o sujeito histórico classe trabalhadora por uma multiplicidade de sujeitos: os dois sexos, para os quais curiosamente se abandonou a denominação biológica e se adoptou a denominação gramatical de géneros; as preferências sexuais; as etnias; as nações; as tradições culturais.
Paradoxalmente, esta substituição ocorre na época em que o capitalismo está globalizado e transnacionalizado. A esquerda contemporânea é um dos principais agentes da debilidade estrutural da classe trabalhadora, contribuindo para fragmentá-la perante um inimigo unificado.
3.
A adopção de uma multiplicidade de sujeitos históricos significa que a esquerda do século XXI abandonou a luta por um novo ser humano — um ser humano integral em quem deixem de ser pertinentes as divisões entre sexos e as diferenças entre as cores da pele e os formatos do nariz e dos olhos — e reforçou todo o tipo de particularismos. Superar os particularismos é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é transformar a sociedade numa colecção de particularismos, ligados pelo mercado. Ressuscitaram-se assim as condições ideológicas para a biologização da cultura, que foi a operação distintiva do racismo e, mais especialmente, do nacional-socialismo germânico.
Ora, não há escritores e artistas homens nem escritores e artistas mulheres. Como não os há negros nem brancos nem amarelos, ou que procurem o prazer por um lado ou pelo outro. O que há é bons escritores e artistas ou maus escritores e artistas.
Nas páginas com que abriram, há cento e sessenta e quatro anos, um célebre Manifesto, os dois autores elogiaram a burguesia por ter aberto o caminho para a superação dos particularismos e tornado possível a aspiração a um ser humano integral. Previram acertadamente, pois foi esta a via que a cultura capitalista seguiu, e antecipando as demais transformações esteve, como sempre, a arte de vanguarda. Nas últimas décadas do século XIX os pintores e desenhadores europeus começaram a aprender a lição das artes plásticas japonesas e na primeira década do século XX a vanguarda artística europeia assimilou as lições da escultura africana e da escultura da América pré-colombiana. Mais tarde chegou o interesse pelo colorido da arte aborígene australiana. Não houve separação entre o vanguardismo e o chamado primitivismo, e mesmo as correntes construtivistas, que um olhar apressado tende a identificar exclusivamente com a civilização industrial, recolheram tanto o contributo das máquinas como das artes africanas e pré-colombianas.
Mas os autores daquele Manifesto não previram o que faria a esquerda do século XXI, que virou as costas a essa aspiração a um ser humano integral e a uma cultura universal.
A cultura europeia, hoje tão denegrida, desde há muito não existe. Foi superada pela cultura capitalista que, ao mesmo tempo que ultrapassou as tradições europeias e a sua área étnica, absorveu as culturas dos outros continentes e encetou um processo de unificação mundial. Quando a esquerda contemporânea recorre à acusação de eurocentrismo como arma polémica, não está a referir-se a uma Europa que acabou há muito. O que está realmente a fazer é a negar a aspiração a um ser humano integral e à universalização da cultura.
4.
Outro resultado imediato da adopção de uma multiplicidade de sujeitos históricos pela esquerda do século XXI foi a redução do conceito de classe trabalhadora à sua modalidade arcaica. Em vez de se entender a reestruturação da classe trabalhadora operada pelo sistema de produção toyotista, pela terceirização da mão-de-obra e pela transnacionalização do capital, a noção de classe trabalhadora manteve-se resumida ao fabrico industrial de artigos materiais.
Deste modo alimenta-se a proliferação de sujeitos históricos. Em vez de ser entendida como uma modalidade de assalariamento proletário, a terceirização é vista como um empreendedorismo. E o desenvolvimento dos mecanismos da mais-valia relativa através de um trabalho cada vez mais qualificado e complexo é apresentado como o surgimento de um cognitariado.
Esta fragmentação de conceitos tem como efeitos práticos a desarticulação da noção de exploração e a dissolução de uma consciência de classe trabalhadora.
5.
Com a redução da classe trabalhadora à modalidade arcaica fica escamoteada a sua enorme ampliação e a sua plasticidade social, que corresponde à ampliação espacial dos locais de trabalho e à plasticidade que adquiriram ao integrarem os lazeres no processo formativo da força de trabalho.
Os espaços de lazer estão hoje tão vigiados como as fábricas e os escritórios. E aqueles jovens, ou já não tão jovens, que agora investem as ruas como os operários tradicionais podem ocupar as fábricas sabem, intuitiva mas certeiramente, que ambos os espaços são locais de trabalho.
Por isso se ilude aquela porção da esquerda que defende as formas artísticas mais degradadas com o argumento de que o seu consumo pelas massas lhes confere um carácter proletário. A indústria cultural capitalista tem, sem dúvida, uma vocação proletária, mas na mesma acepção em que a tem o fast-food. Não se pode lutar contra a proletarização do trabalho se se aceita a proletarização dos lazeres.
Não é impossível fazer uma muito boa arte de massas, produzida industrialmente e em série. A Bauhaus e os Vkhutemas demonstraram o contrário. Mas a indústria cultural capitalista produz deliberadamente uma má arte de massas, ou péssima, e a porção da esquerda contemporânea que adopta essas formas artísticas está a criar mais um obstáculo à emancipação cultural da classe trabalhadora.
6.
A esquerda do século XXI tornou-se ecológica, e como a direita e o centro se tornaram ecológicos também, para nem falar daqueles que dizem não ter opiniões políticas mas se afirmam igualmente ecológicos, chegou-se a uma situação em que a ecologia serve para apagar as clivagens políticas e de classe. A ecologia veio substituir a moral cívica.
É essa esquerda ecológica e supraclassista quem mais propaga a substituição da classe trabalhadora por uma multiplicidade de sujeitos históricos.
Os ecológicos consideram a natureza como sujeito, quando na verdade ela é um objecto da acção humana. Não existe hoje, em nenhum lugar do planeta, uma natureza originária nem natural. Ela é o resultado directo das transformações operadas pelo ser humano ou o resultado das cadeias de efeitos suscitados por essas transformações. E nestes sucessivos processos de transformação a natureza tem sido ampliada. Nos dois últimos séculos, a sociedade urbana e industrial inaugurou uma nova fase na ampliação da natureza.
Nada pode deixar os patrões mais satisfeitos do que o facto de a esquerda ecológica pregar que a luta pela abundância é nociva e, afinal, ilusória, porque a própria natureza imporia as restrições. De opção económica, a mais-valia absoluta ficou convertida numa pretensa imposição natural.
Menininhos e menininhas acampando a sua indignação, plantando hortas e comendo cenoura orgânica, julgando que destroem o capitalismo fazendo o Produto Interno Bruto andar para trás e aumentando o número de desempregados! Desprezo os palhaços do circo ainda mais do que os domadores de leões.
Com uma esquerda que se rendeu à ecologia, o facto de os trabalhadores preferirem o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria é a minha grande — neste momento a única — razão de esperança.
7.
A esquerda ecológica não é hostil a um modo de produção, neste caso o capitalismo, mas a uma civilização, o que é algo de muito diferente. A substituição do sujeito histórico classe trabalhadora por uma multiplicidade de sujeitos e a fusão da ecologia com o multiculturalismo fizeram com que o inimigo deixasse de ser o capitalismo considerado como sistema de exploração do trabalho e passasse a ser a sociedade urbana e industrial. Em vez dela, a esquerda ecológica pretende regressar às civilizações arcaicas ou, o que é o mesmo, apresenta essas civilizações arcaicas como inspiração do futuro.
A história consiste na destruição de fronteiras e limites — humanos ou naturais — que de cada vez eram tidos como invioláveis. E as técnicas — materiais e sociais — são os instrumentos dessa destruição. Mas a esquerda, que outrora invocava como razão de ser o ir além do capitalismo, propõe agora como programa ficar sempre aquém. Prefere o hoje ao amanhã e ainda mais prefere o anteontem ao ontem.
8.
Abandonando a luta entre classes travada no plano da exploração económica, a esquerda do século XXI adoptou uma forma ética, que mais não é do que um puritanismo transfigurado.
Trata-se de uma moral laica em que os prazeres sensuais são considerados ofensivos pelo feminismo, em que o desprezo pelos mitos e superstições paralisantes é consideradoeurocentrista pelo multiculturalismo, em que as exigências de satisfação do consumo são consideradas atentatórias da natureza. Aqueles prazeres, aquele racionalismo científico e aquela aspiração à abundância são considerados como os principais inimigos pela esquerda contemporânea, que assume assim uma função ética.
Os Dez Mandamentos foram substituídos pelos mil mandamentos do politicamente correcto.
9.
Os capitalistas devem obrigatoriamente ser realistas para ter lucros. A esquerda do século XXI deve ser irrealista para manter as ilusões.
Como poderia a sociedade urbana e industrial ser organizada por qualquer um dos grupos esquerdistas, quer de filiação marxista quer anarquista? Basta observar-lhes o primarismo dos programas e o arcaísmo das ideias para concluir que só com um catastrófico declínio da complexidade social e da produtividade económica caberíamos naqueles moldes. Esta é a função necessariamente retrógrada das esquerdas doutrinárias, ainda mais explicitamente assumida pelos ecológicos.
Ao vermos as insistentes ilusões da esquerda contemporânea, os programas delirantes, os becos historicamente comprovados sem saída em que insiste em enfiar-se, só por hipocrisia não reconhecemos que devemos ao status quo capitalista a possibilidade de não sermos lançados num precipício de onde nos seria muito difícil emergir. Um novo projecto programático da classe trabalhadora pode ser mais satisfatoriamente desenvolvido a partir de uma democracia capitalista rotulada de direita do que a partir de um capitalismo de Estado rotulado de esquerda.
10.
Não são as derrotas que cansam, e o nosso destino por muito tempo é sermos derrotados. Nesta guerra dos mil anos a única vitória possível é a final, até lá havemos de acumular reveses. O que cansa é as derrotas não serem reconhecidas como tal, por vezes nem sequer as batalhas serem conhecidas. Destruir pelas armas e pela repressão é uma coisa, deixar destruir pelo desinteresse é bem pior. Não são as derrotas que cansam, mas as derrotas em vão. É disto que estou farto.
Desisto? Das esquerdas doutrinárias sim, totalmente. A tragédia é que hoje o pensamento revolucionário surge e extingue-se sem saber que é esse o adjectivo que o devia classificar. Do mesmo modo, a política, se não for reduzida aos escândalos e às rasteiras que os profissionais passam uns aos outros, localiza-se hoje sobretudo fora do âmbito considerado político.
Por isso não desisto da capacidade da classe trabalhadora para acabar com o existente. Uma revolução nos nossos dias só pode significar uma libertação das energias criativas dos trabalhadores nos processos de trabalho. Quanto ao que virá depois e ao que formos capazes de construir…
Por João Bernardo