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Aventura




Cada parte de nossa atividade e de nossa experiência tem um duplo significado: ela gira em torno do próprio ponto central; ela terá tanto em amplitude e profundidade, em prazer e dor, quanto lhe for concedido pela experiência imediata; e ela é simultaneamente uma parte do decorrer da vida, não apenas uma totalidade circunscrita, mas também um componente de um organismo completo. Estes dois sentidos configuram diversamente cada conteúdo de vida; acontecimentos cujas significações próprias poderiam ser muito semelhantes entre si – quando essas se referem a si mesmas – são extremamente divergentes em função de suas relações com a totalidade da vida; ou, sendo talvez incomparáveis com respeito à primeira perspectiva, seus papéis como elementos de nossa existência inteira podem ser quase idênticos. Se de duas experiências, cujos conteúdos perceptíveis são semelhantes, uma é percebida como “aventura” e a outra não, isto constitui aquela diversividade da relação com a totalidade da nossa vida, pela qual cabe a esta tal significado, que à outra não se coloca.
A forma da aventura, em sua acepção mais genérica, pode ser assim expressa: ela extrapola o contexto da vida. Por aquela totalidade de uma vida entendemos que em seus conteúdos específicos – por mais que eles se distingam de uma maneira flagrante e irreconciliável – circula um processo de vida unitário. Contraposto à imbricação dos anéis da vida, ao sentimento de que, apesar de todas essas contracorrentes, essas viradas, esses embaraços, se tece, finalmente, uma linha contínua, está aquilo que chamamos aventura: uma parte da nossa existência à qual – pela frente e por trás se ligam imediatamente outras, mas que, ao mesmo tempo, em seu sentido profundo, corre por fora de qualquer continuidade desta vida. Não obstante, ela é distinta do simples acaso, do estranho, do que apenas roça a epiderme da vida. Ao situar-se fora do contexto da vida, a aventura como que penetra, justamente com esse mesmo movimento, novamente nele – isso será paulatinamente esclarecido. Ela é um corpo estranho em nossa existência, que, no entanto, é de alguma forma ligado ao centro. O externo é, mesmo via um longo e não habitual desvio, uma forma do interno. Por essa situação anímica, a aventura recebe facilmente a coloração do sonho na memória. Todos sabem como os sonhos são rapidamente esquecidos, em função de eles se situarem também fora do contexto de sentido da totalidade da vida. O que denominamos “onírico” não é outra coisa senão uma recordação, que se associa com menos fios que as demais experiências ao processo dinâmico e unitário da vida. Localizamos nossa incapacidade em ordenar uma experiência a esse processo na representação do sonho, no qual esta experiência teria se realizado. Quanto mais “aventureira” for uma aventura, tanto mais seu conceito será preenchido em sua acepção mais pura, tanto mais ela será “onírica” para nossa memória. E ela freqüentemente se afasta tanto do ponto central do Eu e do decurso da totalidade da vida, por ele firmemente assegurado, que pensamos facilmente na aventura, como se um outro a tivesse vivenciado; quão distante ela paira no lado oposto desta totalidade e quão estranha a aventura se lhe tomou, exprime-se justamente pelo fato de, por assim dizer, ser compatível com nosso sentimento, dar a ela um outro sujeito que não aquele. Em um sentido muito mais preciso do que quando tratamos das outras formas dos nossos conteúdos de vida, a aventura tem começo e fim. Isto constitui seu desligamento dos entrelaçamentos e encadeamentos daqueles conteúdos, seu centramento em um sentido próprio. Com respeito aos acontecimentos cotidianos e aos anuais, percebemos que um termina na medida em que – ou por que – o outro se coloca. Eles determinam suas fronteiras entre si, e, com isso, a unidade do contexto da vida é configurada ou expressa. A aventura, porém, segundo seu sentido como aventura, é independente do anterior e do posterior; ela determina seus limites sem considerá-los, precisamente lá onde a continuidade com a vida é recusada por princípio – ou que em verdade sequer precisa ser recusada, porque um estranhamento, uma intocabilidade e uma existência à parte são dados de antemão – falamos de aventura. A ela falta aquela penetração mútua com as partes vizinhas da vida, pela qual esta forma uma totalidade. O seu começo e o seu fim são determinados como uma ilha na vida, de acordo com suas próprias forças formadoras, e não como um pedaço de um continente, determinado simultaneamente pelo lado de cá e pelo lado de lá. Esta delimitação decisiva, com qual a aventura se subtrai da marcha conjunta de um destino, não é algo mecânico, mas orgânico. Assim como o organismo não determina sua forma espacial simplesmente por meio de obstruções vindas da direita e da esquerda, mas mediante a força motriz de uma vida que se forma internamente, também a aventura não termina porque alguma outra coisa se inicia. Antes, sua forma temporal, seu fim radical, constitui a figura precisa de seu sentido interior.
Aqui temos, em primeiro lugar, a relação profunda do aventureiro com o artista, e talvez também o fundamento da inclinação do artista pela aventura, pois a essência da obra de arte é que ela recorta um pedaço da linha infinitamente contínua da plasticidade e da experiência, o solta da conexão com este e com aquele lado e lhe dá uma forma auto-suficiente, determinada a partir de um centro interno, e por de mantida unida. O fato de uma parte da existência – entrelaçada na ininterrupção desta – ser, todavia, sentida como uma totalidade, como uma unidade acabada, constitui a forma comum à obra de arte e à aventura. E em função dela ambas são sentidas – em toda parcialidade e casualidade dos seus conteúdos – como se em cada uma delas de alguma maneira se resumisse e se esgotasse a vida toda. E isto parece acontecer não de um modo pior, mas sim de um modo mais perfeito, porque a obra de arte se coloca do lado oposto da vida, uma realidade, e a aventura se coloca do lado oposto da vida, como um processo ininterrupto, que entrelaça compreensivelmente todo elemento com seu vizinho. Justamente porque a obra de arte e a aventura se opõem à vida (mesmo que nos mais distintos significados do oposto),1 uma e outra são análogas à totalidade de uma vida, como é representado em um pequeno corte e na densidade da experiência do sonho.
Por isso o aventureiro é também o exemplo mais forte do homem a histórico, do ser do presente. De um lado, ele não é definido por nenhum passado, o que determina sua oposição à velhice, de outro, não há para ele o futuro. Uma prova extrema, e bem característica disto, temos no fato de Casanova, como é de se ler em suas memórias, tão amiúde, no decorrer da sua vida erótico-aventureira, pretender seriamente se casar com a mulher que ele amava naquele momento. Na natureza e na condução da vida de Casanova havia algo completamente contraditório; interna e externamente algo mais impossível seria impensável. Casanova não foi somente um conhecedor primoroso dos homens, mas especialmente um raro conhecedor de si mesmo; tendo de dizer a si próprio que não manteria um casamento por mais de catorze dias e que as conseqüências lastimáveis deste passo seriam totalmente inevitáveis, o êxtase do momento (quero aqui colocar o acento mais sobre o momento do que sobre o êxtase) engolia a perspectiva de futuro. Porque o sentimento do presente o dominava incondicionalmente, ele buscava uma relação para o futuro, o que era impossível justamente por sua natureza do presente.
O fato de algo isolado e casual conter uma necessidade e um sentido diferencia o conceito de aventura de todas as partes da vida que encaixam os meros desígnios do destino em sua periferia. Uma tal parte da vida só se torna uma aventura por meio daquela dupla doação de sentido: ela constitui em si uma configuração de um sentido que é de alguma maneira deveras significativo – configuração que é fixada por meio de um começo e um fim -; ela está, não obstante toda sua casualidade e toda sua exterioridade perante o fluxo contínuo da vida, em conexão com a essência e com a determinação do sujeito em um sentido amplo – que se alastra aos segmentos racionais da vida – e em uma necessidade secreta.
Isso faz lembrar a relação do aventureiro com o jogador. O jogador, na verdade, está abandonado à falta de sentido do acaso; apenas na medida em que ele conta com o favor deste acaso, na medida em que ele considera possível uma vida condicionada por este acaso, e a realiza, o acaso coloca-se para ele em uma concatenação do sentido. A superstição típica do jogador não é outra coisa senão a forma palpável e singular, e por isso infantil, deste esquema profundo e abrangente de sua vida: que no caso reside um sentido, um significado, necessário qualquer – mesmo que este não seja necessário segundo a lógica racional. Pela superstição, com a qual o jogador quer atrair o acaso, via augúrios e lances mágicos, para dentro do seu sistema de finalidade, ele o libera de seu impenetrável isolamento, ele procura nesse acaso uma ordem vigente segundo certas leis, mesmo que segundo leis fantásticas. E assim o aventureiro permite que o acaso, que se situa fora da linha da vida, que é dirigida por um sentido, seja todavia abrangido por este sentido. Ele introduz um sentimento central da vida, que é conduzido por meio da excentricidade da aventura e produz uma necessidade nova e significativa de sua vida, justamente na amplitude da distância entre seu conteúdo casual dado pelo exterior e o centro da existência – unificador e doador de sentido. Entre acaso e necessidade, entre os fragmentados da realidade exterior e o significado unitário da vida desenvolvida a partir de dentro, está em jogo, em nós, um processo eterno, e as grandes formas, nas quais configuramos os conteúdos da vida, são as sínteses, os antagonismo e os compromissos destes aspectos fundamentais. A aventura é um deles. Se o aventureiro profissional faz da ausência de sistema da sua vida um sistema de vida, se ele busca os meros acasos exteriores a partir de sua necessidade interior, incorporando aqueles nesta, com isto ele toma apenas macroscopicamente visível o que constitui a forma essencial de toda “aventura”, mesmo a do homem não aventureiro, pois sempre entendemos por aventura um terceiro termo – além tanto do mero acontecimento abrupto, cujo sentido permanece pura e simplesmente exterior para nós (do mesmo modo como veio do exterior), como também da linha unitária da vida, na qual cada parte complementa a outra, formando um sentido total. A aventura não é uma mistura de ambos, mas a experiência incomparavelmente colorida, que se deixa interpretar apenas como abrangência especial daquele pólo casual-exterior pelo pólo interior-necessidade.
Ocasionalmente toda esta relação é ainda abarcada por uma profunda configuração interior. Da mesma maneira como a aventura parece basear-se numa diferenciação dentro da vida, a vida como um todo pode ser sentida como uma aventura. Para tanto, não é preciso nem ser um aventureiro, nem vivenciar várias aventuras específicas. Quem tem esta atitude singular perante a vida deve sentir, sobre a totalidade daquela vida, uma unidade superior, como que uma vida superior que se comporta perante aquela como a própria totalidade da vida imediata diante das experiências específicas – que são para nós as aventuras empíricas. Talvez pertençamos a uma ordem metafísica, talvez nossa alma viva uma existência transcendente, de tal forma que, contraposta a uma inominável existência que se completa acima dela, nossa vida terrena consciente seja somente uma parte isolada. O mito da transmigração de almas pode ser uma tentativa hesitante de exprimir este caráter segmentário de toda vida dada. Quem sente por meio de toda a vida real uma existência atemporal e secreta da alma – que é ligada a estas realidades apenas como que de longe – perceberá a vida em sua totalidade dada e limitada como uma aventura, comparada àquele destino transcendente e em si unitário. Certas motivações religiosas parecem provocar isto. Onde nosso trilho terreno é considerado um mero estágio anterior do cumprimento do destino eterno, onde temos sobre a terra apenas uma ligeira estadia de hóspede, mas não um lar, há manifestamente apenas uma coloração especial do sentimento geral de que a vida como uma totalidade é uma aventura; com o que é expresso somente que os sintomas da aventura afluem para ela: que ela se situa fora do sentido próprio e do decurso contínuo da existência, mas está, contudo, ligada a eles por meio de um destino e de uma simbólica misteriosa; que ela é um acaso fragmentário, mas é, todavia, coesa como uma obra de arte, com começo e fim; que ela, como um sonho, junta em si todas as paixões e, como este, está fadada ao esquecimento; que ela, como o jogo, se distingue do sério, mas caminha, como o Va banque do jogador, em direção à alternativa de um ganho máximo ou da destruição.
A síntese das grandes categorias da vida – sendo a aventura uma formação peculiar delas – perfaz-se entre a atividade e a passividade, entre aquilo que conquistamos, e aquilo que nos é dado. Sem dúvida, a síntese da aventura torna a oposição destes elementos extremamente perceptível. Por um lado, com ela, abarcamos violentamente o mundo em nosso interior. A diferença em relação à maneira como aproveitamos as dádivas dele no trabalho deixa isto claro. O trabalho possui, por assim dizer, uma relação orgânica com o mundo, ele desenvolve continuamente as matérias e forças do mundo até seu ápice, visando a finalidades humanas, enquanto, na aventura, temos uma relação inorgânica com o mundo; ela traz consigo os gestos do conquistador, o rápido aproveitamento das chances, não importando se com isto separamos uma parte harmônica ou desarmônica para nós, para com o mundo ou para com a relação de ambos. De outro lado, porém, na aventura, estamos expostos ao mundo, mais desprotegidos e sem reservas do que naquelas relações todas, que estão ligadas por mais pontes com a totalidade de nossa vida no mundo e que, portanto, nos protegem melhor contra os choques e perigos, por meio de desvios e adaptações.
Aqui entrelaçamento de ação e sofrimento, no qual decorre nossa vida, estende seus elementos a uma simultaneidade da conquista, que deve tudo somente à própria força e ao espírito do presente, e do completo abandonar-se às forças e às chances do mundo, que tanto podem nos favorecer como nos destruir. O fato de a unidade na qual reunimos em cada momento nossa atividade e nossa passividade perante o mundo – unidade que num certo sentido constitui a vida – conduzir seus elementos a um aguçamento tão extremo e, precisamente com isto, tomar-se mais profundamente perceptível – como se eles fossem somente aspectos de uma e da mesma vida misteriosamente inseparável – constitui um dos mais admiráveis encantos com o qual a aventura nos seduz.
O fato de a aventura continuar nos parecendo um cruzamento do momento de segurança da vida com o de insegurança constitui algo mais que o posicionamento da mesma relação fundamental, sob um outro ponto de vista. A segurança que – acertada ou equivocadamente – temos com respeito ao êxito confere à atividade uma coloração qualitativamente especial. Se, ao contrário, não estamos seguros de que alcançaremos o objetivo estabelecido na partida, se temos consciência da incerteza com respeito ao êxito, isto constitui não apenas uma segurança quantitativamente menor, mas significa, antes, uma condução interna e externamente singular da nossa praxis. O aventureiro, para dizê-lo numa só palavra, trata o que na vida é incalculável, como em geral tratamos o que pode ser calculado com segurança. (Por isso o filósofo é o aventureiro do espírito. Ele faz a tentativa sem perspectiva, porém não sem sentido, de formular em termos de um conhecimento conceitual um procedimento de vida da alma, sua disposição diante de si, do mundo e de Deus. Ele trata o insolúvel como se fosse solúvel.)
Onde o entrelaçamento com os elementos desconhecidos do destino torna duvidoso o êxito de nossa atividade, cuidamos de limitar o emprego de nossas forças, de manter abertas as linhas de retirada e damos cada passo apenas experimentando. Na aventura, procedemos de um modo diametralmente oposto: apostamos tudo justamente na chance flutuante, no destino e no que é impreciso, derrubamos a ponte atrás de nós, adentramos o nevoeiro, como se o caminho devesse nos conduzir sob quaisquer circunstâncias. Este é o típico “fatalismo” do aventureiro. Certamente as escuridões do destino não são mais transparentes a ele que aos outros, mas ele se comporta como se fossem. A ousadia peculiar com a qual ele sempre se retira da estabilidade da vida constrói de certa maneira, para sua própria legitimação, um sentimento de segurança e de necessidade do êxito, que em geral só encontramos na transparência de acontecimentos calculáveis. O fato de o aventureiro, não obstante, crer que este desconhecido é seguro para ele constitui apenas um afastamento subjetivo da convicção fatalista, de que nosso destino – o qual não conhecemos – é com certeza inevitável; por isso a atividade do aventureiro freqüentemente parece loucura aos olhos do homem sóbrio, porque, para que tenha sentido, ela parece ter como pré-requisito que o insondável seja sabido.
O príncipe de Ligne dizia de Casanova: “Ele não acredita em nada, exceto no que é menos plausível”. Evidentemente, aquela relação perversa ou no mínimo “aventureira” entre o sabido e o ignorado constitui o fundamento desta afirmação. O ceticismo do aventureiro – o fato de ele “não acreditar em nada” – é manifestamente um correlato disto: para quem o improvável é provável, o provável toma-se facilmente improvável. O aventureiro confia, de algum modo, em sua própria força; antes de tudo, porém, confia em sua própria sorte; no fundo, ele se fia em uma singular união não diferenciada de ambas. A força, da qual ele está seguro, e a sorte, da qual ele não está seguro, convergem nele – subjetivamente – em direção a um sentimento de segurança. Se a essência do gênio é caracterizada por uma relação imediata com as unidades misteriosas, que na experiência e na decomposição operada pela razão se separam em fenômenos completamente isolados, então o aventureiro genial vive, como que com um instinto místico, no ponto onde a marcha do mundo e o destino individual por assim dizer ainda não se diferenciaram um do outro. Por isso o aventureiro tem geralmente feições “geniais”. A partir desta constelação especial, na qual ele faz do mais inseguro e do incalculável os pressupostos de sua ação – o que um outro faria apenas do calculável -, tomase compreensível a “segurança sonâmbula” com a qual o aventureiro conduz sua vida e, mediante a postura inabalável que este mantém quando vem a ser desmentido pelos fatos, se comprova quão profundamente aquela constelação está enraizada nos pressupostos de vida de pessoas desta natureza.
Mesmo sendo a aventura uma forma de vida que pode se concretizar em uma multiplicidade de conteúdos de vida não decididos de antemão, o conteúdo erótico tende, antes de todos os demais, a assumir esta forma, de tal modo que nossa linguagem praticamente impede a aventura de ser entendida como algo diferente de uma experiência erótica. Na verdade, uma experiência amorosa de curta duração não constitui necessariamente uma aventura. Antes, para que ela exista, é mister que as qualidades anímicas especiais – em cujo ponto de encontro reside a aventura – se unifiquem com esse momento quantitativo. Sua tendência para esta aproximação manifesta-se passo a passo.
A relação amorosa contém em si a junção clara – que também unifica a forma do aventureiro – desses elementos: a força conquistadora e a concessão não-constrangi da, o ganho advindo da própria capacidade e a dependência da sorte, que nos é concedida por uma instância incalculável alheia à nossa força e capacidade. Talvez uma certa equivalência destas direções na experiência, obtidas na base de sua diferenciação profunda, seja encontrável somente da parte do homem; talvez se deva a isto a significação exemplar, constatável no fato de a relação amorosa normalmente ser considerada apenas para o homem “aventura”, sendo que para a mulher algo idêntico é enquadrado em outras categorias. A atividade da mulher em um romance amoroso é tipicamente entremeada de passividade, que foi pela natureza ou pela história atribuída à sua essência; por outro lado, o ato de receber e o seu contentamento constituem imediatamente uma concessão e um presentear. Os dois pólos da conquista e da graça – que podem ser expressos em vários matizes – estão muito próximos na mulher e se distanciam decisivamente no homem, e por isso sua junção na experiência erótica confere ao homem o cunho – pouco dúbio – de “aventura”.
O fato de o homem ser a parte pretendente, ativa e amiúde impetuosamente abarcadora permite facilmente que, em cada experiência erótica percebida com displicência, o momento do destino, ou seja, a dependência a algo não previamente determinável, a algo que se subtrai a qualquer coação, passa desapercebido. Com isto entendemos não apenas a dependência à concessão por parte do outro, mas algo mais profundo.Certamente todo amor correspondido é um presente que não pode ser “merecido”, independente da proporção do amor, porque o amor se esquiva de qualquer exigência e pagamento e, por princípio, pertence a uma categoria totalmente distinta do acerto mútuo de contas; um ponto que mostra uma de suas analogias com a relação religiosa profunda. Além daquilo que recebemos do outro como doação livre, existe ainda em cada felicidade amorosa um favor do destino – como portador mais profundo e impessoal daquela doação pessoal. Nós o recebemos não apenas do outro, antes, o fato de recebermos dele constitui uma graça dos poderes incalculáveis. No acontecimento mais orgulhoso e autoconfiante deste campo reside algo que devemos tomar com humildade. E na medida em que a força, que deve seu sucesso a si mesma e que dá a toda conquista amorosa algum tom de vitória e triunfo, se casa com aquela outra da graça do destino, temos de certa maneira a constelação da aventura.
Em solos profundos enraíza-se a relação do conteúdo erótico com as formas gerais de vida da aventura. A aventura é o enclave do contexto da vida, o recorte abrupto, cujo início e fim não têm ligação com a corrente de algum modo unitária da existência – e não obstante, ela, como que por sobre esta corrente e prescindindo de sua mediação, se conecta com os instintos mais misteriosos e com uma intenção última da vida e se diferencia, em função disto, do mero episódio casual, do que nos “acontece” apenas exteriormente. Onde a experiência amorosa tem uma duração curta, ela vive justamente neste entrelaçamento de um caráter meramente tangencial com um caráter central. Ela pode dar à nossa vida um brilho simplesmente momentâneo, como um raio que lança, em um ambiente interior, uma luz externa, deslizante, efêmera; todavia, com isto é satisfeita uma necessidade, ou, em outros termos, a aventura só é possível em função de uma necessidade – chamem-na física, psíquica ou metafísica – que existe como que atemporalmente no fundamento ou no centro de nossa essência e que é tão ligada à experiência fugaz, quanto aquela claridade casual prontamente extinguível o é com a nossa nostalgia da luz.
A possibilidade de existência desta dupla relação no âmbito do erótico espelha-se em seu duplo aspecto temporal: o êxtase momentaneamente culminante e abruptamente cadente e a eternidade, em cuja idéia se cria uma expressão temporal para o fato de duas almas serem de uma forma mística determinadas uma para a outra e ainda para uma unidade superior. E isto poderia ser comparado com a dupla existência de conteúdos espirituais, que emergem de fato apenas na fugacidade do processo anímico, no ponto sempre instantâneo de incandescência da consciência, mas cujo sentido lógico possui, porém, uma validade atemporal, uma significação ideal, totalmente independente daquele instante da consciência, na qual estes conteúdos espirituais se tornam reais para nós. O fenômeno da aventura – com sua marca abruptamente pontiaguda, que empurra o final para o campo de visão do início e com sua relação simultânea com um centro da vida, que a distingue do mero acontecimento casual (relação cuja ausência implicaria a impossibilidade de existência do “risco de vida” no estilo da aventura) – é deste modo um forma que, pelo seu simbolismo temporal, aparece como predeterminada para a recepção do conteúdo erótico.
Estas analogias e formulações comuns ao amor e à aventura já prenunciam o fato de a aventura não pertencer ao estilo de vida da velhice. O que é decisivo para este fato é que a aventura, segundo sua essência e encanto específicos, é uma forma da experiência. conteúdo do acontecer não constitui ainda a aventura: o fato de existir um risco de vida ou de uma mulher ser conquistada para uma breve felicidade; o fato de elementos desconhecidos, com os quais se ponderou o jogo, terem trazido ganho ou perda surpreendente; o fato de a pessoa com um disfarce físico ou psíquico se encontrar em esferas da vida, das quais se regressa ao mundo familiar como que vindo de um mundo estranho – tudo isto não constitui ainda necessariamente uma aventura. Esta se caracterizará somente por meio de uma certa tensão do sentimento de vida, com a qual aqueles conteúdos se realizam; somente quando uma corrente, indo e vindo entre a parte mais exterior da vida e a sua fonte central de energia, abarca aquela em si, e quando aquela coloração, temperatura e ritmo especiais do processo de vida constituem o que é verdadeiramente decisivo, o que de certa maneira acentua o conteúdo de um tal processo de vida, o acontecimento deixará de ser uma simples experiência e se tornará uma aventura.
Este princípio de acentuação, porém, se distancia da velhice. De forma geral, somente a juventude conhece tal preponderância do processo sobre os conteúdos da vida, enquanto para a velhice, quando o processo da vida começa a desacelerar e a enrijecer, importam os conteúdos, que são de certo modo atemporais e indiferentes ao ritmo e à paixão de sua experiência. Na velhice, ou se vive totalmente centralizado, e neste caso os interesses periféricos decaem e perdem a ligação com a vida essencial e com sua necessidade interna, ou o centro se atrofia, em decorrência do que a existência passa a se limitar tão-somente aos detalhes isolados e passa a haver a acentuação da importância do que é meramente exterior e casual. Em nenhum dos dois casos é possível a relação entre o acontecimento exterior e as fontes de vida interna, na qual se fundamenta a aventura, em nenhum deles se pode chegar à sensação de contraste da aventura: onde uma atividade é retirada totalmente do contexto geral da vida, mas deixa, não obstante, fluir em si a força e a intensidade totais da vida.
Esta oposição entre juventude e velhice – por meio da qual a aventura se torna prerrogativa da primeira, o que acentua lá o processo da vida, seu ritmo e suas antinomias e aqui os conteúdos, para os quais a experiência aparece cada vez mais como uma forma comparativamente casual – pode ser expressa como aquela entre o espírito romântico e o espírito histórico da vida. Para a atitude romântica importa a vida em sua imediaticidade, na individualidade de sua forma momentânea, em seu aqui e agora; ela sente a força total da corrente da vida com mais intensidade precisamente na pontualidade de uma experiência arrancada do curso normal das coisas, mas à qual se estende, contudo, um nervo proveniente do coração da vida. Toda esta ação da vida lançando-se fora de si, esta amplitude da oposição dos elementos penetrados por esta ação, pode alimentar-se somente do excesso e da alegria incontida da vida, como ocorre na aventura, no romantismo e na juventude.
A disposição histórica é mais própria da velhice, se esta como tal tem uma atitude importante e característica de recolhimento. O fato de esta disposição histórica ampliar-se para uma visão do mundo ou restringir seu interesse ao próprio passado é irrelevante; em todo caso ela corresponde, em sua objetividade e meditação retrospectiva, à imagem dos conteúdos da vida, da qual a imediaticidade da vida em si desapareceu. Toda história como imagem, em um sentido científico restrito, é gerada por meio desta sobrevivência dos conteúdos além do processo de seu presente, que é vivenciado, porém indizível. A ligação que este processo construiu entre eles desintegrou-se e precisa ser agora reconstruída na forma de uma imagem ideal, por meio de linhas totalmente diferentes. Com este deslocamento do acento, deixam de existir todos os pressupostos dinâmicos da aventura. Sua atmosfera é, como já foi indicado, a contemporaneidade incondicional, a aceleração do processo da vida até um ponto que não possui nem passado nem futuro – e que por isso reúne a vida em si com intensidade – e que se torna com freqüência relativamente indiferente à matéria do processo.
Assim como para a verdadeira natureza do jogador o motivo decisivo não é ganhar esta ou aquela quantia em dinheiro, mas sim o jogo como tal, a violência do sentimento rasgado pela oscilação entre a felicidade e o desespero, a proximidade, como que palpável, das forças sobrenaturais, que decidem entre ambos, também a sedução da aventura inúmeras vezes não se encontra no conteúdo que ela nos oferece – e que, oferecido de outra forma, seria talvez menos reparado – mas sim na forma aventureira de sua experiência, na intensidade e no suspense, com os quais ela, exatamente nestes casos, nos permite sentir a vida. Justamente isso liga a juventude à aventura. O que se chama de subjetividade da juventude é somente isto: a matéria da vida em seu significado objetivo não é para ela tão importante quanto o processo que a conduz, quanto a própria vida. O fato de a velhice ser “objetiva”, o fato de ela formar, a partir dos conteúdos que a vida passada deixou restar de um modo especialmente atemporal, uma composição nova: da contemplatividade, da ponderação objetiva, do que está livre da inquietação com a qual a vida se torna presente – precisamente isto é o que aliena a aventura da velhice, o que faz do velho aventureiro um fenômeno repulsivo e sem estilo; não seria difícil desenvolver toda a essência da aventura pelo fato de ela simplesmente não ser uma forma de vida em conformidade com a velhice.
Todas aquelas determinações e situações da vida que são não só estranhas mas mesmo hostis à sua forma de aventura não impedem que a aventura, em um aspecto mais geral, apareça misturada a toda existência humana prática como elemento encontrado por todo lado, que apenas comparece reiteradamente nas distribuições mais sutis como que macroscopicamente invisível e encoberta por outros elementos no fenômeno. Independente daquela representação que se aproxima da metafísica da vida, segundo a qual nossa existência sobre a terra como totalidade e unidade constitui uma aventura, e visto antes pelo lado puramente concreto e psicológico, cada experiência singular contém alguma quantidade de determinações que em certa medida lhe faculta alcançar o “limiar” da aventura. Dentre estas determinações, a mais essencial e mais profunda neste caso é o apartamento do acontecimento do contexto geral da vida. O fato de pertencer a este contexto não esgota a significação de nenhuma de suas partes. Antes, mesmo onde uma tal parte está mais estreitamente entrelaçada com o todo, onde ela parece estar realmente toda dissolvida no contínuo fluir da vida, como uma palavra não-acentuada no decorrer de uma frase mesmo aí uma percepção refinada permite reconhecer uma valor próprio desta parcela da existência; com uma significação autocentrada, esta parcela contrapõe-se àquele desenvolvimento total, ao qual, visto pelo outro lado, ela pertence inseparavelmente. Tanto a riqueza como a perplexidade da vida procedem inúmeras vezes desta dualidade de valores de seus conteúdos. Vista a partir do centro da personalidade, uma tal experiência constitui tanto algo necessário, desenvolvido a partir da unidade da história individual, como algo casual, estranho a esta unidade, insuperavelmente delimitado e colorido por uma profunda incompreensibilidade, como se esta experiência estivesse em algum lugar no vazio e gravitasse no nada.
Destarte, sobre toda e qualquer experiência há uma sombra daquilo que a aventura realiza em sua concisão e clareza. Uma tal experiência permite que um certo sentimento de inclusividade em um começo e um fim, um sentimento da pontualidade da experiência singular que como tal desconsidera o resto, se afaste de sua incorporação à seqüência da vida. Este sentimento pode tornar-se imperceptível, mas ele está latente em cada experiência e emerge dela, freqüentemente, para nosso próprio espanto. Não se poderia indicar uma experiência, cuja distância da continuidade da vida seja ínfima, na qual não pudesse emergir o sentimento da aventura, nem tampouco uma experiência tão distante dela, na qual este sentimento emergiria necessariamente; não se poderia tornar tudo aventura caso seus elementos não repousassem em alguma medida em tudo, caso eles não pertencessem aos fatores vitais, devido aos quais um acontecimento pode ser designado como experiência humana. O mesmo ocorre com a relação do que é casual com o que é vinculado ao sentido. Em cada sucesso que se nos depara, há tanto de algo simplesmente dado, exterior e eventual, que se reduz somente a uma questão de quantidade saber se a totalidade pode ser considerada algo razoável, algo que possa ser compreendido conforme um sentido, ou se sua indissolubilidade com respeito ao passado e sua incalculabilidade com respeito ao futuro devem determinar a coloração do todo. Entre o empreendimento burguês mais seguro e a aventura mais irracional há uma série contínua de manifestações da vida, nas quais o compreensível e o incompreensível, o provocado e a graça concedida, o calculável e o casual se misturam em uma infinitude de graus. Na medida em que a aventura indica um extremo nesta série, o outro tem também, justamente por isso, uma parcela em seu caráter. A inserção de nossa existência em uma escala, na qual cada marca é simultaneamente determinada por uma atuação de nossa força e por um abandono às coisas e poderes impenetráveis – esta problemática de nossa colocação no mundo que assume uma conotação religiosa na questão insolúvel sobre a liberdade do homem com respeito às determinações divinas – permite que nos tornemos todos aventureiros. No âmbito de nossa circunscrição de vida e de nossas tarefas nela, que definem nossos objetivos e nossos meios, não poderíamos viver sequer um dia, se não tratássemos o incalculável como se fora calculável; se não confiássemos à nossa força o que ela não pode produzir sozinha, mas apenas em sua enigmática atuação conjunta como as forças do destino. Os conteúdos de nossa vida são continuamente compreendidas por formas que se misturam e que deste modo realizam sua totalidade unitária: há por toda parte formação artística, concepção religiosa, coloração de valores morais e reciprocidade de sujeito e objeto. Talvez não haja nenhuma dimensão da corrente deste rio, na qual cada um destes tipos de configuração, e muitos outros ainda, não formariam pelo menos uma gota de suas ondas. Porém, somente quanto elas, a partir da escala e da situação fragmentária e misturada nas quais a vida mediana as deixa submergir e emergir, alcançam um domínio sobre a matéria da vida, elas se tomam formações puras, correspondendo então às denominações da linguagem. Assim que a atmosfera religiosa cria puramente de si sua formação, o Deus, ela vem a ser “religião”; assim que a forma estética faz de seu conteúdo algo de importância secundária, com o que ela vive sua vida baseada somente em si, ela se toma “arte”; somente quando o dever moral é cumprido apenas porque ele é um dever – não importando quão cambiante sejam os conteúdos com os quais ele se preenche e que antes, por seu lado, determinaram a vontade – ele se toma “moralidade”.
Com a aventura não é diferente. Somos os aventureiros da Terra, nossa vida é perpassada a cada passo pelas tensões que constituem a aventura. Apenas quando estas tensões ficam de tal modo violentas, que elas passam a dominar a matéria na qual se perfazem, surge a “aventura”, pois ela não se baseia nos conteúdos, que com ela são ganhos ou perdidos, desfrutados ou sofridos: tudo isto nos é acessível também em outras formas de vida. Antes, o fato de o radicalismo estar ali, radicalismo pelo qual ela é sentida como tensão da vida, mudança de ritmo do processo de vida, independente de sua matéria e de suas diferenças; o fato de a quantidade destas tensões ser grande o suficiente para a vida arrancar-se daquela matéria – isto faz da mera experiência uma aventura. Ela é decerto apenas uma parte da existência, paralela a tantas outras, pertencente porém àquelas formas que – além de sua mera participação na vida e além de toda casualidade de seus conteúdos específicos – possuem a força misteriosa de deixar a totalidade da vida ser sentida em um instante. Instante no qual a vida se perfaz e que constitui um suporte que estaria ali apenas para sua realização.

Georg Simmel