Pensando melhor, porém, pareceu-me que a ausência de relações evidentes entre reflexões sobre a emancipação intelectual e a questão do espectador nos dias de hoje também era uma possibilidade. Poderia ser uma oportunidade de distanciamento radical em relação aos pressupostos teóricos e políticos que, mesmo na forma pós-moderna, ainda sustentam o essencial do debate sobre o teatro, a performance e o espectador. Mas, para trazer à tona a relação e dar-lhe sentido, seria preciso reconstituir a rede de pressupostos que põem a questão do espectador no cerne da discussão sobre as relações entre arte e política. Seria preciso delinear o modelo global de racionalidade sobre cujo fundo nos acostumamos a julgar as implicações políticas do espetáculo teatral. Emprego aqui essa expressão para incluir todas as formas de espetáculo – ação dramática, dança, performance, mímica ou outras – que ponham corpos em ação diante de um público reunido.
As numerosas críticas às quais o teatro deu ensejo ao longo de toda a sua história podem ser reduzidas a uma fórmula essencial. Eu lhe daria o nome de paradoxo do espectador, paradoxo mais fundamental talvez que o célebre paradoxo do ator. Esse paradoxo é simples de formular: não há teatro sem espectador (mesmo que um espectador único e oculto, como na representação fictícia de Fils Naturel [O Filho Natural] que dá ensejo aosEntretiens [Colóquios] de Diderot). Ora, como dizem os acusadores, é um mal ser espectador, por duas razões. Primeiramente, olhar é o contrário de conhecer. O espectador mantém-se diante de uma aparência ignorando o processo de produção dessa aparência ou a realidade por ela encoberta. Em segundo lugar, é o contrário de agir. O espectador fica imóvel em seu lugar, passivo. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir.
Esse diagnóstico abre caminho para duas conclusões diferentes. A primeira é que o teatro é uma coisa absolutamente ruim, uma cena de ilusão e passividade que é preciso eliminar em proveito daquilo que ela impede: o conhecimento e a ação, a ação de conhecer e a ação conduzida pelo saber. É a conclusão outrora formulada por Platão: o teatro é o lugar onde ignorantes são convidados a ver sofredores. O que a cena teatral lhes oferece é o espetáculo de um pathos, a manifestação de uma doença, a doença do desejo e do sofrimento, ou seja, da divisão de si resultante da ignorância. O efeito próprio do teatro é transmitir essa doença por meio de outra: a doença do olhar subjugado por sombras. Ele transmite a doença da ignorância que faz as personagens sofrerem por meio de uma máquina de ignorância, a máquina óptica que forma os olhares na ilusão e na passividade. A comunidade correta, portanto, é a que não tolera a mediação teatral, aquela na qual a medida que governa a comunidade é diretamente incorporada nas atitudes vivas de seus membros.
É a dedução mais lógica. Contudo, não é a que prevaleceu entre os críticos da mimese teatral. Estes, na maioria das vezes, ficaram com as premissas e mudaram a conclusão. Quem diz teatro diz espectador, e isso é um mal, disseram eles. Esse é o círculo do teatro que nós conhecemos, que nossa sociedade modelou à sua imagem. Portanto, precisamos de outro teatro, um teatro sem espectadores: não um teatro diante de assentos vazios, mas um teatro no qual a relação óptica passiva implicada pela própria palavra seja submetida a outra relação, a relação implicada em outra palavra, a palavra que designa o que é produzido em cena, o drama. Drama quer dizer ação. O teatro é o lugar onde uma ação é levada à sua consecução por corpos em movimento diante de corpos vivos por mobilizar. Estes últimos podem ter renunciado a seu poder. Mas esse poder é retomado, reativado na performance dos primeiros, na inteligência que constrói essa performance, na energia que ela produz. É sobre esse poder ativo que cabe construir um teatro novo, ou melhor, um teatro reconduzido à sua virtude original, à sua essência verdadeira, de que os espetáculos assim denominados oferecem apenas numa versão degenerada. É preciso um teatro sem espectadores, em que os assistentes aprendam em vez de ser seduzidos por imagens, no qual eles se tornem participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos.
Essa inversão conheceu duas grandes fórmulas, antagônicas em princípio, embora a prática e a teoria do teatro reformado as tenham frequentemente misturado. Segundo a primeira, é preciso arrancar o espectador ao embrutecimento do parvo fascinado pela aparência e conquistado pela empatia que o faz identificar-se com as personagens da cena. A este será mostrado, portanto, um espetáculo estranho, inabitual, um enigma cujo sentido ele precise buscar. Assim, será obrigado a trocar a posição de espectador passivo pela de inquiridor ou experimentador científico que observa os fenômenos e procura suas causas. Ou então lhe será proposto um dilema exemplar, semelhante aos propostos às pessoas empenhadas nas decisões da ação. Desse modo, precisará aguçar seu próprio senso de avaliação das razões, da discussão e da escolha decisiva.
De acordo com a segunda fórmula, é essa própria distância reflexiva que deve ser abolida. O espectador deve ser retirado da posição de observador que examina calmamente o espetáculo que lhe é oferecido. Deve ser desapossado desse controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de observador racional pelo do ser na posse de suas energias vitais integrais.
Por Jacques Rancière