A eleição de Donald Trump faz parte de uma série de grandes revoltas políticas que, juntas, sinalizam o colapso da hegemonia neoliberal. Elas incluem a votação pelo Brexit, no Reino Unido, a rejeição das reformas do então primeiro-ministro Matteo Renzi, na Itália, a campanha de Bernie Sanders pela nomeação como candidato do Partido Democrático, nos Estados Unidos, e o crescente apoio à direitista Frente Nacional francesa, dentre outras. Embora sejam diferentes em ideologia e objetivos, estas insurreições eleitorais compartilham a mesma meta: todas elas rejeitam a globalização corporativa, o neoliberalismo e o establishment político que os promove. Em todos estes casos, os eleitores disseram “Não!” à combinação letal de austeridade, livre comércio, débito predatório e empregos precários e mal pagos, elementos que caracterizam o capitalismo financeiro dos dias atuais. Seus votos são uma resposta à crise estrutural desta forma de capitalismo, que se tornou patente a partir do colapso quase total da ordem financeira mundial em 2008.
Até recentemente, no entanto, a principal resposta à crise foi o protesto popular – dramático e intenso, certamente, mas em grande medida efêmero. Os sistemas políticos, em contraste, pareceram relativamente imunes, sendo ainda controlados por funcionários partidários e pelas elites do establishment, ao menos em Estados capitalistas poderosos, como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha. Hoje, contudo, o impacto eleitoral reverbera em todo o mundo, incluindo as grandes capitais financeiras do mundo. Os que votaram em Trump, assim como os que votaram pelo Brexit e contra as reformas na Itália, revoltaram-se na verdade contra os grandes donos da política. Torcendo o nariz para o establishment partidário, repudiaram o sistema que erodiu sua qualidade de vida ao longo dos últimos 30 anos. A surpresa não é que tenham feito isso, mas que tenham demorado tanto tempo.
Ainda assim, a vitória de Trump não é unicamente uma revolta contra as finanças globais. O que seus eleitores rejeitaram não foi simplesmente o neoliberalismo, mas o neoliberalismo progressista. A expressão pode soar como um oxímoro, mas é um alinhamento político real e perverso que explica os resultados da eleição norte-americana e, talvez, alguns dos desenvolvimentos políticos em outras partes do mundo. Nos EUA, o neoliberalismo progressista é uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder “simbólico” (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças progressistas se unem às forças do capitalismo cognitivo, especialmente à “financeirização”. Embora involuntariamente, o primeiro oferece ao segundo o carisma que lhe falta. Ideais como diversidade e empoderamento, que poderiam em princípio servir a diferentes fins, hoje dão brilho a políticas que destruíram a indústria e tudo aquilo que antes fazia parte da vida da classe média.
O neoliberalismo progressista foi desenvolvido nos Estados Unidos ao longo das três últimas décadas, tendo sido ratificado pela eleição de Bill Clinton em 1992. Clinton foi o principal arquiteto e defensor dos ideais dos “Novos Democratas”, o equivalente americano do “Novo Trabalhismo” de Tony Blair. No lugar da coalização à la New Deal entre trabalhadores sindicalizados do setor industrial, afro-americanos e classes médias urbanas, Clinton forjou uma nova aliança entre empresários, a classe média dos subúrbios, novos movimentos sociais e juventude, levando-os a proclamar juntos sua boa fé moderna e progressista, sua aceitação da diversidade, do multiculturalismo e dos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo em que apoiava estas ideais progressistas, o governo Clinton cortejava Wall Street. Entregando a economia à Goldman Sachs, ele desregulou o sistema bancário e negociou acordos de livre comércio que aceleraram o processo de desindustrialização. Isso significou o fim do cinturão da ferrugem (o “Rust Belt”), outrora a maior fortaleza da democracia social do New Deal, que corresponde à região que na última eleição entregou a vitória a Donald Trump. O cinturão, assim como os novos centros industriais do sul, sofreu um grande baque à medida que a financeirização se desenvolveu ao longo das últimas duas décadas. Continuadas por seus sucessores, incluindo Barack Obama, as políticas de Clinton degradaram as condições de vida de toda a classe trabalhadora, mas especialmente a dos funcionários do setor industrial. Em suma, o clintonismo carrega uma grande parcela de culpa pelo enfraquecimento dos sindicatos, pela queda dos salários reais, pela crescente precariedade das condições de trabalho e pelo surgimento da família com dois provedores.
Aliás, conforme sugerido pelo último item, o ataque à segurança social foi reinterpretado por meio de um discurso emancipatório carismático, emprestado dos novos movimentos sociais. Ao longo dos anos, à medida que o setor industrial ruía, o país ouviu falar muito de “diversidade”, “empoderamento” e “não discriminação”. Ao identificar “progresso” com meritocracia, em vez de igualdade, o discurso igualou o termo “emancipação” à ascensão de uma pequena elite de mulheres “talentosas”, minorias e gays na hierarquia corporativista exclusivista. Esta compreensão individualista e liberal de “progresso” gradualmente substituiu o entendimento de emancipação mais abrangente, anti-hierárquico, igualitário, sensível às questões de classe e anticapitalista, que prosperou nos anos 1960 e 70. À medida que a Nova Esquerda sucumbia, sua crítica estrutural da sociedade capitalista desapareceu, e o pensamento individualista e liberal característico de nosso país se reafirmou, abalando imperceptivelmente as aspirações dos “progressistas” e autodeclarados esquerdistas. O que selou o acordo, no entanto, foi o fato de tais acontecimentos terem sido simultâneos à ascensão do neoliberalismo. Um partido que apoie a liberalização da economia capitalista é o parceiro perfeito para o feminismo corporativo e meritocrático focado em “assumir riscos” e “superar as barreiras da discriminação de gênero no trabalho”.
O resultado foi um “neoliberalismo progressista” que misturou ideais truncados de emancipação com formas letais de financeirização. Foi esta a mistura que os eleitores de Trump rejeitaram. Dentre os que foram deixados para trás neste admirável mundo novo e cosmopolita estão os operários, mas também gerentes, pequenos empresários, e todos aqueles que dependem da indústria do cinturão da ferrugem e do sul, bem como as populações rurais devastadas pelo desemprego e pelas drogas. Para estas populações, os danos causados pela desindustrialização foram acrescentados aos insultos do moralismo progressista, que os acusa frequentemente de serem culturalmente atrasados. Rejeitando a globalização, os eleitores de Trump também repudiaram o cosmopolitismo liberal que a ela associavam. Para alguns (embora de maneira alguma isto se aplique a todos), não foi difícil culpar, pela deterioração de suas condições de vida, a cultura do politicamente correto, as pessoas negras e as latinas, os imigrantes e os muçulmanos. Aos olhos deles, as feministas e os poderosos de Wall Street são figuras semelhantes, perfeitamente reunidas na pessoa de Hillary Clinton.
O que tornou possível esta percepção foi a ausência de uma esquerda genuína. Apesar de comoções periódicas, como o Occupy Wall Street, que acabou não durando muito tempo, há décadas a esquerda não se apresenta como uma força estável na política dos Estados Unidos. Também não havia qualquer narrativa de esquerda compreensível, que poderia relacionar as queixas legítimas dos apoiadores de Trump a uma crítica abrangente da financeirização, por um lado, e a uma visão antirracista, antimachista e anti-hierárquica da emancipação, por outro. Igualmente devastador foi o fato de que as possíveis relações entre novos movimentos trabalhistas e sociais foram simplesmente ignoradas. Apartados um do outro, estes dois polos indispensáveis para uma militância viável de esquerda chegaram a ser vistos como antíteses.
Foi assim pelo menos até o início da notável campanha pelas primárias de Bernie Sanders, que lutou para reuni-los, embora tenha enfrentado certa resistência inicial da parte do movimento Black Lives Matter. Dinamitando o senso comum neoliberal em vigência, a revolta de Sanders foi o equivalente democrata ao que ocorria com Trump entre os republicanos. Enquanto Trump ainda estava lutando pela aprovação do establishment republicano, Bernie chegou muito perto de derrotar a sucessora ungida de Obama, cujos lacaios controlavam todas as alavancas do poder no Partido Democrata. Entre si, Sanders e Trump obtiveram a aprovação da grande maioria dos eleitores americanos, mas apenas o populismo reacionário de Trump sobreviveu. Trump venceu com facilidade seus rivais republicanos, incluindo os que eram favorecidos por grandes doadores e chefes do partido, mas a insurreição pró-Sanders foi efetivamente minada por um Partido Democrata muito menos democrático. No momento das eleições gerais, uma alternativa de esquerda havia sido efetivamente solapada. O que sobrou foi o “pegar ou largar” da escolha entre o populismo reacionário e o neoliberalismo progressista. Quando a chamada esquerda se resolveu em prol de Hillary Clinton, o rumo dos acontecimentos já estava traçado.
Esta é uma alternativa que a esquerda teria de recusar. Em vez de aceitar os termos apresentados a nós pelas classes políticas, que opõem emancipação a proteção social, deveríamos trabalhar no sentido de redefini-los, tendo como apoio a crescente repulsa da sociedade contra a ordem atual. Em vez de nos aliarmos ao ideal da financeirização-com-emancipação contra a proteção social, deveríamos construir uma nova aliança entre emancipação e proteção social, contra a financeirização. Neste projeto, que se alinha ao de Sanders, emancipação não significaria diversificar a hierarquia corporativa, mas antes aboli-la. Da mesma forma, prosperidade não significaria aumento de valor acionário ou lucro corporativo, mas a disponibilização a todos os cidadãos dos requisitos materiais necessários para uma vida confortável. Esta combinação continua sendo a única resposta digna e vitoriosa na conjuntura atual.
Eu não derramo lágrimas pela derrota do neoliberalismo progressista. Certamente, há muito o que temer de uma administração Trump racista, anti-imigrantes e antiecológica. No entanto, não deveríamos entrar em luto nem pela implosão da hegemonia neoliberal, nem pelo desmantelamento do poder do clintonismo sobre o Partido Democrata. A vitória de Trump foi uma derrota para a aliança entre emancipação e financeirização. Mas sua presidência não oferecerá nenhuma resposta à crise atual, nenhuma promessa de um novo regime, nenhuma hegemonia segura. O que veremos, em vez disso, é um interregnum, uma situação instável de abertura em que novas mentes e corações poderão ser conquistados. Nesta situação, não há apenas perigo, mas também oportunidade: é a chance de construir uma nova nova esquerda.
Se isso ocorrerá ou não depende, em parte, de uma reflexão profunda da parte dos progressistas que apoiaram a campanha de Hillary Clinton. Eles terão de deixar de lado a cômoda, mas falsa narrativa de que perderam para um “grupo de deploráveis” (racistas, misóginos, islamofóbicos e homofóbicos) ajudados por Vladimir Putin e pelo FBI. Eles terão de reconhecer que têm sua parcela de culpa, ao sacrificar a causa da proteção social, do bem estar material e a dignidade da classe trabalhadora em prol de uma falsa compreensão de emancipação, definida em termos de meritocracia, diversidade e empoderamento. Eles terão de refletir profundamente sobre como podemos transformar a economia política do capitalismo financeiro, revivendo o chamado de Sanders por um “socialismo democrático” e descobrindo o que isto pode significar no século 21. Terão, acima de tudo, de se dirigir às massas que elegeram Trump – ao menos àquela parcela que não é composta por racistas ou extremistas de direita, mas é igualmente vítima de um sistema efetivamente “fraudado”. Estes cidadãos podem e devem ser recrutados para um projeto antineoliberal de uma esquerda renovada.
Isto não significa que teremos de nos calar sobre as urgentes questões colocadas pelo racismo e pelo machismo. O que teremos de fazer é mostrar como estas antiquíssimas formas de opressão encontram nova expressão e terreno nos dias de hoje por meio do capitalismo financeiro. Rebatendo a falsa noção de uma cisão irreconciliável, devemos relacionar os preconceitos sofridos pelas mulheres e por minorias étnicas às dificuldades enfrentadas pelos eleitores de Trump. Desta forma, uma esquerda revitalizada poderia lançar as bases de uma nova e poderosa coalizão, comprometida com a luta em prol de todos os oprimidos.
*Nancy Fraser é professora de filosofia e política na New School for Social Research (Nova York) e autora, mais recentemente, de "Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis" ("Fortunas do Feminismo: do Capitalismo de Estado à Crise Neoliberal", em tradução livre) pela editora Verso em 2013. Artigo publicado originalmente na revista Dissent Magazine.
Tradução: Henrique Mendes