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Superando os impasses da democracia no Brasil - Leonardo Avritzer



Os parâmetros principais a partir dos quais o impasse da democracia no Brasil se manifesta são: de um lado, temos uma conjuntura de esgotamento da relação entre o Partido dos Trabalhadores e o presidencialismo de coalizão, que parece ter uma capacidade limitada de funcionar. O dilema em que a presidenta Dilma Rousseff se encontra depois das manifestações de 15 de março, 15 de abril e 16 de agosto de 2015 e a aceitação do pedido de impeachment de seu mandato, por Eduardo Cunha resumem bem essa relação. De um lado, o desgaste devido à perda de legitimidade causada por negociações próprias ao presidencialismo de coalizão caem no colo da presidenta desde junho de 2013. Por outro lado, o PMDB tornou-se independente da presidenta, o que tornou o sistema ainda mais instável. O ano de 2015 foi marcado por esse duplo conflito, que opôs PMDB e governo, e mostrou os limites do presidencialismo de coalização.

Indubitavelmente, a questão central do presidencialismo de coalizão é como produzir governabilidade, mas resolvê-la implica em enfrentar práticas políticas da coalizão que dificultam a produção dessa mesma governabilidade. Meu argumento é de que a instabilidade de hoje, que pode, é certo, ser em parte atribuída à inabilidade da presidenta, tem também um componente estrutural e está, sim, ligada aos diferentes escândalos de corrupção nos quais o Partido dos Trabalhadores esteve envolvido na tentativa de estabilizar uma ampla coalizão política no Congresso. Esta instabilidade está também ligada à maneira como o PMDB passou a operar na política brasileira a partir de 2013. Para este partido, a ocupação progressiva de todos os nichos de poder com a consequente falta de estabilidade do próprio exercício da administração pública não é um problema – pelo contrário, seria a solução. A dificuldade, no entanto, é que a opinião pública não vê a “peemedebização” da administração pública dessa mesma maneira. As negociações infindáveis por cargos públicos que atingem todos os ministérios oferecem uma sensação de vale-tudo que hoje cai na conta da presidenta e do PT. Por outro lado, a governabilidade também não é conseguida dessa forma, já que o PMDB disputa todo o tempo cargos entre as suas facções e não consegue estabilizar a relação entre governo e Congresso Nacional. Se essa constatação é verdadeira, há um limite claro na relação entre o PT e o presidencialismo de coalizão que afeta a governabilidade.

A segunda dimensão da análise é o problema apontado por Nobre e que exige uma atualização temporal para as manifestações de 2015. Para o autor, o PMDB é o problema da democracia brasileira, e o seu crescimento travará toda a agenda progressista do Congresso e da sociedade civil.142 A eleição de Eduardo Cunha tende a confirmar parcialmente esse diagnóstico. Se, de fato, o Congresso Nacional permanecer com a atual configuração e com um líder que vai a uma CPI – como Eduardo Cunha foi em 11 de março de 2015 – para se defender de forma demagógica, apesar de acusações evidentes de corrupção que não são as primeiras, provavelmente haverá uma acentuação da crise política. As chamadas “pautas-bombas” apontam na mesma direção.

É verdade que, no momento em que escrevo as partes finais deste livro, o centro da crise política na sua dimensão pública passou a ser a insatisfação da classe média, principalmente da paulistana, com o governo Dilma Rousseff e uma insatisfação generalizada com Eduardo Cunha, expressa na pesquisa Datafolha de 29 de novembro de 2015, em que 81% da população se manifestou favorável ao afastamento do presidente da Câmara. No entanto, parece pouco provável que, se a crise continuar tendo como um dos seus centros a questão da corrupção, vá poupar o PMDB . Ainda assim surge, no momento em que este livro está sendo escrito, a hipótese de uma rearticulação do sistema político brasileiro em torno de Michel Temer, o vice-presidente em caso de impeachment. Certamente, esta seria uma forma de aprofundar os impasses da democracia brasileira, tornando o problema da legitimidade ainda maior. As denúncias contra Eduardo Cunha são muito mais graves do que as existentes contra outros membros do sistema político – e tudo indica que elas vão muito além da Petrobras; e envolvem votações de medidas provisórias em diversas áreas. Deste modo, o atual presidente da Câmara dos Deputados e o vice-presidente da República constituem o centro de uma articulação peemedebista, que torna a governabilidade muito difícil.

Assim, o argumento de Nobre é só parcialmente correto. A constituição de centro conservador sob a hegemonia do PMDB no Congresso aponta tanto para o auge quanto para o declínio do peemedebismo, e pode até mesmo apontar para a passagem do impasse a uma grave crise de legitimidade. Ainda que pareça pouco provável que o partido vá ser poupado ao final desse impasse, com a aceitação, por Cunha, do pedido de impeachment da presidenta, talvez esteja em seus momentos finais. Não parece claro de forma nenhuma que o peemedebismo poderá se estabilizar como forma hegemônica de fazer política no Congresso, tal como está estruturado hoje. Nem as instituições de controle, como ficou patente na lista de Janot, nem a sociedade civil que está se manifestando vão tolerar tal fato. Assim, uma solução dos impasses da democracia a favor do peemebismo, ou do vice-presidente, Michel Temer, parece improvável e poderia jogar o país em uma crise profunda, pois não resolveria o problema da corrupção e da utilização indevida da máquina pública.

A terceira dimensão a ser analisada são a participação e as manifestações públicas que voltaram com força nos meses de março, abril e agosto de 2015. Ocorreu o fim de um longo período que vai de 1964 a 2013, no qual a direita brasileira renunciou à mobilização popular. Entre 2013 e 2015, houve diversos momentos de polarização da mobilização social no Brasil. Ainda durante as manifestações de 2013 assistiu-se tanto a momentos com grande mobilização e agendas de esquerda, como a reforma urbana e a democratização das obras da Copa do Mundo, quanto a pautas conservadoras relacionadas a questões morais. O mesmo panorama se vislumbrou em 2014, com diversas mobilizações conservadoras e progressistas, algumas ocorridas durante a campanha eleitoral. E, finalmente, repetiu-se a mesma dinâmica no mês de março de 2015, mas com uma diferença fundamental: as manifestações conservadoras contra o governo tiveram uma dimensão muito maior do que as mobilizações do campo histórico participativo. Isso ocorreu tanto em março quanto em agosto. Como entender essa evolução ou involução da participação?

Temos, em primeiro lugar, de abdicar de uma análise simplista, como a de Paulo Arantes, da participação. Nem todas as manifestações são revoltas populares, nem todas as revoltas populares são contra o capitalismo e a favor da democracia. Na verdade, a grande questão da mobilização social, como dizia Alberto Melucci,144 é quem estabelece o campo de conflito em torno do qual se dá a mobilização social e quais são os pontos principais dessas mobilizações. No caso do início de 2015, temos uma mudança de orientação, com o governo e a corrupção ocupando o seu centro. Ainda assim, é importante apontar para a seletividade das manifestações contra a corrupção, que insistem em colocar o Executivo no centro de um escândalo que atinge mais de 10% dos membros do Congresso Nacional. Nesse sentido, se ocorreu uma revolta com tonalidade progressista em 2013, o que há em 2015 é uma contrarrevolução conservadora com presença nas ruas. Se em 2013 o centro da insatisfação eram as ruas, neste momento o ponto de destaque reside no complexo midiático com as ruas como mero acessório retórico. Mesmo assim, a pergunta fundamental é como as forças progressistas no Brasil podem retomar a iniciativa, e a resposta é: com uma agenda progressista em relação à corrupção.

A questão que aparece como central neste caso é: por que o campo participativo que se mobilizou em 2013 por uma agenda de mudanças não se mobilizou fortemente no começo de março de 2015? Ofereço duas respostas baseadas nas discussões dos capítulos anteriores: as negociações para nomeação de cargos políticos com o Congresso Nacional e os casos de corrupção desmobilizam a base do governo progressista no Brasil. O campo progressista quer de fato menos corrupção, é menos envolvido em corrupção do que os setores conservadores, que historicamente levantam a bandeira da corrupção apenas em momentos em que isso abala a correlação de forças no país. No momento, em que Eduardo Cunha aceitou o pedido de abertura do impeachment da presidenta, houve forte convergência em torno do governo e renovação da sua capacidade de mobilização. Isso mostra que certa desmobilização do campo participativo ao longo de 2015 pode ter sido provisória.

Em defesa do governo progressista, o que podemos dizer é que sua postura criou uma forte institucionalidade de combate à corrupção. A reforma administrativa da Polícia Federal em 2004, a ampliação do número de delegados na PF, a elaboração da ideia de operação integrada com o Ministério Público e a Receita Federal são avanços importantíssimos deste período. Mas não serão capazes de mobilizar os movimentos sociais e um campo de esquerda no país se os políticos do Partido dos Trabalhadores continuarem alvos de operações importantes dessa mesma Polícia Federal. Neste sentido, foi muito positivo o tema em torno do qual se deu a rearticulação do PT em 2015, a não salvação de Eduardo Cunha no Conselho de Ética na Câmara. Aqui se pode notar a profundidade do dilema petista: estabilizar o mandato de uma presidenta que não consegue produzir governabilidade ou retomar a tradição de um partido que não transige nas questões da corrupção. O posicionamento da bancada do PT contra Cunha, anunciado em 2 de dezembro de 2015, teve o papel de retomar a capacidade de mobilização do partido no parlamento, nas ruas e nas redes sociais.

O momento atual é de profunda reorganização do governo e do Partido dos Trabalhadores para que volte a ter legitimidade entre os seus principais apoiadores e entre os setores progressistas e readquira a capacidade de ocupar o espaço público com uma agenda progressista, o que começou a ocorrer no momento em que o partido se posicionou contra Eduardo Cunha no Conselho de Ética. Somente com uma agenda contra a corrupção e pela reforma política que não seja contraditória com a ação dos seus parlamentares, o PT e o governo poderão recuperar a iniciativa em relação a mudanças positivas na sociedade brasileira. Esta seria a melhor saída para o impasse, que deveria contar com um apoio decisivo de outros setores políticos no Brasil. É possível que este seja um dos desfechos do processo de impeachment contra a presidenta, iniciado em 2 de dezembro de 2015.

Mas é possível pensar em outro cenário mais preocupante que pode eventualmente transformar os impasses da democracia em uma crise. Trata-se de um cenário no qual a corrupção deixa de ser uma questão de aprimoramento institucional e passa a ser uma pauta seletiva utilizada contra o governo e alguns partidos, ao mesmo tempo que outras suspeitas são amplamente ignoradas. Não tenho nenhuma dúvida que a Operação Lava Jato tem caminhado nesta direção. Evidências muito fortes contra o PSDB e em especial contra o senador Aécio Neves foram fortemente ignoradas, como foi o caso do depoimento do doleiro Alberto Yousseff acerca da lista de Furnas. Ao mesmo tempo, evidências completamente indiretas em relação a alguns políticos do PT, como Lindberg Farias e Gleisi Hoffmann, passaram a fazer parte da Lava Jato. O risco é que a Lava Jato se partidarize e coloque o Brasil em um cenário parecido com aquele de 1954 e 1964. E, por fim, mesmo no caso do PMDB, a operação Lava Jato tem sido fortemente seletiva em especial a respeito da participação do vice-presidente Michel Temer em desvios de recursos da Petrobras. No entanto, está evidente que o amadurecimento institucional do país com a ação decisiva do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal torna esse cenário pouco provável. A decisão do STF de aceitar o fatiamento da Lava Jato, transferindo investigações para outras varas da justiça federal, aponta no sentido de colocar limites à partidarização desta operação. A ação forte e decisiva do ministro do STF no caso Delcídio do Amaral aponta na mesma direção. A saída dos impasses da democracia implica punir culpados de casos graves de corrupção sem partidarizar suas ações ou estabelecer falsos contrastes sobre quem recorre ao financiamento ilegal de campanha que, tal como foi mostrado anteriormente, são todos os principais partidos políticos do país.

A ampla manifestação da classe média paulistana e de algumas outras capitais do país contra o governo em março de 2015 mostra o que há de problemático em uma estratégia midiática e não institucional de luta contra a corrupção que não aborde os problemas do sistema político. Ela tende a demonizar alguns atores políticos e ser fortemente acrítica em relação a outros. Apenas mudando regras do financiamento de campanha é possível pensar em uma solução contra a corrupção que satisfaça a cidadania brasileira no longo prazo, que é a melhor maneira de superar a crise atual.

A democracia brasileira é forte e pujante. Nos trinta anos que se completaram, no dia 15 de março de 2015, desde a saída dos militares do poder, o Brasil construiu uma forte cultura democrática. O novo papel do Judiciário, a maturidade nas relações entre os poderes e principalmente os resultados substantivos gerados pela democracia brasileira, como a estabilidade econômica e a diminuição da desigualdade social, reforçam essa visão. Os avanços não permitiram, no entanto, que a democracia se livrasse de algumas das suas mazelas históricas, entre as quais, a corrupção.145 Vale a pena acrescentar que a sociedade, assim como o sistema político, tem as suas máculas, como por exemplo, uma classe média fortemente acostumada a privilégios, que hoje tem que disputar vagas em universidades públicas e se posicionar pela melhora dos serviços de saúde. Assim, existe o espaço para uma classe média progressista. Consolidar este espaço é fundamental para desenvolver a política progressista no Brasil.

Duas questões se colocam para a democracia brasileira hoje. A primeira é evitar uma expressão de intolerância, que tem se manifestado tanto na política quanto na sociedade. Estamos muito longe do tipo de brasileiro que Sérgio Buarque de Holanda chamou de homem cordial, provavelmente um mito, já que o país expressa tantas formas de intolerância. Mas é inegável que pontes importantes foram construídas entre os diferentes setores da sociedade brasileira pela nossa jovem democracia. Pontes entre brancos e negros, ricos e pobres, membros de diversas denominações religiosas, entre outros grupos. Evitar que estas pontes sejam rompidas é fundamental para a democracia, que exige como cenário para o bom funcionamento das instituições políticas uma cultura de tolerância e pluralidade valorativa.

Em segundo lugar, é necessária a manutenção de algum consenso procedimental em um momento tão grave. No momento em que este livro está sendo concluído, uma grave violação de procedimentos democráticos ocorreu na eleição da comissão do impeachment na Câmara dos Deputados. Foi estabelecido o voto fechado, que contraria o princípio da publicidade, parte fundamental da herança da Constituição de 1988. Este procedimento terminou suspenso pelo STF, mas o fato de ele ter sido posto em prática coloca em dúvida, neste processo, a manutenção de procedimentos democráticos.

O impasse político que o Brasil está enfrentando apresenta diversos desafios para a qualidade da democracia no país. De um lado, o país precisará romper com os elementos de intolerância que se manifestam na oposição, seja aquela que está no Congresso e a que se manifesta nas ruas, como nos grupos de apoio ao Governo. De outro, para ultrapassar esse período de impasse na democracia brasileira, é necessário tratar os problemas com soluções institucionais, tal como a democracia brasileira, desde 1988, tem atuado. O processo de impeachment em curso coloca amplos desafios em ambas as direções e, eventualmente, se não for conduzido de forma procedimentalmente adequada, poderá transformar este impasse em uma crise da democracia. A saída do impasse atual da democracia brasileira implica estabelecer um forte acordo procedimental sobre as formas de saída da crise e, ao mesmo tempo, barrar todas as formas de intolerância e negação de direitos que têm se manifestado na sociedade. Apenas a produção de soluções por meio das instituições políticas permitirá que a democracia saia mais forte de cada um dos impasses analisados neste livro.

In: AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil 1. ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.