Páginas

Somos livres quando somos capazes de nos abrir ao que não controlamos? - VLADIMIR SAFATLE



A modernidade nos acostumou à ideia de liberdade como expressão da autonomia individual. Hoje, ela nos é uma ideia tão natural que parece simplesmente impossível pensar de outra forma.
Nossos professores procuram criar alunos autônomos, os pais lutam por terem filhos autônomos, os psicólogos agem para reconduzir seus pacientes à condição de sujeitos autônomos, a democracia pede por cidadãos autônomos.
O mesmo termo em tantos contextos diferentes expõe a força de um princípio normativo geral. Sair do horizonte que tal ideia de liberdade define seria, de certa forma, colocar em questão algo de aparentemente fundamental e decisivo em nossa própria identidade como sujeitos modernos.
Segundo essa concepção, seríamos livres quando fôssemos capazes de nos autogovernar, de sermos os legisladores de nós mesmos, de estarmos sob a jurisdição de nós mesmos. Essa seria a forma de realizar o que já dissera o filósofo Jean-Jacques Rousseau: ser livre é indissociável do ato de dar para si mesmo sua própria lei.
Tal capacidade de autogoverno aparece, para muitos, como a expressão mais bem acabada da maioridade produzida pela experiência de emancipação. Se não podemos dar para nós mesmos nossa própria lei, estaríamos em situação de alienação e servidão, pois seríamos dirigidos por um outro.
Mas notemos algo interessante nessa concepção. Ela parece nos fazer crer que o objetivo real de criar indivíduos emancipados e livres seria de levá-los a serem, em uma metamorfose contínua e reversível, o juiz e o acusado. Um pouco como se estivéssemos a ver uma simbiose perfeita entre a consciência que julga e a consciência que age.
Já se falou da razão como um tribunal. Mas nem sempre se falou que tal tribunal nos ensina, entre tantas outras coisas, que nossa liberdade seria a capacidade adquirida de se mover entre a cadeira do juiz, o olhar do júri, a fala do acusador e o peso do acusado, sem em nenhum momento se perder.
Há uma habilidade de prestidigitador neste jogo de cadeiras. Pois o elemento fundamental aqui é a noção de simetria das posições. Independente do lugar que ocupo, continuo sendo Eu mesmo. Ser livre é ser um só na multiplicidade de várias vozes. No entanto, faz parte das ilusões fundamentais da noção moderna de indivíduo acreditar que me torno eu mesmo em sua maior perfeição principalmente quando exerço a lei que me julga.
Ou seja, um dos maiores milagres dessa concepção foi nos fazer acreditar que liberdade é a crença de que entre as ações e as razões, entre os atos e as leis, há uma identidade absoluta de direito, pois todos eles são "meus".
Daí por que tudo o que é involuntário, inconsciente, insubmisso a leis, o contingente só pode aparecer como um atentado potencial à minha liberdade.
No entanto, poderíamos nos perguntar se não haveria um problema com tal concepção de liberdade.
Tudo o que causa minhas ações de forma involuntária, tudo o que quebra a jurisdição das leis que um dia pareci dar para mim mesmo é, de fato, um atentado à minha liberdade? Não haveria entre nós uma outra concepção de liberdade, mais difícil de enxergar, para a qual sou livre quando sou capaz de me abrir àquilo que não controlo completamente, àquilo que não se submete à lei que tomei por minha?
Essa outra concepção não dirá que liberdade é autonomia. Ela dirá que liberdade é saber que há sempre um outro que me causa uma alteridade profunda que me afeta, que por isso minhas ações nunca são completamente minhas.
No entanto, nem sempre essa heteronomia é sinônimo de servidão. Ou seja, liberdade é abrir-se a uma heteronomia sem servidão. Seria melhor pensar assim. Isso nos deixaria mais aptos a ouvir aquilo que nos atravessa sem nunca adquirir a forma de nós mesmos.