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A alucinação coletiva do virtual

                                     
Hoje não pensamos o virtual, é o virtual que nos pensa. É essa transparência imperceptível que nos separa definitivamente do real nos é tão incompreensível quanto pode sê-lo para a mosca o vidro contra o qual ela se choca sem compreender o que a separa do mundo exterior. A mosca nem sequer imagina o que põe fim ao seu espaço. Do mesmo modo, nem sequer imaginamos o quanto o virtual já transformou, como por antecipação, todas as representações que temos do mundo.
Somos incapazes de imaginá-lo porque é da natureza do virtual pôr fim não apenas à realidade, mas também à imaginação do real, do político, do social - não apenas à realidade do tempo, mas também à imaginação do passado e do futuro (a isso dá-se o nome , com uma boa dose de humor negro, de “tempo real”).
Ainda estamos muito longe de compreender que a entrada em cena da mídia impede a evolução da história, que a subida ao palco da inteligência artificial impede o avanço do pensamento. A ilusão que guardávamos de todas essas categorias tradicionais, inclusive a ilusão de nos “abrir ao virtual” como a uma extensão real de todos os mundos possíveis, é a própria ilusão da mosca que incansavelmente toma distância para de novo chocar-se contra o vidro.
Ainda acreditamos na realidade do virtual, apesar de o próprio mundo virtual já ter apagado virtualmente todas as pistas do pensamento. Para pôr um pouco de ordem nessa confusão, tomarei um exemplo delicado, justamente porque representa o prolongamento do fato mais assustador e incompreensível da história moderna: o extermínio e aqueles que negam sua existência, os negacionistas.
A proposição negacionista é em si mesma absurda; seu despropósito é tão evidente que a questão crucial passa a ser: por que temos que defender a verdade contra eles? Como a questão da existência das câmaras de gás pôde sequer ser formulada? Ela jamais o seria em outros tempos. Aqueles que contestam o negacionismo não se indagam sobre a própria possibilidade dessa polêmica e contentam-se com uma veemente indugnação. Ora, a própria necessidade de defender a realidade histórica das câmaras de gás como uma causa moral, a necessidade de defender a “realidade”em geral com base em uma espécie de engajamento político revela muito dos descaminhos da objetividade e da mudança de registro na verdade histórica.
No tempo histórico, o evento ocorreu e as provas de fato existem. Mas nào estamos mais no tempo histórico, estamos no tempo real - e no tempo real não há mais provas, sejam elas quais forem. O negacionismo, portanto, é absurdo em sua própria lógica. Seu caráter peculiar esclarece o advento de um aoutra dimensão, chamada paradoxalmente de “tempo real”, mas em cujos limites a realidade objetiva está ausente - e não apenas a realidade do acontecimento atual, mas também dos acontecimentos passados e futuros. Todos os elementos esgotam-se numa tal simultaneidade que as ações não recobram mais seu sentido, os efeitos não remontam mais suas causas e a história já é incapaz de neles ser refletida.
O tempo real é uma espécie de buraco negro onde nada penetra sem antes perder sua substância. De fato, os próprios campos de extermínio tornam-se virtuais e figuram apenas na tela do mundo virtual: todos os testemunhos, o Holocausto e o Shoah, precipitam-se, a despeito deles e a despeito de nós, no mesmo abismo virtual.
Não se diz com isso, no entanto, que, em sua sinceridade absoluta, os próprios testemunhos e os filmes (como imagens que esgotam o horror na atualidade da imagem) não contribuem para essa memória impossível : o extermínio real está condenado a um outro extermínio, o do virtual. Eis aqui a verdadeira solução final.
Exatamente nisto é que consiste a derrota do pensamento - do pensamento histórico e do pensamento crítico. Na verdade, porém, não é sua derrota: é vitória do temporeal sobre o presente, sobre o passado e sobre todas as formas de articulação lógica da realidade. Nem mesmo o futuro está a salvo no tempo real (este é o sentido da prposição paradoxal de que não haverá ano 2000). Caberia aqui discutir a visão de Paul Virillo sobre o “Acidente final”, sobre o “Acidente dos acidentes”, o “apocalipse do virtual”, que ele vislumbra ao termo dessa evolução, ou melhor, dessa involução de nosso mundo em tempo real. Nada é mesmo certo, porém, do que esse apocalipse (até mesmo essa certeza nos escapa!...). Sonhar com o “Acidente final significa prender-se à ilusão do fim, significa esquecer que a própria virtualidade é virtual e que, por definição, seu advento definitivo, seu apocalipse, jamais será capaz de ganhar força de realidade.
Não haverá apocalipse do virtual e do tempo real porque, justamente, o tempo real aniquila o tempo linear e a duração, ou seja, a dimensão em que poderiam desenvolver-se até seu extremo limite. Não há uma função linear exponencial do Acidente, e seu termo último permanece aleatório.
A solução radical de continuidade do real instaurada pelo virtual, a síncope ou o colapso do tempo instaurada pelo tempo real felizmente nos preserva do termo final do extermínio. O sistema do virtual, a exemplo de todos os outros, está condenado a destruir suas próprias condições de possibilidade. Não devemos, portanto, sonhar com um apocalipse futuro, assim como não devemos nos deixar prender por uma utopia qualquer, seja ela qual for: o apocalipse ou a utopia jamais terão lugar no tempo real, pois o próprio tempo sempre lhes faltará.
Se há efetivamente uma revolução do virtual, é preciso compreender seu sentido e deduzir todas as suas consequências, mesmo se nos reservamos a liberdade de ter de recusá-lo pela raiz. Se não há apocalipse (e, virtualmente, já nos encontramos dentro dele: basta constatar a devastação de todo o mundo real), isso vale também para as demais categorias.
O social, o político, o histórico e mesmo o moral e o psicológico - todos os acontecimentos dessas esferas são virtuais. Ou seja, é inútil buscar uma política do virtual, uma ética do virtual, etc., pois a própria política tornou-se virtual, a própria ética tornou-se virtual, no sentido de que ambas perderam seu princípio de ação e sua força de realidade.
O mesmo ocorre com a técnica: falamos de “tecnologias do virtual”, mas na verdade há (ou em breve haverá) somente tecnologias virtuais. Ora, não existe mais o pensamento do artifício num mundo em que o próprio pensamento torna-se artificial. Podemos dizer, nesse sentido, que o virtual nos pensa, e não o contrário.
Toda essa interrogação sobre o virtual tornou-se hoje em dia ainda mais delicada e mais complexa devido à extraordinária impostura que o rodeia. O excesso de informações, o bombardeio publicitário e tecnológico, a mídia, o entusiasmo ou o pânico - tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos. Windows 95, Internet, as auto-estradas da informação - tudo isso é consumido cada vez mais por antecipação, no discurso e na fantasia. Será esse talvez um modo de unir os efeitos em curto-circuito, fazendo-os irromper na imaginação? Disso, porém, não estamos certos. A própria impostura e a intoxicação não fazem parte do virtual? Não sabemos. Sempre a velha história da mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro.
“A certeza não existe”, diz uma pichação de Nova Iorque.
“Tem certeza?”

Tradução de José Marcos Macedo
Fonte: Folha de São Paulo (www.uol.com.br/fsp).