Páginas

Para além de uma dicotomia



Dificilmente encontraremos uma dicotomia mais empobrecedora e equivocada para a reflexão política do que aquela que separa “reforma” e “revolução”, prática reformista e pensamento revolucionário. No entanto, não foram poucas a vezes que ela foi pressuposta por análises de situações político-sociais.
Aceita essa dicotomia, encontramos dois equívocos complementares. O primeiro consiste em elevar a revolução à condição de modelo único de acontecimento dotado de verdade. O que não tiver seu potencial disruptivo e instaurador não vale uma luta política, não deve mobilizar nosso engajamento. Se revoluções saem do horizonte histórico de uma época, então tal tempo será visto necessariamente como um tempo morto, desprovido de acontecimentos. Ele será a descrição inelutável da mortificação da existência. O resultado de tal elevação da revolução a modelo único de acontecimento dotado de verdade é a incapacidade de operar distinções.
De fato, um dos sinais da inteligência consiste na capacidade de saber operar distinções. Pensando em algo parecido, Pascal costumava dividir os homens entre aqueles que têm “espírito de finesse” e aqueles que têm “espírito de geômetra”. Os primeiros eram capazes de se fixar e imergir nos detalhes, encontrar distinções sutis, mas corriam o risco de se perder em suas sutilezas. Já os segundos conseguiam apreender rapidamente totalidades, como um geômetra que desenha figuras.
No entanto, eles corriam o risco de cegar-se para aquilo que não era tão grande. Era claro que a verdadeira inteligência estava na capacidade de viver entre dois espíritos, como se um precisasse a todo momento corrigir a hipóstase do outro. Se quisermos ser pascalianos, poderemos dizer que os que só têm olhos para revoluções talvez estejam muito fascinados por seu próprio espírito de geômetra. No entanto, a falta de finesse na análise política pode ser catastrófica por levar processos acumulados de transformação a serem simplesmente perdidos.
Abertura de novas sequências

Se esse é um dos equívocos sempre à espreita quando se aceita a dicotomia entre reforma e revolução, o outro consistirá em simplesmente recusar todo e qualquer processo revolucionário, como se estivéssemos diante de alguma forma de momento de desvario da história. 


No limite, toda revolução é simplesmente criminalizada, ou seja, só analisada por seus erros, por suas mortes, por suas distorções. Para tais pessoas, é difícil compreender que um acontecimento verdadeiro não garante a sequência de suas consequências


Mais do que um projeto claro, as revoluções foram o ato violento de abertura de novas sequências. Um ato que mobiliza expectativas contraditórias, que coloca em circulação valores cuja determinação de sua significação será objeto de embates também violentos. Por isso, uma revolução é uma causa a partir da qual não é possível derivar, com segurança, qual série de consequências virá.
No entanto, talvez seja importante dizer que uma revolução não deve ser um objeto político. Essa afirmação não é feita pelo fato de as consequências dos processos revolucionários serem incalculáveis, imprevisíveis. Em alguns momentos, raros, nos dispomos a confiar no incalculável.
Na verdade, uma revolução não deve ser objeto político porque simplesmente não sabemos como produzi-la, não há uma linha causal entre um conjunto de condições sócio-históricas e uma revolução. Revoluções são sempre improváveis, fruto de uma série contingente de acontecimentos.
Seria mais honesto reconhecer que a história é o processo que transforma contingências e necessidades. Uma transformação que só é visível a posteriori. Assim, o que devemos fazer é não recusar esses processos contingentes e inesperados que têm a força de romper o tempo. Não recusar já é muita coisa.
Por outro lado, deve-se compreender que uma sequência de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para trás. Hoje, defender uma sequência de reformas é muito mais difícil do que defender rupturas radicais. Pois é mais perigosa uma mudança que está ao alcance de nossas mãos do que uma que está fora do alcance de nossa visão. Lutar por reformas sem perder de vista o fato de que processos incalculáveis podem acontecer. Mais do que um conselho político, essa talvez seja uma forma de vida.

                                                                         Por Vladimir Safatle