Eu  sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio  ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de  esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e  cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de  mais de cento e cinqüenta anos, mas tudo bem.)
No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por  Betão — é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas,  acreditando resolver aí quinhentos anos de história.
 Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do  garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam  para falarmos de literatura.
 — Ô Betão, traz mais uma pra a gente — eu digo, com os cotovelos  apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é  o Brasil.
 Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa  coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a  cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e  não tem frango à passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os  pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais,  meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira  vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
 Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito  bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar  ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata,  copo americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima  imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida.  Quando um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo  bar ruim que nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda,  freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio  intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo  bar ruim.
 O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai  sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e  universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha  como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um  belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem  meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo  artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos  gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a  minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias  mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque  nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que  freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes  de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós  gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem  subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas  a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo  Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil  autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
 Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos:  os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem  qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do  cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de  bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo.  (Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem  de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato).  Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as  mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e  põem um som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a  gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela  coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.
 Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso  país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a  gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau  pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais,  meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango  à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que  mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais,  meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o  Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara  Cascudo, saca?).
 — Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?
Por Antonio Prata

 
