por Alain Badiou
O que é decisivo, em 1º lugar, é manter a hipótese histórica de um mundo livre da lei do lucro e do interesse privado. Enquanto estivermos sujeitos, na ordem das representações intelectuais, à convicção de que não podemos acabar com isso, que essa é a lei do mundo, nenhuma política de emancipação será possível. (…) É exatamente isso que o mundo exige de nós hoje: aceitar a corrupção generalizada dos espíritos, sob o jugo da mercadoria e do dinheiro. Contra isso, a principal virtude política hoje é a coragem. Devemos ter convicção de que ter uma grande ideia não é nem ridículo nem criminoso. [...] Hoje, pessoas demais acreditam que viver para elas mesmas, para seus próprios interesses, é inelutável. Devemos ter a coragem de nos distinguir dessas pessoas. (pg. 39-41)
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A crise planetária das finanças, tal como apresentada, parece um desses filmes porcarias inventados pela fábrica de sucessos pré-moldados que hoje se chama “cinema”. (…) Em toda parte, o mesmo incêndio nos mesmos bancos… tudo desmorona, tudo vai desmoronar… Mas ainda há uma esperança: na frente do palco, assustados e consternados como num filme catástrofe, o pequeno esquadrão de poderosos, os bombeiros do incêndio monetário, injetam no Buraco Central milhares de milhões. Mais tarde, todos se perguntarão (isso é para futuras novelas) de onde saiu todo esse dinheiro, já que, ao menor pedido dos pobres, eles reviram os bolsos e respondem há anos que não têm um tostão furado.
“SALVAR OS BANCOS!” – esse nobre brado humanista e democrático brota de todos os peitos políticos e midiáticos. Números astronômicos – “1.400 bilhões de euros…” – são injetados por governos para resgatar os banqueiros. Os espectadores desse show, a multidão atordoada que, vagamente preocupada, compreendendo pouca coisa, totalmente desconectada de qualquer engajamento ativo nessas circunstâncias, entende como uma algazarra distante o grito dos bancos em situação desesperada. Vê passar os números astronômicos e obscuros, e mecanicamente os compara a seus próprios recursos – ou, no caso de parte considerável da humanidade, à pura e simples falta de recursos que é o fundo amargo e corajoso de sua vida.
O capitalismo financeiro é – desde sempre, o que nesse caso quer dizer cinco séculos – uma peça constitutiva, central, do capitalismo em geral. (…) O capitalismo é apenas banditismo, irracional em sua essência e devastador em seu devir. Sempre nos fez pagar umas poucas décadas de prosperidade ferozmente desigualitária com crises em que quantidades astronômicas de dinheiro desaparecem, com expedições punitivas sangrentas em todas as zonas que ele considera estratégicas ou ameaçadoras e com guerras mundiais com que ele refaz as energias.
Ainda ousam nos gabar um sistema que remete a organização da vida coletiva às pulsões mais baixas, à ganância, à rivalidade, ao egoísmo mecânico? Querem que elogiemos uma “democracia” em que os dirigentes são impunemente os empregados da apropriação financeira privada que surpreenderiam até mesmo Marx, que há 160 anos já chamava os governos de “fundos de poder do capital”? Querem a todo custo que o cidadão comum “compreenda” que é impossível tapar o buraco da Previdência, mas que eles devem tapar o buraco dos bancos sem contar os bilhões?
De onde vem toda essa fantasmagoria financeira? Simplesmente do fato de que venderam à força, acenando com créditos milagrosos, casas encantadoras a pessoas que não tinham absolutamente nenhum recurso para comprá-las. Em seguida, venderam promessas de reembolso a essas mesmas pessoas… Bastou que o mercado imobiliário mudasse, e os credores querendo mais, os compradores conseguissem cada vez menos pagar suas dívidas. À primeira vista, o jogo empatou: o especulador perdeu a aposta e os compradores perderam suas casas, das quais foram gentilmente expulsos. Contudo, como sempre, o real desse empate está do lado do coletivo, da vida do dia a dia: tudo procede do fato de que existem milhões de pessoas cujo salário, ou ausência de salário, faz com que elas não tenham mais onde morar. A essência real da crise financeira é uma crise de moradia. E aqueles que não tem mais onde morar não são os banqueiros… ( pg. 57-58)
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É preciso derrubar o velho veredito que diz que chegamos ao “fim das ideologias”. Ao espetáculo pernicioso do capitalismo, opomos o real dos povos. A razão para a emancipação da humanidade não perdeu sua força. A palavra “comunismo”, que durante muito tempo deu nome a essa força, foi aviltada e prostituída. Mas hoje seu desaparecimento serve apenas aos detentores da ordem, aos atores febris do filme catástrofe. Vamos ressuscitá-la em sua nova clareza. Que é também sua antiga virtude, quando Marx diz que o comunismo é a ruptura, “do modo mais radical, com as ideais tradicionais” e faz surgir “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (MARX & ENGELS, Manifesto Comunista, Boitempo, 1999, p. 57 e 59)
O comunismo: uma promessa de emancipação universal que se sustenta em três séculos de filosofia crítica, internacionalista e laica, empenha os recursos da ciência e mobiliza, em pleno coração das metrópoles industriais, tanto o entusiasmo dos operários quanto o dos intelectuais.
Aliás, os genocídios e matanças coloniais, os milhões de mortos das guerras civis e mundiais pelos quais nosso Ocidente forjou seu poder, não poderiam muito bem desqualificar os regimes parlamentares da Europa e da América, eles, que só vaticinam contra o totalitarismo acocorados sobre montanhas de vítimas? (pg. 8)