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A imposição do modelo americano e seus efeitos




por Pierre Bourdieu
“As políticas econômicas aplicadas em todos os países da Europa, e que as grandes instâncias internacionais – Banco Mundial, OMC e FMI – impõe por toda a parte no mundo, invocam a autoridade da ciência econômica. De fato, elas se baseiam em um conjunto de pressupostos ético-políticos inscritos em uma tradição histórica particular, encarnada atualmente pelos Estados Unidos da América. (…) A economia que o discurso neoliberal constitui como modelo deve um certo número de suas características, pretensamente universais, ao fato de que está incrustada em uma sociedade particular.
 Não se pode criticar esse modelo [neoliberal] sem criticar os Estados Unidos, que são sua forma prototípica, paradigmática: [Os EUA é uma] sociedade paradoxal que, muito avançada econômica e cientificamente, é bastante atrasada social e politicamente. Mencionaria, entre outros indícios, um conjunto de fatos convergentes:
O monopólio da violência física é muito mal gerido em razão da ampla difusão de armas de fogo: a existência de um lobby dos defensores do direito a possuir armas, a National Rifle Association – NRA – assim como o contingente de detentores de armas de fogo – 70 milhões – e de mortos a bala – 30.000 por ano em média – são indícios de uma tolerância instituída da violência privada sem equivalente nos países avançados.
 O Estado desertou de qualquer função econômica, vendendo as empresas que possuía, convertendo seus bens públicos como a saúde, a habitação, a segurança, a educação e a cultura (livros, filmes, televisão e rádio) em bens comerciais, e os usuários em clientes, renunciando a seu poder de fazer a desigualdade recuar (ela tende a crescer de maneira descontrolada).
 Tudo isso em nome da velha tradição liberal de self help (herdada da crença calvinista de que Deus ajuda aqueles que ajudam a si próprios) e da exaltação conservadora da responsabilidade individual – que leva por exemplo a imputar o desemprego ou o fracasso econômico em primeiro lugar aos próprios indivíduos, e não à ordem social. Através da noção equívoca de employability, exige de cada agente individual, como observa Franz Schultheis, que se coloque ele próprio no mercado, fazendo-se de certa maneira empresário de si mesmo, tratado como capital humano, o que tem como consequência redobrar, por uma espécie de culpa, a miséria daqueles rejeitados pelo mercado…
 O culto do indivíduo e do “individualismo”, fundamento de todo o pensamento econômico neoliberal… não quer e não pode conhecer senão as ações ciente e conscientemente calculadas de agentes isolados, visandos fins individuais e egoístas. Quanto às ações coletivas, como as organizadas pelas instâncias de representação (partidos, sindicatos ou associações), e também pelo Estado, instância encarregada de elaborar e impor a consciência e a vontade coletivas e de contribuir para favorecer o fortalecimento da solidariedade, [a doutrina neoliberal] tende a reduzi-las a simples agregações de ações individuais isoladas. Ao fazer isso, ela exclui de fato a política, reduzida a uma soma de atos individuais que, realizados, como o voto, no isolamento e no segredo da cabine, são o equivalente exato do ato solitário da compra em um supermercado.”