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O novo empresariado cultural: ou a “velha roupa colorida”


               

                                          por Coletivo Passa Palavra
Quando o debate sobre a inserção do Fora do Eixo nos movimentos sociais em São Paulo veio à tona, em junho de 2011  um dos problemas que se colocou foi o de definir com precisão o seu caráter institucional. É preciso esclarecer: apesar de todo o seu ar descolado e alternativo, o Fora do Eixo funciona com todos os preceitos de uma empresa capitalista, tendo por finalidade a obtenção de rendimentos, através da exploração de um esforço braçal e criativo dos diversos agentes culturais dispersos pela cidade e pelas redes digitais. Para o assunto que nos interessa, pouco importa saber se eles passeiam de iate ou preferem morar na mesma casa, dormirem em beliches e dividirem calçados.
Muito já foi dito sobre o processo pelo qual o capitalismo foi desenvolvendo formas de explorar a produção simbólica e transformar a cultura em mais um de seus ramos de negócio. Ao longo do século XX, não foram poucas as experiências artístico-culturais que, mesmo tendo brotado como espaços de resistência e negação das engrenagens políticas e econômicas, acabaram sendo submetidas às regras destas engrenagens. Grande exemplo disto foram os movimentos contraculturais nascidos nos EUA e na Europa na década de 60 e que ganharam força também no Brasil durante os anos 70. Apesar de ser impulsionado por sentimentos de recusa e anseios de transformação radical, mobilizando símbolos transgressores, o poder efetivo de crítica desta cena foi sendo neutralizado na medida em que era assimilado pelos princípios de funcionamento dos atravessadores da Indústria Cultural, até que chegasse à condição de ser apenas mais um produto, ainda que alternativo, do mercado de bens simbólicos.
Grosso modo, essa velha indústria cultural com que estamos acostumados estrutura-se em torno da proteção do direito autoral. Ou seja, a lucratividade dos agentes intermediários deste negócio – os famosos atravessadores – é assegurada pela vantagem exclusiva que as empresas do ramo (gravadoras, editoras, empresas radiodifusoras e televisivas) detêm sobre os meios de produção e exploração comercial de um dado produto artístico. Por isso, seus grupos de pressão no plano jurídico-político se orientam pela defesa intransigente das leis de proteção da propriedade intelectual, pela proibição da livre cópia, da pirataria etc.
Acontece que o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação, em especial a internet, caminha para tornar estes mecanismos de lucratividade ultrapassados. Afinal, com a popularização deste novo aparato, o acesso aos meios de produção artístico-culturais se ampliou significativamente, diminuindo a dependência em que artistas e consumidores estavam relativamente aos grandes grupos econômicos do setor. Isso, por um lado, vai corroendo a base de existência desta velha indústria cultural, mas, por outro, dá origem ao surgimento de um novo empresariado da cultura, que desenvolve formas próprias de obter vantagens econômicas sobre a produção cultural independente e colaborativa. O Fora do Eixo, portanto, insere-se neste novo modelo.
O novo empresariado cultural é formado por uma constelação de agentes ajustados às novas condições de nosso tempo, empreendimentos que não precisam buscar sua fonte de lucro no direito exclusivo que tenham sobre a venda de um CD, um livro ou uma boa ideia qualquer. Neste novo modelo de indústria cultural, basta que as empresas “colem” a sua imagem ao processo de criação de outros grupos, coletivos, redes e pessoas; misturando, associando, embaralhando a sua marca à riqueza de saberes e símbolos que são produzidos por outros.
Mas como é que eles conseguem tirar vantagem econômica disso?
Pablo Capilé, o grande articulador do Circuito Fora do Eixo, gosta de dizer que o que fazem se trata de uma “disputa narrativa”. De fato, o primeiro passo consiste em convencer os parceiros e voluntários envolvidos de que todos os esforços envidados no curso de um projeto não se caracterizam como trabalho, mas sim ativismo, militância, manifestação de desejos. O novo ativismo, para ele, deve trocar trabalho por vida. Mas o próprio Capilé explica que esta mudança é, na verdade, uma “ressignificação”.
Pois, se não fosse apenas uma ressignificação, como explicar que “A cada 1 real captado, esse movimento é capaz de transformar em 100” – como Capilé afirmou recentemente? “Para fazer o Existe Amor em SP, o movimento gastou R$ 20 mil. Se cada um fosse fazer por fora, um evento como esse custaria R$ 500 mil.” (ver aqui) Estaríamos diante de um passe de mágica?
Ora, nada mais providencial para demonstrar que a multiplicação dos pães neste caso só se torna possível porque existe uma enorme quantidade de trabalho não-pago envolvida. O que Capilé procura compensar elogiando o esforço da “militância”. Ao converter seu trabalho em vida, um grande número de agentes produziu e distribuiu flyers, divulgou na internet, carregou caixas e ofereceu os seus serviços solidariamente, inclusive os grandes músicos que abrilhantaram o espetáculo etc.
Uma objeção aqui poderia ser feita: “Ué, mas não pode estar havendo aí exploração, uma vez que o resultado desta soma de esforços não foi colocado à venda no mercado, de onde um ou outro grupo pudesse tirar vantagem, ninguém pagou para consumir o evento”. Pois é aqui que reside a novidade. Grupos como o Fora do Eixo vão buscar suas principais fontes de renda a partir de outros meios; elas não acontecem aí, no momento em que o público usufrui o dado produto cultural, mas posteriormente.
Uma das vias principais é certamente a dos editais. O Fora do Eixo é uma máquina de obtenção de editais, públicos e privados. Para tanto, a produção coletiva de grandes eventos ou as campanhas massivas pela internet, por qualquer tema que for, desempenham aqui um papel especial: elas são demonstrações da capacidade que o circuito tem de mobilizar, coordenar e direcionar esforços de produção criativa, os quais, por sua vez, são capazes de atrair olhares e novas plateias. O que o Fora do Eixo negocia e oferece a governos e empresas com quem estabelece convênios e parceiras não é exatamente um produto artístico, mas precisamente esta capacidade de articular e gerir trabalho criativo e organizar plateias. Tanto maior será a sua vantagem na obtenção de editais quanto maior for a demonstração de sua capacidade mobilizadora.
Não é com uma venda de ingressos para o show na Praça Roosevelt, para ficarmos com esse exemplo, que o Fora do Eixo consegue esse montante estimado; até porque se fosse vendido, tal qual a lógica do mercado tradicional, o coletivo-empresa não alcançaria o público que pretende e seria ainda contraditório com o discurso que apresenta. Eles se utilizam de um trabalho não-pago de “ativistas”, que trabalham nas propostas do circuito e vendem essa capacidade de mobilização e articulação de grupos, redes e agentes culturais para os editais de financiamento que mantêm o funcionamento e a ampliação da sua estrutura.É assim que os R$ 20 mil reais investidos antecipadamente no Existe Amor em SP, ao entrar em contato com a varinha mágica do empenho quase gratuito de dezenas ou centenas de mãos e cérebros, hão de se transformar em R$ 500 mil.
Para se ter uma ideia, em 2012 o Fora do Eixo divulga  (até a data desta publicação) ter se inscrito em 122 projetos culturais, solicitando um total de R$ 25.278.930,96. (ver aqui) Procuramos obter informações mais detalhadas a respeito, mas a página do site do coletivo-empresa parece estar em manutenção. 
Em resumo, o coletivo Fora do Eixo e outros similares, enquanto representantes desse novo empresariado da cultura, se apresentam como uma versão repaginada dos velhos exploradores da produção simbólica coletiva.Assim, diferentemente da antiga indústria cultural, que dependia de contratos e termos jurídicos bem ajustados, ao vincular a sua imagem, mesmo que informalmente, a elementos simbólicos que são produzidos colaborativamente por agentes, a princípio, independentes, o novo empresariado da cultura consegue aproveitar-se dessa riqueza enquanto uma espécie de capital simbólico coletivo, que ao final do processo haverá de ser revertido em ganhos em espécie, ou seja, dinheiro. Mais vantajosa é a relação quando se verifica que o agente intermediador, no caso o Fora do Eixo, pouco ou quase nada precisa intervir no processo, visto que, em se tratando de trabalho criativo, maior produtividade será obtida quanto maior for a liberdade e a autonomia dos seus produtores.