Da Miséria no meio estudantil
Após um longo período de sono letárgico e de contra-revolução permanente, esboça-se, desde há alguns anos, um novo período de contestação de que parece ser portadora a juventude. Mas a sociedade do espectáculo, na representação que faz de si mesma e dos seus inimigos, impõe as suas categorias ideológicas para a compreensão do mundo e da história. Ela conduz tudo quanto aí se desenrola à ordem natural das coisas, encerrando as verdadeiras novidades que anunciam a sua superação no contexto restrito da sua ilusória novidade. A revolta da juventude contra o modo de vida que se lhe impõe não é, na realidade, mais do que o sinal precursor duma vasta subversão que englobará o conjunto dos indivíduos que sentem cada vez mais a impossibilidade de viver; não é mais do que o prelúdio da próxima época revolucionária. Só que a ideologia dominante e os seus órgãos diários, segundo mecanismos experimentados de inversão da realidade, não podem deixar de reduzir este movimento histórico real a uma pseudocategoria socio-natural: a Ideia de Juventude (cuja essência consistiria na revolta). Reduzindo, deste modo, uma nova juventude da revolta à eterna revolta da juventude - que renasceria em cada geração para se apagar quando o "jovem é tomado pela seriedade da produção e pela actividade com vista a fins concretos e verdadeiros". A "revolta dos jovens" foi e é ainda objecto duma verdadeira praga jornalística, que dela faz o espectáculo duma "revolta" possível oferecida à contemplação para impedir que se a viva, como esfera aberrante -já integrada- necessária ao funcionamento do sistema social; esta revolta contra a sociedade tranquiliza a sociedade porque se a imagina como coisa parcial, e como coisa parcial que como tal se mantenha, no apartheid das "questões da juventude" -do mesmo modo que haveria um problema feminino ou um problema negro -, supondo-se, assim, que haverá de durar apenas uma parte da vida. Na realidade, porém, se de facto existe um "problema da juventude" no interior da sociedade moderna é porque a crise profunda desta sociedade é ressentida com a acuidade maior pela juventude (1). Produto por excelência desta sociedade moderna, ela própria é moderna, quer para nela se integrar sem reservas, quer para a recusar radicalmente. O que é digno de admiração não é tanto que a juventude seja revoltada, mas sim que os "adultos" se mostrem tão resignados. Coisa aliás que não tem uma explicação mitológica, mas outrossim histórica: a geração precedente conheceu todas as derrotas e consumiu todas as mentiras do período de desagregação do movimento revolucionário.
Considerada em si mesma, a "juventude" constitui um mito publicitário já profundamente ligado ao modo de produção capitalista, como expressão do seu dinamismo. Esta ilusória primazia da juventude tornou-se possível com a nova arrancada da economia, após a Segunda Guerra Mundial, na sequência da introdução maciça no mercado de toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, papel este que assegura um diploma de integração na sociedade do espectáculo. Mas a explicação dominante do mundo encontra-se de novo em contradição com a realidade socio-económica (porque atrasada em relação a esta), e é justamente a juventude que começa por afirmar um irresistível furor de viver, insurgindo-se espontaneamente contra a chatice quotidiana e o tempo morto que o velho mundo continua a segregar através das suas diferentes modernizações. A fracção revoltada da juventude exprime a pura recusa, sem a consciência duma perspectiva de superação; exprime a sua recusa niilista. Esta perspectiva busca-se e constitui-se por toda a parte do mundo. Do que precisa é de atingir a coerência da crítica teórica e a organização prática duma tal coerência.
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A sociedade dominante, que se gaba da sua permanente modernização, tem agora de encontrar a quem falar, isto é, à negação modernizada que ela própria produz (8): "Deixemos agora aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos e de os chorar". As desmistificações práticas do movimento histórico desembaraçam a consciência revolucionária dos fantasmas que a perseguiam; a revolução da vida quotidiana encontra-se perante as tarefas imensas que tem de realizar. A revolução, tal como a vida que anuncia, precisa de ser reinventada. Se o projecto revolucionário continua fundamentalmente o mesmo (a abolição da sociedade de classes), isso acontece porque em nenhures as condições em que se forma foram radicalmente transformadas. Trata-se de o retomar, tal projecto, com um radicalismo e uma coerência ampliados pela experimentada falência dos seus antigos portadores, a fim de evitar que a sua realização fragmentária conduza a uma nova divisão da sociedade.
A luta entre o poder e o novo proletariado só se pode manifestar com base na totalidade; é por isso que o futuro movimento revolucionário precisa de abolir, no seu seio, tudo quanto tenda a reproduzir os produtos alienados do sistema mercantil (9). Ele precisa de ser, simultaneamente, a sua crítica viva e a negação que em si mesma contém todos os elementos da superação possível. Tal como bem o entendeu Lukács (para o aplicar, porém, a um objecto que disso não era digno, o partido bolchevista), a organização revolucionária é uma mediação necessária entre a teoria e a prática, entre o homem e a história, entre a massa dos trabalhadores e o proletariado constituído em classe. As tendências e divergências "teóricas" ,precisam de se transformar imediatamente numa questão de organização se pretendem mostrar a via da sua realização. A questão da organização constituirá a sentença final do novo movimento revolucionário, o tribunal perante o qual será julgada a coerência do seu .projecto essencial: a realização internacional do poder absoluto dos Conselhos Operários, tal como .foi esboçado pela experiência das revoluções proletárias deste século. Uma tal organização tem de salientar a critica radical de tudo aquilo que alicerceia a sociedade que combate, a saber: a produção mercantil, a ideologia sob todos os seus disfarces, o Estado e as separações por ele impostas.
A cisão entre teoria e .prática constitui o escolho em .que tropeçou o velho movimento revolucionário. Só os momentos mais altos das lutas proletárias superaram esta cisão e depararam com a sua verdade. Nenhuma organização conseguiu ainda saltar por sobre este Rodes. A ideologia, por mais "revolucionária" que se apresente, está sempre ao serviço dos chefes, e é o sinal de alarme que designa o inimigo dissimulado. É a razão por que a critica da ideologia tem de constituir, em última análise, o problema central da organização revolucionária. Só o mundo alienado produz a impostura; e a impostura não poderia reaparecer no interior do que pretende conter a verdade social sem que esta organização deixasse de se transformar, ela própria, numa nova impostura, num mundo fundamentalmente impostor.
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A história moderna só pode ser libertada e as suas inumeráveis aquisições livremente utilizadas pelas forças que recalca e expulsa: os trabalhadores sem qualquer poder sobre as condições, o sentido e o produto das suas actividades. No século XIX, o proletariado era já o herdeiro da filosofia; ele tornou-se agora o herdeiro da arte moderna e da primeira critica consciente da vida quotidiana. Não poderá suprimir-se sem realizar, ao mesmo tempo, a arte e a filosofia. Transformar o mundo e alterar a vida são para ele uma única e a mesma coisa, as inseparáveis palavras de ordem que acompanharão a sua supressão enquanto classe, a dissolução da sociedade presente enquanto reino da necessidade, e o acesso por fim possível ao reino da liberdade. A crítica radical e a reconstrução livre de todos os procedimentos e valores impostos pela realidade alienada são o seu programa máximo, e a criatividade liberta na construção de todos os momentos e acontecimentos da vida constitui a única poesia que poderá reconhecer, a poesia feita por todos, o iniciar da festa revolucionária. As revoluções proletárias serão festas ou não serão coisíssima nenhuma, porque a vida que anunciam será ela também criada sob o signo da festa. O jogo é a racionalidade última desta festa; viver sem tempos mortos e gozar sem impedimentos são as únicas regras que poderá reconhecer.